segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Voltaire - o rei do espírito



De longe o mais conhecido e celebrado homem de letras do século XVIII, Voltaire foi a própria encarnação do Iluminismo. Vivendo sua longa existência ao largo do Século das Luzes, representou os princípios maiores daquele movimento, engajando-se em grandes causas a favor da tolerância religiosa e a favor da liberdade de expressão, tornando-o um dos mentores indiretos da Revolução de 1789.


Um deísta

"Nossa divisa é: sem quartel aos supersticiosos, aos fanáticos, aos ignorantes, aos loucos, aos perversos, aos tiranos [...] será que nos chamamos de filósofos para nada?" Diderot a Voltaire (Carta de 29.09.1762)


Estando em Paris em 1778, Benjamin Franklin soube da recente presença de Voltaire na cidade e resolveu levar-lhe o neto para que o eminente ancião o abençoasse. "Deus e Liberdade!", disse o sábio homem ao pequeno, depois de ter trocado amabilidades com o embaixador itinerante dos americanos. Deus?! Na boca daquele herético? Sim, porque ao contrário da lenda e dos padres seus inimigos, Voltaire jamais fora um ateu. Acreditava sinceramente numa inteligência superior, numa força ordenadora do universo, no grande geômetra de Newton, não no ente afirmado pelas religiões reveladas capaz de operar milagres, de fazer parar o Sol, ou de curar escrofulosos ou leprosos. Era-lhe completamente estranho o Deus dos carolas, dos fanáticos, dos supersticiosos, da burocracia eclesiástica.
Estranhamente, o que o consagrou em sua época, pelo menos até os 50 anos de idade, foram suas peças teatrais e algumas óperas, quase todas esquecidas nos dias de hoje.


O militante das luzes

O Voltaire que projetou-se através dos tempos foi o escritor engajado, o militante do Iluminismo. Neste campo foi o mais preclaro antecessor de Jean-Paul Sartre que, como esse, utilizou-se de todos os meios ao seu alcance (teatro, romances, poemas, ensaios, correspondência ou panfletos) para divulgar suas idéias. A sua personalidade dominou o mundo das letras de todo o século XVIII (tão fabuloso que Saint-Just queria que fosse imortalizado e colocado no Panteão). Tanto é assim que são incontáveis os historiadores, escritores, críticos literários, ensaístas culturais e outros que chamam-no de O Século de Voltaire. Nascido numa tradicional família burguesa em 21 de novembro de 1694, os Arouet, já bem jovem tornara-se devido ao seu espírito ferino na coqueluche dos salões parisienses e, para desgosto dos pais, um familiar do templo dos libertinos.


Embastilhado

Conhecido como autor de poemas picantes e maldosos, termina conhecendo os cárceres da Bastilha e vários exílios. Aos 32 anos de idade chegou a ser furiosamente espancado por asseclas do cavaleiro de Rohan, com quem havia desejado duelar. Uns tempos antes, em 1716, por ter feito um poema satirizando o cavaleiro La Motte e o regente, foi desterrado para Sully-sur-Loire e, em seguida, encarcerado na Bastilha. Foi lá, preso, que ele escreveu La Henriada, uma poema épico em homenagem à tolerância de Henrique de Navarra, o rei Henrique IV dos franceses que foi assassinado por Ravaillac, um católico fanático que o abateu à facadas, por ter assegurado a liberdade religiosa dos huguenotes, os protestantes franceses, por meio do Édito de Nantes, de 1598. Também foi entre aquelas pedras tristes que o cercavam que resolveu mudar o seu nome de François-Marie Arouet para Voltaire, um anagrama de arovet le ieune, "Arouet, o jovem". Antes de partir para um curto e proveitoso exílio na Inglaterra, numa hilariante entrevista que tivera com o regente Felipe (que havia despachado a carta ordenando o seu encarceramento) nas Tulherias, pediu a autoridade que, doravante, não mais se preocupasse com sua moradia. A estada entre os ingleses, ainda que só de dois anos, foi-lhe vivificante.


Divulgador de Newton

Não só esteve no enterro de Newton, sepultado em 1727, como tornou-se um ardoroso difusor das suas concepções. Deve-se a ele a propagação da física newtoniana, não só na França como no resto do continente. Para tanto, ele preparou uma excelente exposição - o Elementos da Filosofia de Newton, de 1738, escrito sucinto e acessível das idéias gerais daquele grande nome das ciências (a metafísica e a física do que Newton chamou de filosofia da natureza).

Igualmente, no seu retorno à França, orientou a sua amante Madame du Chatelêt - mulher inteligentíssima, sua companheira de laboratório - na tradução para o francês da clássica obra de Newton, a Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, ainda desconhecida no resto da Europa.

Aquele esforço de divulgação fazia parte por assim dizer da campanha dos iluministas a favor do conhecimento científico da natureza para dessa forma (na tradição herdada da filosofia clássica, abeberada no epicurista Lucrécio) afastar o pavor supersticioso que os homens tinham dos fenômenos naturais. Pois, como asseverou ele: "é preciso que reconheçam, como todas as pessoas de bom senso, que não se deve procurar na Bíblia verdades de Física, e que nela devemos aprender a nos tornar melhores e não a conhecer a natureza".

Do contrário, ao acreditarem nos "mistérios de Deus", o temor ao sobrenatural facilmente os predispunha à crença nos prodígios, nos caldeirões do inferno, na crença nos milagres e assombrações, perseverando deste modo nas sombras, entregando o seu destino e seus bens nas mãos dos sacerdotes e da Igreja Católica, agência patrocinadora-mor do obscurantismo, segundo os iluministas.


A tolerância

Aquele breve estada inglesa (1726-7) rendeu-lhe a celebridade por toda a Europa por ter escrito as Cartas Filosóficas ou Cartas da Inglaterra, coletânea extraída das suas observações, feitas no Reino Unido. Também serviu-o para convencê-lo de outras coisas: de que era muito salutar existir numa sociedade várias seitas religiosas, rivais entre si. Pois assim, enquanto os sacerdotes, os pastores e demais pregadores brigavam entre si pela conquista do mercado das almas, tentando fazer com que "cada um fosse para o céu pelo caminho que melhor lhe aprouvesse", os pensadores e cientistas eram deixados em paz, podendo livremente levar adiante suas pesquisas e seus inventos. Bem ao contrário, aliás, do que ocorria em França, onde a censura da Igreja Católica dominante, tornada sua inimiga jurada, perseguia sem tréguas os dissidentes, ameaçando-os com prisões e condenando sua obras ao fogo dos infernos. Naturalmente que as "Cartas" dele também foram devoradas nas chamas do carrasco (o livro condenado pela censura era incinerado por um verdugo oficial).

A tolerância religiosa, afirmada anteriormente por John Locke como necessária ao bom convívio social, foi reafirmada por ele, em 1763, num tratado que o imortalizou. Se por um lado notabilizou-se por emprestar sua irônica pena para vergastar todas as superstições e mitos, Voltaire acreditava ser necessário, como afirmou cinicamente num antológico verbete do Dictionnaire philosophique, de 1764, que o povo, "o populacho", como ele preferia dizer, continuasse a ser crente. Acreditar na existência do demônio atuava como uma espécie de freio íntimo - uma polícia das almas - evitando assim que os pobres cedessem à tentação do roubo ou do homicídio.


Um freio no otimismo

Distanciado do pessimismo de Pascal, cujo mundo sombrio e fatalista pessoalmente detestava, também se afastou das tendências exageradas do otimismo de Leibniz, a quem satirizou de forma impagável na sua imortal novela Cândido ou o otimismo (Candide), de 1759. Para expor a sandice dos que viam o mundo cor-de-rosa, ele imaginou a figura do professor Pangloss, um impagável filósofo otimista que acreditava que - apesar dos horrores da existência, dos terremotos, das guerras, dos saques, dos incêndios, dos autos-de-fé, da velhacaria que o cercava - "vivíamos, afinal, no melhor dos mundos possíveis!" Mas Cândido não é só uma manifestação crítica contra os exageros do otimismo, e sim uma novela de formação (o que os alemães chamam de bildungroman), na qual um jovem inocente percorre as mais diversas etapas do seu destino, descortinando um mundo por inteiro que lhe era inimaginável, conduzindo o leitor a um passeio sensacional e emocionante por tudo o que era representativo no século XVIII, da estupidez das guerras européias às missões jesuíticas no Novo Mundo.


Rousseau foi sua vítima

Outra vítima de sua pena foi Jean-Jacques Rousseau, a quem remeteu uma das mais mordazes cartas que um intelectual jamais enviara a outro.

Comentando um dos discursos no qual o genebrino defendia a idéia de que a cultura e a civilização pervertem o homem, arrebatando-o do seu bondoso estado natural, Voltaire convidou-o para que o visitasse em Ferney, colocando os pastos da sua bela propriedade à disposição, para que ali, "ruminando em companhia dos bois e das vacas", Rousseau reencontrasse sua verdadeira natureza.

Voltaire não perdoou o ataque que Rousseau fez à civilização. Afinal ele era o mais ardoroso defensor das luzes que associara ao avanço geral da cultura. Atacar uma, como o genebrino fizera no seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, de 1750, era apagar a outra. O mal do mundo, dizia Voltaire, não vinha das letras nem das artes, mas exatamente da ausência delas, da ignorância e da superstição. O "bom selvagem" idealizado por Rousseau era um mitificação, pois nada de bom pode surgir em meio ao primitivismo e à barbárie. Logo, dizer que a vida selvagem por estar mais próxima a natureza, era melhor que a civilizada, era um desatino.

Daquela época até o fim das suas vidas, vinte e oito anos depois, os dois passaram a terçar as penas sempre que houve uma oportunidade. Certa ocasião, bastou Voltaire ter insistido em abrir um teatro em Genebra, capital do calvinismo (e cidade onde Rousseau nascera), na qual se considerava a encenação uma atividade ímpia, para que Rousseau saltasse em defesa dos censores em nome da pureza dos costumes locais.

Esta indisposição entre eles não os impediu porém de, a convite de Diderot, aceitarem participar como colaboradores de alguns verbetes da monumental Enciclopédia (Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers) que estava em organização desde 1758, e que com seus 28 volumes tornou-se o grande monumento científico e literário do Iluminismo.


O respeito à opinião alheia

Para Julien Benda e tantos outros, a luta de Voltaire a favor da liberdade de expressão e pensamento, pela abolição da tortura, sua solidariedade para com as vítimas das perseguições motivadas por preconceito religioso (como no affair Calas e no caso Sirven), o seu combate à intolerância e à idiotia perniciosa dos ignorantes, gerou o clima para a realização das grandes modificações na legislação que nos conduziu à democracia moderna. Esmerou-se o tempo todo para que a liberdade de expressão fosse conquistada e respeitada, não importando que ele mesmo fosse o alvo de virulentas críticas. Politicamente, porém, Voltaire estava muito longe de ser um republicano, muito menos um democrata.


Visão da História

Apesar dele ser questionado por não apresentar uma filosofia da História, sua concepção dela, da História, exposta na introdução do Le siècle de Louis XIV, de 1751, não deixa dúvidas que atribuía o progresso da cultura e das letras à existência de grandes príncipes e brilhantes chefes de Estado. Para ele devia-se tudo a um Péricles, a um Augusto, aos Médici, a estadistas ilustrados que se cercavam de homens de letras, de artistas e gente sábia (tal como no passado antigo e renascentista, o ateniense fizera com Anaxágoras e Fídias, o romano com Virgílio e os florentino com Maquiavel e Bruneleschi).

A afortunada aliança do espírito com a política, do homem de letras e artes com o poder, era a chave que explicava os momentos de exuberância que os impérios alcançaram outrora. Exemplo que ele só encontrara em seu tempo com o seu amigo e correspondente Frederico II, rei da Prússia, que reuniu uma plêiade de escritores e cientistas em Sans-Souci, o seu palácio em Potsdam, nas proximidades de Berlim. Tudo enfim devia-se a uma elite refinada.

O objetivo ideológico de tal visão não era desprezar as massas ou o homem comum, que afinal, antes de Marx, ninguém atribuía um papel importante ou digno sequer de figurar na história, mas sim minimizar a importância da nobreza guerreira ou da aristocracia de sangue que, ainda no século XVIII, se acreditava a exclusiva agente da História.

Voltaire, de certo modo, pode ser visto como um precursor do positivismo, da idéia de Comte de que o moderno progresso da humanidade dependia muito mais dos cientistas, dos artistas e dos homens de letras e de negócios em geral, e não dos rei conquistadores nem dos padres como a historiografia cortesã gostava de enfatizar.


Infatigável

Voltaire foi o primeiro grande intelectual moderno a virar um grande personagem - o rei do espírito - fazendo com que sua herdade em Ferney, estrategicamente próxima da fronteira franco-suíça, se tornasse um centro de romarias, acolhendo as personalidades mais importantes daquele século. Trabalhador infatigável, era dotado de proverbial energia que o fazia estar em atividade umas 15 horas por dias (a Fundação Voltaire de Oxford coletando e publicando-lhe a correspondência, chegou a editar 75 volumes, enquanto suas obras completas somaram 58 volumes). Numa das incontáveis gravuras, ele aparece esquálido, recém-levantando-se da cama, e já ditando uma correspondência ao secretário. Atividade que não o impediu de fazer com que a sua propriedade fosse um exemplo de um empreendimento econômico bem-sucedido.


Quadro das obras

Teatro - Zaire, Merope, etc.. Umas 50 ou 60 peças, entre tragédias e comédias menores

Poema épico - La Henriade e a Pucelle

Romances e contos - Cândido, Zadig, Jeannot e Colin, Micrômegas, etc.

História - Carlos XII, O Século de Luís XIV, Essai sur les moeurs

Crítica e miscelânea - Dicionário Filosófico e ensaios literários

Correspondência - 75 volumes


Ferney

Se os reis tinham os seus caprichos, um lugar especial onde acomodavam suas preferências, Voltaire não lhes ficou atrás. Ferney, porém, não foi apenas uma habitação de um grande senhor, do senhor de Ferney. O petit domaine, como Voltaire chamou-a, tornou-se um projeto especial do filósofo, o que Jean Ornieux, um seu biógrafo, chamou de vaste entreprise pacifique. Lá ele harmonizou a produção artesanal e agrícola, ligada à pesquisa laboratoriais. Criou ali, ao sopé dos Alpes, o seu país da Cocagne: uma república platônica formada por camponeses, artesãos e operários, dirigida e administrada por um senhor-filósofo.

Ele mesmo supervisionou a construção da maison central, da casa principal, bem como as diversas oficinas que se edificaram na parte dos fundos da magnífica propriedade. Provavelmente essa experiência dele influenciou Thomas Jefferson que também, mais tarde construiu a sua Ferney em Monticello, na Virgínia, dentro do mesmo espírito.


Glória em vida

Tornou-se o escritor com os anos à consciência pública, ou melhor, era a opinião pública da sociedade européia. Graças a sua fabulosa fortuna, amealhada pelos meios os mais diversos (alguns deles escusos), pôde exercer seu métier de livre-pensador irreverente até o fim da vida, envolvendo-se em praticamente todas as polêmicas daquele século de ouro da inteligência francesa.

Ainda em vida teve a grata satisfação de ter recebido uma das maiores homenagens que um homem de letras jamais havia merecido em toda a história da França. Somente aos 84 anos de idade deixaram-no retornar a Paris (fora banido por Luís XV). Acolheu-o então uma das maiores multidões de toda a história da França. Naquela oportunidade, não só o tout Paris veio dar-lhe as boas vinda como o próprio povo consagrou-o como um dos maiores gênios da cultura nacional em todos os tempos. Quase afogado pelas homenagens, Voltaire, visivelmente emocionado, só conseguia balbuciar "assim vocês me matam!"

Curiosamente, em seguida ao seu falecimento, ocorrido em 30 de maio de 1778, alguns dos seus dentes foram distribuídos, sendo que um deles virou amuleto de um jornalista "esclarecido", um tal de Lemaître, que o guardou com a frase:

Les pêtres ont causé tant de mal à la terre/ Que j'ai gardé contre eux une dent de Voltaire

("Os padres causaram tanto mal à Terra/ que eu guardei um dente de Voltaire contra eles.")


No Panteão

Treze anos depois da sua morte, quando a revolução se afirmava, a Assembléia Nacional determinou o translado dos seus restos mortais para Paris. No dia 11 de julho de 1791, Voltaire fez sua segunda entrada gloriosa na capital. Desta vez como múmia ilustre. Bailly, o prefeito, veio esperá-lo para, ao lado da carreta aparamentada, fazê-lo desfilar perante o povo com as honras da guarda nacional até o seu repouso final no Panteão. Por um dessas ironias do destino, a festiva chegada de Voltaire quase coincidiu com o retorno sombrio de Luís XVI e da sua família, aprisionados em Varennes após a fracassada fuga em direção à Bélgica. Enquanto o rei dinástico recolhia-se aprisionado pelo povo para as Tulherias (e, pouco tempo depois, para a prisão do Templo, encontrando o seu fim no cadafalso), o rei do espírito era definitivamente inumado na necrópole dos grandes da França, onde está até hoje. Quanto ao corpo do infeliz Luís XVI nunca mais se soube dele.

Quando a procissão levando os restos mortais de Voltaire fez um alto, depois de ter ultrapassado a Pont-Royal, viu-se uma enorme placa erguida em frente à casa da Madame de Villette com os dizeres Son coeur est ici, son esprit est partout ("Seu coração está aqui, mas seu espírito está por tudo.") E assim se deu.

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