quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Zohar e a kabbale castillane

"A narração da Torah é apenas sua roupa"

Rabbin Siméon disse: " Infelicidade para aquele que diz que a Torah é uma simples antologia de històrias e de assuntos cotidianos. Se fosse o caso, nòs poderìamos redigir hoje uma Torah com a ajuda de palavras comuns e de uma melhor maneira. Se fosse apenas o fato de palavras comuns, mesmo os prìncipes desse mundo possuem livros de maior valor e nòs poderìamos segui-los e redigir uma Torah semelhante. Mas todas as palavras da Torah são palavras supremas e sublimes segredos.
" Venha ver: o mundo superior e o mundo inferior compartilham entre eles um equilibrio perfeito: Israël em baixo, os anjos no alto. Dos anjos do alto, o versìculo diz: " Você faz dos ventos seus mensageiros" ( Psaume CIV, 4). Quando eles descem na terra, eles vestem roupas terrestres. Se eles não vestissem as roupas terrestres, eles não poderiam ficar nesse mundo e este mundo não poderia suporta-los. Se é assim para os anjos que a Torah criou com todos os mundos que sò existem por ela, pela mais forte razão, quando ela desce nesse mundo, se ela não vestisse as roupas desse mundo, este não poderia suporta-la.
" È por isso que a narração da Torah é apenas sua roupa. Que expire o espìrito daquele que considera que essa roupa é a pròpria Torah e não outra coisa ! Que ele não participe do mundo que virà. Foi por essa razão que David disse: " Abra meus olhos para que eu contemple as maravilhas na tua Torah" (Psaume CXIX, 18), quer dizer o que està sob a roupa da Torah
."Venha ver: existe a roupa que se mostra a todos e existem os tolos que, vendo um homem vestido com sua roupa que é sua parte mais visìvel, não veem nada mais do que essa roupa. Na realidade, o valor da roupa, é o corpo e o valor do corpo, é a alma.
" È a mesma coisa para a Torah. Ela tem um corpo: esse corpo é formado dos preceitos da Torah chamados Goupey Torah [os corpos da Torah]. Esse corpo é revestido de roupas que são as narrações relativas a esse mundo.
" Os tolos desse mundo sò veem a roupa que é a narração; eles não sabem nada mais além disso, e não meditam sobre o que se encontra sob essa roupa.
" Aqueles que têm mais conhecimentos não param na roupa mas veem também o corpo sob a roupa.
" Os sàbios, servidores do Rei Altìssimo, àqueles que estavam no pé da montanha do Sinaï, sò meditam sobre a alma que é o essencial de tudo isso, a Torah verdadeira. No tempo que virà, eles estarão prontos para penetrar até a alma da Torah. [....]
" Felizes os justos que meditam sobre a Torah como é necessàrio. O vinho sò pode se conservar em uma bilha. Da mesma maneira a Torah sò se conserva em uma roupa. È por essa razão que sò é preciso meditar sobre o que se encontra sob a roupa. Todas as palavras e todas as narrações são apenas roupas".


- Zohar (III 152 a), Tradução de Armand Abécassis - Le Point Hors-Série n°2, 2005.


O Zohar

No fim do século XIII, uma obra curiosa começa a circular na Espanha; ela tem as aparências formais e literàrias de um escrito rabbinique muito antigo e ensina uma teosofia mìstica. As primeiras strates do que se tornarà um imenso corpus aparecem primeiro em Castille com o nome de Midrach ha-Néélam ( o Midrach escondido ), em seguida fala-se de um Midrach vindo de Jérusalem ( Midrach yerouchalmi ), mas é com o tìtulo de Sefer ha-Zohar, o Livro do Esplendor, que ela vai se impor.


Revelação profética

O autor do livro é em teoria anônimo, mas a anàlise estilìstica e o depoimento da viùva de Moïse de Léon ( 1240 - 1305 ) permitem de pensar que esse erùdito castillan, autor de numerosas obras assinadas com seu nome ( Le Secret des doigts, La Rose du témoignage, Le Secret des dix Sefirot, le Livre de la Grenade, etc.), foi provavelmente seu principal redator, mesmo se ele colaborou com outros kabbalistes, entre eles talvez, Joseph Gikatilla e Moïse de Burgos.
È, provavelmente, para oferecer uma alternativa intelectual e religiosa à teologia de inspiração aristotélicienne, herdada de Maimonide, que esses mìsticos quiseram tornar acessìvel a um nùmero maior de pessoas um ensinamento que era limitado a raros iniciados, rompendo dessa maneira com a tradição do segredo que caracteriza os meios esotéricos. Melhor, porque revelar o que deve permanecer escondido transgrede uma proibição que unicamente a palavra divina pode autorizar, a iniciativa de sua redação é atribuìda a uma revelação profética.


Um senso humano para as palavras da Torah

O sucesso do Zohar serà espetacular. Copiada e imitada, a obra torna-se ràpido a mais célebre da mìstica judia. Até os dias de hoje, ele é o texto mais lido, apòs a Bìblia e o Talmud.
Traduzido em latim, ele inspirarà também uma kabbale cristã a partir do século XV.
Escrito no começo em dialeto aramaico, o ensinamento do Zohar não é direto: Moïse de Léon se refugiou atràs de um personagem fictivo, Siméon bar Yohai, um eminente rabbin do século II.
A obra se apresenta sob a forma de um comentàrio do Pentateuque, um midrach, mas ele contém também as partes consagradas ao livro de Ruth, as lamentações e ao Cântico dos cânticos, assim que diversos curtos tratados e peças anexas como Tikkuney ha-Zohar, " Complementos para o Zohar", escritos mais tarde por um autor anônimo.
O texto acima é um dos mais importantes da mìstica judia pois ele expõe o método de interpretação dos kabbalistes, que é em quatro nìveis: a roupa ( a narração ), o corpo (as leis e preceitos), a alma (o senso e a importância do senso ) e "a alma da alma" ( o segredo final). Siméon bar Yonai insiste sobre a especificidade da Torah, que torna obrigatòria essa leitura em vàrias etapas. A ordem do mundo, com efeito, não é destinada aos orgãos sensìveis mas ao mundo inteligìvel.
Muita vezes, a leitura que nòs fazemos dele sò corresponde a uma strate da informação. Assim, nòs não vemos a atração terrestre mas apenas seu efeito: o objeto ou a pedra que cai.
Da mesma maneira, para que a Torah se realize na terra, é preciso dar um senso humano a suas palavras. Para o kabbaliste, como geralmente para todo esotérico, a leitura literal é impensàvel; o senso é por definição escondido. È atràs da expressão material onde ele se destaca sem se revelar que é preciso ir procura-lo. Rabbi Siméon bar Yohai lembra que, a condição de possuir uma inteligência, nòs podemos "desnudar" a Torah e descobrir então o corpo dos preceitos, onde se dissimulam os sensos e a alma.
Mas é ainda atràs desse senso que se esconde "a alma da alma", o segredo final que todo sàbio procura.

- Catherine Golliau -

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Pensamentos de Krishna


(...)
Ora eis ai o verdadeiro caminho da salvação. Uma vez que tu te tenhas apercebido do Ser Supremo, que está acima do mundo e que está em ti mesmo, decide-se a abandonar o inimigo que se disfarça sob a forma do desejo. Dominai as vossas paixões. Os gozos que os sentidos procuram são como que as fontes dos desgostos futuros. Não basta simplesmente o bem, é preciso ser bom. Que o motivo de vossa bondade esteja nos atos e não nos seus frutos. Renunciai ao fruto das vossas obras, mas que cada uma das ações seja como uma oferenda ao Ser Supremo. O homem faz o sacrifício dos seus desejos e das suas obras ao Todo Infinito, do qual o princípio de todas as coisas procede, e por quem o Universo há sido formado, obtém por esse sacrifício a perfeição. Unido espiritualmente a ele, atinge essa sabedoria que está acima do culto das oferendas e experimenta uma felicidade divina. Porque aquele que encontra em si mesmo a sua felicidade, a sua alegria e em si mesmo também a sua luz é uno com o Ser Supremo. Ora, sabei-o, a alma que encontrou o Ser Supremo, está isenta da renascença e da morte, da decrepitude e da dor, e bebe a água da imortalidade.
Assim explicava Krishna a sua doutrina aos discípulos, elevando-os pouco a pouco, pela contemplação interior às verdades sublimes que se haviam desvendado a ele próprio, sob o relâmpago de sua visão. Quando falava em Mahadeva, a sua voz se tornava grave, e suas feições iluminavam-se.
(...)

Krishna (Os Grandes Iniciados)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O que é a liberdade?

Considerar a questão, o que é a liberdade ? parece um empreendimento desesperado. Tudo acontece como se as contradições e as antinomias sem idade alcançassem aqui o espìrito para joga-lo em dilemas logicamente insolùveis, de maneira que, segundo o partido adotado, torna-se tão impossìvel de conceber a liberdade ou seu contràrio que formar a noção de um cìrculo quadrado. Na sua forma mais simples, a dificuldade pode ser resumida como a contradição entre nossa consciência que nos diz que nòs somos livres e por conseguinte responsàveis, e nossa experiência cotidiana no mundo exterior onde nòs nos orientamos segundo o princìpio de causalidade. Em todas as coisas pràticas e especialmente nas coisas polìticas, nòs consideramos a liberdade humana como uma verdade evidente, e é nesse axioma que as leis repousam nas comunidades humanas, que as decisões são tomadas, que os julgamentos são atribuìdos. Em todos os campos de trabalho cientìfico e teòrico, ao contràrio, nòs procedemos segundo a não menos evidente verdade do nihil ex nihilo, de nihil sine causa, quer dizer supondo que "mesmo nossas pròprias vidas são, em ùltima anàlise, submetidas a causas" e que, se deve existir em nòs mesmos um eu real livre, ele, em todo caso, não aparece jamais sem equìvoco no mundo fenomenal, e não pode então jamais se tornar o objeto de uma asserção teòrica. Por isso o fato que a liberdade vira miragem no momento em que a psicologia penetra no seu domìnio reputado mais ìntimo; pois " a função que a força tem na natureza, como causa do movimento, tem como contrapartida na esfera mental o motivo como causa da conduta".
È verdade que a prova de causalidade - a previsibilidade do efeito, se todas as causas são conhecidas - não pode ser aplicada no domìnio dos affaires humanos; mas essa imprevisibilidade pràtica não é uma prova da liberdade, ela significa simplesmente que nòs não estamos jamais em posição de conhecer todas as causas que entram em jogo, isso, de um lado, simplesmente por causa do grande nùmero dos fatores, mas também porque os motivos humanos, ao contràrio das forças naturais, permanecem escondidos a todos os olhares, à obsevação dos outros homens como à introspecção.
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Para a questão da polìtica, o problema da liberdade é crucial, e nenhuma teoria polìtica pode permanecer indiferente ao fato que esse problema conduziu ao coração "da floresta obscura onde a filosofia se perdeu". [....]
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O domìnio onde a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, mas como um fato da vida cotidiana, é o domìnio polìtico. E mesmo hoje, que nòs o saibamos ou não, a questão da polìtica e o fato que o homem possui o dom da ação deve sempre estar presente em nosso espìrito quando nòs falamos do problema da liberdade, pois a ação e a polìtica, entre todas as capacidades e possibilidades da vida humana, são as ùnicas coisas que nòs não poderìamos ter a mìnima idéia sem presumir pelo menos que a liberdade existe, e nòs não podemos tocar nenhuma questão polìtica sem botar o dedo sobre uma questão em que a liberdade humana não esteja em jogo. A liberdade, entretanto, não é apenas um dos numerosos problemas e fenômenos do domìnio polìtico propriamente dito, como a justiça, o poder, ou a igualdade; a liberdade, que sò torna-se raramente - nos perìodos de crise ou de revolução - o objetivo direto da ação polìtica - é realmente a condição que faz com que os homens vivam juntos em uma organização polìtica. Sem ela a vida polìtica como tal seria desprovida de senso. A raison d'être - razão de ser - da polìtica é a liberdade, e seu campo de experiência é a ação.
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Sem uma vida pùblica politicamente garantida, falta para a liberdade o espaço mundano onde ela pode aparecer. Certo, ela pode ainda habitar no coração dos homens como desejo, vontade, ou aspiração; mas o coração humano, nòs todos sabemos, é um lugar demasiadamente obscuro, e tudo o que acontece na sua obscuridade não pode ser designado como um fato demonstràvel. A liberdade como fato demonstràvel e a polìtica coincidem e são relativas uma a outra como dois lados de uma mesma coisa.
Todavia, é precisamente essa coincidência da polìtica e da liberdade que não é mais evidente na luz da experiência polìtica que é hoje a nossa. O aumento do totalitarismo, sua reinvindicação de ter subornado todas as esferas da vida às exigências da polìtica e seu não-reconhecimento lògico dos direitos civis, sobretudo os direitos da vida privada e do direito a ser liberado da polìtica, nos fazem duvidar não somente da coincidência da polìtica e da liberdade, mas ainda da compatibilidade delas. [....]
[....] A ascendência filosòfica de nossa noção polìtica comum da liberdade é ainda totalmente presente nos escritores polìticos do século XVIII, por exemplo quando Thomas Paine afirma com insistência que " para ser livre basta [ao homem] que ele queira", palavra que Lafayette aplicou à nação: "Para que uma nação seja livre, basta que ela queira ser livre".
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Não existe nenhuma dùvida que a vida humana, colocada na terra, seja envolta de processos automàticos - os processos naturais da terra que também são envoltos de processos còsmicos; e nòs mesmos somos empurrados por forças semelhantes na medida em que nòs também somos uma parte da natureza orgânica.
Nossa vida polìtica, além disso, mesmo se ela é o domìnio da ação, tem igualmente um lugar no coração dos processos que nòs chamamos històricos e que tendem a tornar-se tão automàticos quanto os processos naturais ou còsmicos, se bem que eles tenham sido provocados pelos homens. A verdade é que o automatismo é inerente a todos os processos seja qual for a origem deles - o que, explica que nenhum ato ùnico e nenhum evento ùnico possam jamais, de uma vez por todas, libertar e salvar um homem, uma nação ou a humanidade. [.....]
As ciências històricas conhecem muito bem esses casos de civilizações petrificadas declinando sem esperança, e que a condenação parece determinada antecipadamente, como uma necessidade biològica; e como esses processos històricos de estagnação podem durar e caminhar durante séculos inteiros, eles ocupam, de maneira evidente, o maior espaço na història escrita; os perìodos de liberdade sempre foram relativamente curtos na història do gênero humano.
O que geralmente permanece intacto nas épocas de petrificação e de fatal predestinação é a faculdade de começar que anima e inspira todas as atividades humanas e que é a fonte oculta da produção de todas as coisas grandes e belas.
Mas durante todo o tempo que essa fonte permanece oculta, a liberdade não é uma realidade do mundo, tangìvel; quer dizer que ela não é polìtica.
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Todo ato, encarado não do ponto de vista de agente, mas na perspectiva do processo no contexto em que ele se produz e de qual ele interrompe o automatismo, é um "milagre" - quer dizer alguma coisa que nòs não podìamos esperar. Se é verdade que a ação e o começo são essencialmente a mesma coisa, é preciso concluir que uma capacidade de realizar milagres também està presente no nùmero das faculdades humanas. Isso pode parecer mais estranho do que a realidade.
È da pròpria natureza de todo novo começo que ele faça irrupção no mundo como uma "improbabilidade infinita", mas é precisamente esse infinito improvàvel que constitue na realidade a textura pròpria de tudo o que nòs dizemos real. Toda nossa existência repousa, apesar de tudo, de uma certa maneira em uma corrente de milagres; o nascimento da terra, o desenvolvimento da vida orgânica na sua superfìcie; a evolução do gênero humano a partir de espécies animais. Pois do ponto de vista dos processos do universo e da natureza, e de suas possibilidades estatìsticas esmagadoras, o nascimento da terra a partir de processos còsmicos, a formação da vida orgânica a partir de processos inorgânicos, enfim a evolução do homem a partir dos processos da vida orgânica são todos considerados como "improbabilidades infinitas", o que nòs chamamos geralmente de "milagres". È por causa desse elemento do "milagroso" presente em toda realidade que os eventos, tão precisamente que nos façam prever o temor ou a esperança, nos deixam sob o impacto da surpresa quando eles acontecem. O pròprio impacto de um evento não é jamais totalmente explicàvel; sua realidade transcende no seu princìpio toda previsão.
A experiência que nos ensina que os acontecimentos são milagres não é nem arbitrària nem falaciosa; ela é ao contràrio uma das mais naturais e mesmo quase banal na vida ordinària. Sem essa experiência banal, a importância dada pela religião aos milagres sobrenaturais seria quase incompreensìvel.
Eu escolhi o exemplo de processos naturais que são interrompidos pelo acontecimento de alguma "improbabilidade infinita" para ressaltar o fato que o que nòs chamamos real na experiência ordinària surgiu frequentemente graças coincidências mais estranhas do que a ficção. È claro que esse exemplo tem seus limites e ele não pode ser aplicado puramente e simplesmente ao domìnio dos affaires humanos. Seria pura superstição de operar milagres, de esperar o "infinitamente improvàvel", no contexto dos processos històricos e politicamente automàticos, se bem que mesmo isso não possa jamais ser completamente excluìdo. A història, em oposição à natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da improbabilidade infinita se produz tão frequentemente que pode parecer estranho de falar de milagre. Mas a razão dessa frequência é simplesmente que os processos històricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pela "initium" que o homem é na medida em que ele é um ser que age. Por conseguinte, não é de maneira alguma uma superstição, é mesmo uma atitude realista de esperar o que não pode ser previsto e predito, de se preparar a milagres no domìnio polìtico. E quanto mais a balança pesa muito em favor do desastre, mais milagroso serà o fato realizado livremente; pois é o desastre, e não a salvação, que se produz sempre automaticamente e deve por conseguinte, sempre parecer inelutàvel.
Objetivamente, quer dizer de um ponto de vista exterior, e sem levar em conta o fato que o homem é um começo e que ele é um ser que começa , as chances que amanhã seja como ontem são sempre mais fortes. Talvez nem tanto, é verdade, mas quase tão fortes que eram as chances para que nenhuma terra possa surgir jamais dos eventos còsmicos, que nenhuma vida se desenvolva a partir dos processos inorgânicos e que nenhum homem apareça da evolução da vida animal. A diferença decisiva entre as "improbabilidades infinitas" sobre as quais repousa a realidade de nossa vida terrestre, e o caràter milagroso inerente aos eventos que estabelecem a realidade històrica, é que, no domìnio dos affaires humanos, nòs conhecemos o autor dos "milagres". São os homens que os realizam, os homens que, porque eles receberam o duplo dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade pròpria à vida deles.


- Hannah Arendt - La crise de la culture - Qu'est-ce que la liberté ? - pg. 186 - 222 - Folio essais.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O que é a autoridade?

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A palavra auctoritas deriva do verbo augere, "aumentar", e o que a autoridade ou àqueles que comandam aumentam constantemente é a fundação. Os homens dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado ou os patres, que a tinham obtido por herança e pela transmissão daqueles que haviam colocado as fundações para todas as coisas futuras, os antepassados, que os Romanos chamavam por essa razão os maiores. A autoridade dos vivos era sempre derivada, dependente dos auctores imperii Romani conditoresque, segundo a fòrmula de Pline, da autoridade dos fundadores, que não estavam mais entre os vivos.
A autoridade, ao contràrio do poder (potestas), tinha suas raìzes no passado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade que o poder e a força dos vivos. Moribus antiquis res stat Romana virisque, segundo as palavras de Ennius.
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A caracteristica mais surpreendente daqueles que têm autoridade é que eles não têm poder. Cum potestas in populo auctoritas in senatu sit, "enquanto o poder reside no povo, a autoridade pertence ao senado" - (Cicéron, De Legibus, 3, 12, 38) - Porque a "autoridade", o aumento que o Senado deve acrescentar às decisões polìticas, não é o poder, ela nos aparece curiosamente imperceptìvel e intangìvel, tendo nesse aspecto uma semelhança surpreendente com a parte judiciària do governo de Montesquieu, que ele dizia a potência "en quelque façon nulle", e que constitue todavia a mais alta autoridade nos governos constitucionais - (Esprit des Lois, liv. XI, chap. VI). Mamsen a chamava "mais do que um conselho e menos do que uma ordem, uma opinião que nòs não podemos ignorar sem prejudìcios"; isso significa que "a vontade e as ações do povo são, como as vontades e as ações das crianças, expostas ao erro e às faltas e necessitam então de um "aumento" e uma confirmação da parte do conselho dos anciãos".
O caràter autoritàrio do "aumento" dos anciãos se encontra no fato que ele é uma simples opinião, que não precisa para ser compreendida nem de ter a forma de uma ordem, nem de recorrer à obrigação exterior - (Essa interpretação encontra aliàs uma confirmação na utilização idiomàtica latina : alicui auctorem esse para "aconselhar alguém".) - [.....]
Seja o que for, as revoluções, que nòs consideramos geralmente como rupturas radicais com a tradição, aparecem em nosso contexto como eventos onde as ações dos homens ainda são inspiradas e têm seu maior vigor nas origens dessa tradição. Elas parecem ser a ùnica salvação que essa tradição romano-ocidental tenha concedido para essas circunstâncias crìticas. O fato que não somente as diferentes revoluções do século XX mas todas as revoluções apòs a Revolução francesa tenham se desenvolvido mal, terminando na restauração ou na tirania, parece indicar que mesmo essas ùltimas formas de salvação concedidas pela tradição se tornaram inadequadas.
A autoridade como nòs conhecemos outrora, que nasceu da experiência romana da fundação e foi interpretada pela luz da filosofia polìtica grega, não foi em lugar nenhum restituìda, nem pelas revoluções nem pela forma ainda mais prometedora da restauração, nem sobretudo pelo estado de espìrito e correntes conservadoras que aparecem as vezes na opinião pùblica.
Pois viver em um domìnio polìtico sem a autoridade nem o saber conconmitante que a fonte da autoridade transcende o poder e àqueles que estão no poder, quer dizer se encontram novamente confrontados, sem a confiança religiosa em um começo sagrado e por conseguinte evidentes, aos problemas elementares do viver-juntos dos homens.


- Hannah Arendt - La crise de la culture, Qu'est-ce que l'Autorité ?, pg. 160 - 185 - Trad. Marie-Claude Brossollet et Hélène Pons - Folio-essais.

Surpresa ! ! !

Para quem não sabe eu moro na França, e atualmente eu estou trabalhando como auxiliar de enfermagem em uma estrutura religiosa para pessoas idosas, aposentadas e doentes.
Ontem, no meu trabalho encontrei um rapaz muito bonito, bem brozeado, bem vestido, ele era o neto de uma das senhoras que moram là; quando ele me viu ele foi logo dizendo :
" Você é brasileira " !
Eu disse :
"Como você sabe disso ?, geralmente os franceses pensam que eu sou àrabe ?"
E ele respondeu :
" Estou chegando do Brasil e os Brasileiros têm uma maneira de ser muito especial e inimitàvel "
- Ah !
Então ele começou a me falar do Brasil, das favelas, da miséria, da fome, da violência, das condições de vida realmente difìceis e escandalosa das crianças das favelas e das que vivem nas ruas....e dos ricos demasiadamente ricos, etc, etc, etc.....E ele também me disse estar procurando uma ONG Humanitària para voltar ao Brasil, e eu perguntei :
" Para fazer o quê ? "
E ele respondeu :
" Para evangelizar "
- Evangelizar ?! ? ! ? ! ? ! ? !
- Sim
- No Brasil ? ! ? ! ? ! ? ! ? !
- Sim, sim....eu sou padre....e os Brasileiros precisam descobrir a mensagem de amor e caridade de Jesus....
- Ah ? ! ? ! ? ! ? ! ?
Por essa eu nunca esperava ! ! !

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

A Verdade



“As pessoas tentarão compreender-se e me enquadrar em suas palavras. Elas buscarão a verdade.
Mas a verdade sempre carrega consigo a ambigüidade das palavras usadas para expressá-la. (…)
Cuidado com a verdade, gentil Irmã. Embora muito procurada, a verdade pode ser perigosa para quem a busca.
Os mitos e as mentiras tranqüilizadoras são muito mais fáceis de se encontrar e de se crer.
Se você encontra uma verdade, ainda que seja uma verdade temporária, ela pode exigir-lhe ajustamentos, mudanças dolorosas. Oculte as suas verdades dentro das palavras.
A ambigüidade natural irá protegê-la, então.
As palavras são muito mais fáceis de se absorver do que as agudas punhaladas délficas de mudos portentos. Com palavras você pode sempre gritar em coro: “Por que não me avisaram?’
“Mas eu os aviso. Eu a avisei, não com palavras, mas com um exemplo.”

- Leto Atreides, O Imperador Deus de Duna, de Frank Herbert.

Do Socialismo Fabiano ao Desastre Keynesiano

A criação, em 1894, da Sociedade Fabiana, cujo principal objetivo era a implantação do socialismo por meios pacíficos, revelaria que as classes dirigentes inglesas consideravam possível o fim do capitalismo. No apogeu do imperialismo britânico, a eliminação da pobreza parecia impossível às camadas pensantes da época. A prevalecer tal hipótese, seria fatal a substituição do sistema econômico vigente pelo socialismo. Nos dois últimos decênios do século XIX ainda perduravam fortes traços das condições sociais deprimentes, descritas por Friedrich Engels, em livro clássico, de 1844, quatro anos antes de Marx lançar o Manifesto Comunista , cuja primeira redação era do próprio Engels.

Se o advento do socialismo seria fruto de transição não-revolucionária, ficando implícita a preservação das liberdades democráticas, não haveria de faltar apoio financeiro à Sociedade Fabiana, criada pelo casal Sidney (1859-1947) e Beatrice Webb (1858-1943) e por Bernard Shaw (1856-1950). Aderiram à agremiação H. G. Wells, Leonard Woolf, John Maynard Keynes, Bertrand Russel e vários outros intelectuais do mesmo nível.

Dirigida por figuras de prestígio social e intelectual, a Sociedade não precisava mendigar recursos financeiros. Foram de tal vulto as doações milionárias recebidas, que permitiram ao casal Webb, logo em 1885, criar a London School of Economics and Political Science, que viria a ser uma das instituições de ensino superior de maior renome em todo o mundo.

Com o apoio da Sociedade à fundação do Partido Trabalhista, em 1900, os fabianos passam a fazer política, pois muitos deles eram dirigentes do movimento laborista. Em 1904, os trabalhistas ganham representação no Parlamento e passam a falar em nome de mineiros, ferroviários e trabalhadores de outros setores.

A Sociedade representava uma fonte de idéias para a bancada trabalhista na Câmara dos Comuns, destacando-se entre seus textos, em prol do gradualismo, as propostas sobre o salário mínimo, de 1906, a criação do Serviço Nacional de Saúde, de 1911, e pela abolição das restrições à ascensão social dos filhos de trabalhadores, de 1917. Os socialistas fabianos mantinham posição crítica diante do livre comércio e aderiram ao protecionismo com o objetivo de proteger a economia nacional contra a competição estrangeira.

Principalmente depois que os bolcheviques, a mando de Lênin, fuzilaram a família real e membros da aristocracia da Rússia, em julho de 1918, os governos do Ocidente, em particular os de países sob regime monárquico, passaram a temer a repetição de eventos dessa natureza. Causava profunda impressão nas sociedades ocidentais o noticiário sobre os sete ou oito milhões de órfãos russos, vivendo ao relento, como um dos reflexos da matança de aristocratas, proprietários rurais e burgueses. Nos sete decênios do regime comunista, a execução da família real era assunto proibido na extinta União Soviética. Finalmente, em 1998, o presidente Boris Ieltsin encerrou parte desse drama, ao presidir a cerimônia de translado dos restos mortais de Nicolau II, da esposa, três filhas e quatro empregados, da cidade de Sverdlovsk, nos Urais, para sepultamento no jazigo da família em São Petersburgo.

É provável que nas décadas de 20 e 30 do século passado, a severa repressão soviética ao capitalismo e às camadas sociais russas que a ele estivessem ligadas, tenha causado funda impressão nas esferas superiores da sociedade britânica. Era, portanto, plenamente justificado o consentimento dado ao proselitismo sobre a transição pacífica da economia liberal para o governo socialista.

Os fatos demonstravam que as classes dirigentes davam seu consentimento ao proselitismo sobre a transição pacífica da economia liberal para o governo socialista. Bastaria lembrar que os fabianos eram membros da aristocracia. Sidney Webb veio a ser barão de Passfield, em 1929, e automaticamente membro da Câmara dos Lordes. Depois de viagem à União Soviética, em 1932, o casal Webb regressou entoando louvores ao novo regime (Soviet Communism: a new civilization?). Outro fabiano, feito membro da Câmara dos Lordes, foi William Beveridge, nomeado pelos Webb Reitor da London School of Economics, cargo que manteve de 1919 a 1937. Lorde Beveridge estava fadado a ser o grande pioneiro do socialismo de pós-guerra, com a criação do Sistema Nacional da Saúde, que universalizou
os benefícios da saúde pública e antecedeu o processo de estatização que fez do governo britânico, até a vinda de Margaret Thatcher, um grande gestor ineficiente de empresas deficitárias.

Promovendo a difusão de literatura socialista, só o casal Webb era autor de 22 livros sobre o tema, a Sociedade contribuiu para a promoção de autores socialistas europeus, do século XIX, distinguindo- se os trabalhos de Robert Owen, Proudhon, Saint Simon, Louis Blanc e muitos outros, mas ignorou Karl Marx, o que não significa que não conhecesse em pormenor as obras do autor revolucionário alemão. Bem conhecido dos fabianos e da aristocracia era o prognóstico da “crise geral do capitalismo” feito por Marx, a partir da análise das crises econômicas periódicas, mais ou menos decenais, os chamados ciclos econômicos. Marx datava de 1819 a primeira crise e, durante sua existência, testemunhou uma sucessão desses movimentos cíclicos. Era firme a sua crença na chegada fatal da “crise geral” do sistema, determinando o fim do capitalismo. Os fabianos estavam compenetrados dessa “fatalidade”. Como seres “iluminados” pretendiam cumprir a missão histórica de conduzir os acontecimentos de modo a assegurar a transição pacífica.

Essa história liga-se ao ostracismo e ao ressurgimento triunfal de John Maynard Keynes. No Natal de 1919, a publicação de As Conseqüências Econômicas da Paz, colocou o professor de Economia de Cambridge entre as figuras políticas de maior projeção da Grã-Bretanha. Mas a súbita projeção logo se seguiria à sua exclusão dos círculos oficiais como autor de um ato que seria considerado de traição nacional. Keynes havia sido o terceiro membro da delegação britânica à Conferência da Paz, chefiada pelo poderoso primeiro-ministro Lloyd George, depois de ter prestado valioso serviço público ao governo de Sua Majestade, onde se distinguira por suma competência como conselheiro do Tesouro.

Anos antes de seu ataque aos termos do Tratado de Paz, Vladimir Ilich Ulyanov Lênin, exilado na Suíça, fez, em 1914, o prognóstico de que John Maynard estava fadado a se destacar como um dos intelectuais de maior prestígio do mundo ocidental. A confirmação plena do prognóstico de Lênin coube a um dos biógrafos da eminência de Cambridge, quando tentou descrever uma cena histórica: “Lembro-me da densa multidão e da luta para se encontrar na sala até um lugar onde ficar de pé, pois todo mundo queria ouvir Keynes.” Das palestras desses dias nasceu o livro As Conseqüências Econômicas da Paz, publicado em fins de dezembro de 1919, com a severíssima crítica de Keynes ao Tratado de Versailhes.

O reverso da medalha apareceria sob a forma de um editorial de The Times, de 5 de janeiro de 1920, acusando Keynes de estar prestando serviço aos inimigos dos Aliados. Era a mensagem de que John Maynard deixara de ser persona grata da aristocracia. Ele se afastaria ainda mais do poder, ao publicar, em 1926, As Conseqüências Econômicas de Mr. Churchill, em um ousado ataque à política econômica do então primeiro-ministro.

Em 1922, com 39 anos de idade, já excluído dos centros do poder, enamorara-se da bailarina russa Lydia Lupokova, do ballet de Diaghlev, em Paris, e a trouxe para Londres, instalando-a, inicialmente, no segundo andar do prédio onde ocupava o quinto. Em agosto de 1925, celebra casamento com Lydia, fazendo do ato um acontecimento badalado em toda a Europa. Tinha bastante dinheiro para esses luxos. Operando na Bolsa, enriquecia facilmente a si e às instituições acadêmicas e artísticas às quais estava ligado.

Em fins daquele ano, Lydia o induz a uma visita a Moscou. A Rússia avançava na reconstrução de sua economia, destruída pela guerra e pela intervenção militar estrangeira. Em 1928, na segunda visita do casal à capital dos Soviets, Keynes assiste ao lançamento do Primeiro Plano Qüinqüenal de Stalin, de 1929 a 1934, cumprido com antecedência de um ano. Em Moscou, Lydia tinha muito prestígio no mundo das artes e Keynes já era conhecido como intelectual de prestígio. Estabelecidos os meios de contato, ele passou a receber documentação regular sobre a execução do Plano.

Nos primeiros anos de 1930, enquanto as economias do Ocidente soçobravam no desemprego, o Plano de Stalin tinha como característica principal, aos olhos de Keynes, o pleno emprego. Era acentuada a escassez de mão-de-obra na Rússia Soviética. O filósofo de Cambridge extraíra do plano de desenvolvimento soviético a lição de que, para contornar as crises cíclicas do capitalismo, a solução estava no investimento público em todos os setores. Vale relembrar, a propósito, o conhecimento generalizado da tese de Marx sobre as crises econômicas periódicas e a “fatalidade” da crise geral do capitalismo.

As classes dirigentes britânicas, que conviviam cordialmente com os membros da Sociedade Fabiana e com suas teses sobre o gradualismo reformista, ficaram alarmadas diante do aprofundamento e duração da crise iniciada em outubro de 1929. A crise econômica agravara-se em 1932, quando 35% dos mineiros, 48% dos metalúrgicos e 62% dos trabalhadores em estaleiros estavam desempregados. Esgotaram-se os fundos de assistência social e a partir de 1932 os benefícios pagos aos desempregados foram reduzidos. Com a Lei do Desemprego, de 1934, o governo britânico restabeleceu os níveis dos benefícios vigentes em 1931 e criou os Conselhos de Assistência ao Desemprego. Nas chamadas áreas de forte depressão, foi instaurado um sistema de concessão permitindo aos empregadores o pagamento de menos impostos quando criados empregos nas indústrias deprimidas, inclusive de tecidos, aço e construção naval.

O clima era altamente favorável a John Maynard Keynes, reintegrado nos círculos oficiais após a publicação, em 1936, da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. O pavor da “crise geral” marxista deu causa a um apelo dramático da aristocracia a Keynes: “Salve-nos!”

Ansioso por voltar a ser parte integrante do mundo oficial, Keynes atendeu ao apelo das classes dirigentes e foi amplamente recompensado com homenagens que o elevaram à Câmara dos Lordes. Em 1944, em Livro Branco, o governo britânico consagrou o keynesianismo como doutrina oficial, sacramentando a política de crescimento econômico pela via do investimento estatizante.

No auge da Segunda Guerra Mundial, William Beveridge, futuro lorde e barão, elaborou os célebres Relatórios que trazem o seu nome e foram o primeiro passo na implantação do Consenso Keynesiano. O relatório principal, de 1942, intitulado O Seguro Social e Serviços Conexos, e conhecido como Beveridge Report, tinha por objetivo um amplo programa de promoção social, pretendendo combater a pobreza, as doenças, a ignorância e o desemprego. A peça principal consistia na administração governamental de um sistema de “seguro compulsório.” Todo trabalhador, ao contribuir para um sistema de seguro nacional, com parcela deduzida de seu salário semanal ou mensal, estaria ajudando a construir um fundo que viria a pagar benefícios aos desempregados, aos enfermos ou as vítimas de acidentes do trabalho. Os benefícios seriam de um nível capaz de assegurar a sobrevivência do marido, da esposa e dos filhos. Haveria benefícios para viúvas e auxílios aos tutores de órfãos, assim como para a manutenção de todos os filhos do casal, de modo que as famílias numerosas não passassem dificuldades. A lei permitiria, também, a concessão de benefícios a recém-casados, à maternidade e auxílio funerário.

Para os que não tivessem feito contribuições regulares, durante certo tempo, ou não fossem contribuintes do Sistema Nacional de Seguro, haveria dotações governamentais destinadas à assistência social. À margem das cláusulas da seguridade social, haveria acesso universal à educação, dos 7 aos 16 anos de idade, e aos serviços de saúde, com plena gratuidade, havendo previsão orçamentária para tais fins.

No segundo relatório, de 1944, publicado sob o título de Pleno Emprego numa Sociedade Livre, Beveridge descreve de que forma esse objetivo seria realizado. Ele menciona medidas alternativas para essa consecução, inclusive o “estilo keynesiano” de regulação fiscal, o controle direto da força de trabalho e o controle estatal dos meios de produção. O que impulsionava o pensamento de Beveridge era a Justiça Social e a criação de uma sociedade ideal, depois da guerra.

Com a vitória do Partido Trabalhista nas eleições de 1945, o governo que daí surge começa a implementar as propostas de Beveridge, as quais representam a base do Moderno Estado do Bem-Estar. O primeiro-ministro trabalhista Clement Atlee criou o Serviço Nacional de Saúde, em 1948, com tratamento médico gratuito para todos. Foi também introduzido um sistema de benefícios como base da seguridade social, de modo que a população seria protegida “do berço ao túmulo”.

Ao conferir a Beveridge o título de barão, em 1946, a aristocracia deixou claro que não somente consentia com as propostas do novo lorde, mas dava apoio à sua implementação, revelando, assim, disposição para pagar preço alto por sua crença no prognóstico marxista sobre o fim do capitalismo.

Não obstante os resultados eleitoralmente positivos da política de bem-estar social, o governo trabalhista de Clement Atlee perdeu as eleições gerais de 1951, quando o Partido Conservador repõe Winston Churchill no poder. Os elevados gastos decorrentes da restauração imobiliária, no após-guerra, os problemas da desmobilização, a complexa reconversão das indústrias de guerra para a paz e os problemas administrativos, resultantes do novo contexto, contribuíram para a derrota trabalhista, a qual não seria definitiva.

Além do vasto programa na área social, o governo Clement Atlee empreendeu um amplo programa de estatização, alcançando inclusive as usinas de energia elétrica, a siderurgia, o gás, os transportes, as minas de carvão, a aviação comercial e o cabo submarino. Em 1951, o governo britânico empregava 26% da força nacional de trabalho, tornando o aparelho do Estado excessivamente burocratizado. Ao mesmo tempo, o governo ficava em posição vulnerável em conseqüência do elevado custo dos programas de saúde, educação e bem-estar em favor de toda a população.

Os governos conservadores que se seguiram ao trabalhista (1945- 1951) respeitaram o Consenso Keynesiano. O Partido Conservador vence os pleitos de 1951, 1955 e 1959, governando o país até 1964. O pacto social foi mantido sem contestação. Em 1951, com a vitória dos conservadores, Winston Churchill volta ao poder, seguido de Anthony Éden (1955-1959). Nas eleições de outubro de 1959, vence o conservador Harold Macmillan, que governa até 1964. De 1964 a 1968, o trabalhista Harold Wilson ocupa o cargo de primeiro-ministro. Houve também eleições gerais em 1966, confirmando Wilson no poder.

Algumas indicações justificam a afirmação de que o citado Consenso começa a expirar em 1970, quando os conservadores vencem as eleições gerais. No decênio de 1960, o grevismo ganha ímpeto e chega a extremos limites na década seguinte, para ser exercido como um instrumento de pressão sobre toda a sociedade. As centrais sindicais operárias sentem-se tão poderosas que passam a ser consideradas como “o Estado dentro do Estado”. Durante o governo conservador de Edward Heath, de 1970 a 1974, houve 2.917 greves, com 14 milhões de dias parados. Em fins de novembro de 1973, o sindicato dos mineiros, dirigido pelo radical Arthur Scargill, impôs o fim do trabalho em horas extras. O governo de Heath declarou estado de emergência. Em dezembro, o sindicato proclamou a semana de três dias e em janeiro de 1974 convocou uma greve geral. Num esforço desesperado para definir a situação, o primeiro-ministro conservador convocou eleições gerais com o objetivo de decidir a questão essencial: quem governa a Grã-Bretanha? Os trabalhistas venceram o pleito e, no dia 4 de março, Heath deixou Downing Street 10 (sede do governo), cedendo o lugar ao Barão Harold Wilson, que enfrentará, nesse ano, inflação de 27%. Em 1975, a inflação baixa para 25% e as centrais sindicais impõem aumentos gerais de salários da ordem de 30%.

O país estava ingovernável. Durante o século XIX e até o ano de 1960, a Grã-Bretanha sempre esteve à frente dos países do continente em termos de produção per capita. A situação se inverteu, pois em 1973, os países da Comunidade Econômica Européia estavam de 30% a 40% acima. Em termos de produtividade, Alemanha e a França estavam 50% acima da Grã-Bretanha.

Em abril de 1976, depois de eleições gerais, é eleito premier Lorde James Callaghan, também trabalhista, que governa até maio de 1979. Prevalecia, desde 1974, a palavra de ordem dos sindicatos de tomada pelo Estado de todos os meios de produção. A Leyland, a maior empresa automobilística britânica, e a British Aerospace foram encampadas, quando faltavam recursos para socorrer inúmeras empresas à beira da falência. Perdera vigência o pacto social. À luz desse clima de desordem, entende-se que foi necessário um esforço considerável e prolongado para se reduzir a inflação a 3,2%, em 1987, com ligeira alta até 1991, mas daí em diante continuou a baixa até chegar a 2% no ano 2000.

Margaret Thatcher, líder do Partido Conservador, ganha voto de confiança da agremiação em 28 de março de 1979 e vence as eleições de 3 de maio, depois de algumas semanas de campanha em que o Partido Trabalhista era retratado como o partido das greves, da estatização e dos salários sem controle. Outra característica combinava estagnação econômica com inflação e desvalorização da moeda. As greves explodiam por toda parte, deixando a classe trabalhadora como viciada em greve, origem da baixa produtividade por trabalhador.

Depois das 2.917 greves de 1970-1974, com 14 milhões de dias parados, no governo conservador, o governo trabalhista de Harold Wilson, de 1975 a 1979, conseguiu amainar a pressão do grevismo, fazendo o número total de greves baixar para 2.345, mas com aumento do número de trabalhadores envolvidos. Registra-se no período a perda de 11,6 milhões de dias de trabalho perdidos.


A política fiscal asfixiava o setor privado, ao fixar a alíquota de 83% para os que pagavam imposto de renda e de 98% para os ganhos de capital. No livro já antes referido, Soviet Communism: a new civilization?, os Webbs ressaltam que o governo soviético punia quem tentasse obter lucro. A taxação mencionada quase reproduzia, na Inglaterra, situação idêntica, no que se relacionava às restrições ao capital. Margaret Thatcher seguiu caminho inverso ao promover substancial redução de impostos e ao acelerar a privatização de empresas, estimulando-as a obter lucro para fortalecer a caixa do Tesouro.

A sociedade mudou de atitude diante da empresa privada com a transformação dos trabalhadores em acionistas. Segundo John Vickers e George Yarrow, autores que analisaram os resultados práticos da política da conservadora Thatcher (Privatization an Economic Analysis), o número de portadores de ações de empresas passou de 3,6 milhões para 9,2 milhões, nos anos imediatos, abrangendo 22% da população adulta. Em 1990, o número de acionistas atingia 11,5 milhões de pessoas. Nos primeiros leilões, para a venda das 15 estatais mais importantes, os preços estavam subavaliados em 21,5%. No dia seguinte, as ações da Britsh Telecom valorizaram 33%, as da British Airways – 35% e as da Rolls Royce – 36%. Os trabalhadores das ex-estatais participaram desse lucro, pois a eles foi dada a oportunidade de comprar blocos de ações. Conforme os autores citados, havia mais trabalhadores proprietários de ações do que trabalhadores sindicalizados, o que ajudou a reduzir o número de greves nas Ilhas Britânicas. Houve também um programa do governo para a venda de casas às classes de menor renda, o que elevou o número de proprietários de residências de 55%, em 1979, a 63%, em 1990. E apesar da redução de gastos do governo, os serviços de saúde receberam 60% mais recursos de 1980 a 1987. Os lucros auferidos inicialmente estimularam a entrada de novos investidores no mercado, garantindo melhores preços para as ações novas. Esse impulso inicial à ampliação do mercado de capitais recolocou a City de Londres entre as maiores praças financeiras do mundo.

A política econômica de Thatcher dera causa a uma nova atitude da sociedade diante da economia de mercado, abrindo a perspectiva de restauração do poder político e econômico da Grã-Bretanha no quadro mundial. Em 1975, o premier trabalhista Harold Wilson criou o Conselho Nacional de Empresas, com programa de investimento em indústrias promissoras, tais como a eletrônica e a biotecnologia, mas, em vez disso, os seus recursos foram dissipados para se evitar uma onda de falências. O Reino Unido vivia tempos sombrios.

O sindicalismo selvagem transformara a ex-grande potência em nação à beira do colapso, seguindo na direção de lugar humilhante entre as nações do Terceiro Mundo. Não eram irrelevantes os problemas colocados diante da primeira-ministra Margaret Thatcher, em maio de 1979. Simultaneamente com o combate à inflação, a restauração do valor da moeda e o equilíbrio das contas públicas, tornava-se imperioso restabelecer um mínimo de ordem na vida da nação depauperada pelo grevismo. Embora o país tenha ocupado o nono lugar no mundo, em termos de renda per capita, ocorreu a baixa para o décimo quinto lugar, em 1971, para o décimo oitavo em 1976 e para o vigésimo quando Margaret assume o poder em 1979.

Impunha-se definir um quadro de restrições ao uso do direito de greve, inclusive a consulta prévia, aos trabalhadores sindicalizados, por meio de votação secreta, 15 dias antes do início de cada greve, a qual só podia ser decretada se contasse com o apoio declarado da maioria dos membros de cada sindicato. Os piquetes ficaram restritos ao local de trabalho, proibindo-se os movimentos de solidariedade a grevistas. Em 1982, foi facilitada por lei a demissão de trabalhadores sem consulta à Justiça do Trabalho, tornando-se possível processar um sindicato, com pedido de indenização de 10 mil a 250 mil libras esterlinas por ações ilegais. Em 1983, o governo determinou que as centrais sindicais realizassem eleições a cada cinco anos, abertas a todos os filiados, com voto secreto, para a escolha de novos dirigentes. O objetivo era evitar a perpetuação de lideranças radicais.

Os mineiros decidiram travar batalha com a chamada Dama de Ferro, declarando greve que durou 12 meses, em 1984-1985. No setor da mineração o quadro vinha sofrendo mudança desde 1947, ano em que estavam em operação 958 minas, empregando 704 mil trabalhadores e produzindo 187 milhões de toneladas. Em 1957, esse número baixava para 850, com 699 mil trabalhadores e 213 milhões de toneladas de carvão produzidas. Em 1967, o número de minas cai para 483, com 456 mil mineiros e a produção de 177 milhões de toneladas. Em 1977, as minas se reduzem a 238, com 242 mil trabalhadores e a produção de 108 milhões de toneladas.

Em comparação com o quadro sindical de 1947, o líder dos mineiros Arthur Scargill comandava apenas um resíduo de menos de duzentas minas, com menos de cem mil trabalhadores e produção inferior a cem milhões de toneladas, quando desencadeou a greve de 1984-1985.

A primeira-ministra contou com o pleno apoio da opinião pública quando decidiu derrotar o sindicato, fechando a maior parte das minas restantes. Essa decisão, repercutiu intensamente em todo o país e no exterior, mas parecia não ter abalado o movimento sindical.

Pois, em 1985, Thatcher, sentindo-se desafiada, resolveu travar batalha com os sindicatos ferroviários, que eram subdivididos no regime chamado de closed shop, ou seja, quando os foguistas decidiam parar, toda uma ferrovia parava. O mesmo ocorria quando a decisão de parar era dos bilheteiros, dos gerentes de estação ou dos homens da agulha. Diante de uma ameaça de greve geral ferroviária, Margaret Thatcher convocou a Downing Street os líderes dos ferroviários e leu para eles o texto de um decreto que extinguia as ferrovias britânicas. Foi o bastante para não haver greve.

Coube à primeira-ministra pôr cobro à era do socialismo, à moda britânica, instaurado a partir de 1945. Nos anos 80, a atmosfera política não mais comportava a pregação social-reformista da Sociedade Fabiana, que vinha desde sua fundação, um século antes. Após 30 anos de vigência do Consenso Keynesiano, iniciado em 1945, a classe média inglesa demonstrava sua aversão à decadência econômica do país, colocando a bandeira nacional como pano de chão na entrada dos edifícios. Vivenciava em sua plenitude as conseqüências econômicas de Mr. Keynes, fruto da crença na balela da crise geral marxista.

A política adotada pela primeira-ministra Margaret Thatcher, com ênfase na privatização, na estabilidade monetária e na redução da carga tributária, encerrou, em definitivo, esse capítulo da história econômica do Reino Unido, que assim voltou a fazer parte da constelação de grandes potências.

Carta Mensal n° 632 – Confederação Nacional do Comércio.

Crise polìtica - Resultado de um desvio filosòfico

[.....] Nòs podemos também considerar a resposta que Rortry dava à nossa questão : o que o senhor faria se o senhor ensinasse a Téhéran ? " Eu procuraria as passagens liberais do Alcorão ", - (Do pragmatismo em polìtica", Le Banquet, n° 3, 2° semestre 1993, pg.14) - ressaltando todavia que seria uma atitude de "questão pràtica" . Sua resposta não era evidentemente filosòfica, mas sem dùvida polìtica. Sua preucupação não era de se pronunciar sobre o caràter liberal ou não do Alcorão, mas de tentar difundir os princìpios liberais em uma sociedade teocràtica. Se ele não agiu dessa maneira em filosòfo, sua resposta foi realmente filosòfica, pois a filosofia pode nos dizer que nòs sò podemos nos comportar dessa maneira se nòs temos uma preferência liberal e, mais amplamente, se em um dado momento e em circunstâncias particulares nòs colocamos nossa idéia de dever polìtico antes da preucupação da verdade. Essa leitura pragmàtica esclarece aquela que pode conduzir os filòsofos fundadores: ou eles acreditam no que eles pretendem realizar, e eles se enganam; ou eles não acreditam nisso e nòs podemos afirmar que eles têm uma estratégia. Todavia ela não é filosòfica, mas verdadeiramete polìtica. Cada um, por razões verdadeiramente conformes à democracia, pode desejar mostrar que é preciso ser tolerante, respeitar os direitos, repudiar o racismo, etc. Essas causas polìticas podem justificar (a nossos olhos ) que nòs utilizamos todos os meios a nossa disposição, e particularmente a retòrica, para fazê-los triunfar. Se o povo espera os fundamentos considerando uma necessidade antropològica de crença, o objetivo pode justificar que nòs façamos o esforço de fazer acreditar. Existe nisso mais do que um interesse de butique - , na realidade uma concepção da civilização. Nòs podemos então ao mesmo tempo respeitar politicamente essa atitude e desmascara-la filosoficamente ( em um livro de filosofia por exemplo que não tem vocação para ser lido publicamente nas reuniões eleitorais).
È também em virtude do princìpio de separação das ordens que nòs podemos esperar alcançar uma compreensão exata da especificidade do polìtico, que é o domìnio das paixões. Ele pode ser assaz razoàvel, considerando suas finalidades, para o polìtico procurar jogar no registro da emoção tentando convencer sobre a realidade de um escândalo, de chamar o povo ao combate contra a injustiça e lhe fazer conscientizar-se de males intoleràveis. Isto não poderia ser o registro do discurso do filòsofo. Nòs sò poderemos julgar, em um plano rigorosamente polìtico e não filosòfico, do fundamento positivo desse apelo à emoção em função de nossa apreciação dos fins dessa atitude. Se eles nos parecem ignòbeis, se a emoção é um artifìcio para dissimular realidades que não podem ser reveladas, se, em suma, ela é um instrumento de mentira, nòs não deveremos lhe conceder a mìnima consideração. È igualmente por essa razão que nòs percebemos melhor os diferentes aspectos da ação polìtica, que pode utilizar ora uma forma de racionalidade argumentativa, ora os movimentos populares, que nòs teremos uma melhor compreensão da realidade. Nòs então sò saberìamos a partir desse momento fazer da polìtica real, além dos ideais de educação, de luz e de razão que nòs desejamos promover, um decalque imitàvel da discussão filosòfica. Em suma, a filosofia impõe uma utilização moderada, quer dizer crìtica, da filosofia.

- Nicolas Tenzer - Pour une nouvelle philosophie politique - Cap. 2 - A crise polìtica, resultado de um desvio filosòfico.

Os Poderes contra os Cidadãos - 16 -

A elite não gosta da Repùblica. A elite, eu quero dizer exatamente aqueles que conquistaram algum poder real na sociedade, com seu trabalho ou seu talento. Isso causa inconvenientes, porque os homens dessa espécie fazem o que é comum nòs chamarmos a opinião. Eu vejo administradores, engenheiros, homens de letras. Todos têm em comum que eles participam da vida brilhante e que eles sò pensam em se estabelecer nela o mais solidamente possìvel no cìrculo dos ricos, através relações e casamentos. Unicamente por isso eles têm interesses Contràrios à Justiça; é assaz evidente que a liberdade deixada às associações operàrias é sò para diminuir os benefìcios daqueles que não trabalham com suas pròprias mãos. Està claro também que o restabelecimento dos tratamentos inferiores nos quais nòs somos naturalmente conduzidos não é favoràvel àqueles que têm Cargos Poderosos. Alguém me disse recentemente que um importante funcionàrio dos correios que jà ganhava quinze mil francos aumentou de repente seu salàrio até dezoito mil, conservando as mesmas funcões. [.....] Os grandes burocratas Temem sempre alguma luz viva que Esclareceria subitamente seus Salàrios e seus TRABALHOS. Não que os deputados lhes façam medo; os deputados vivem a mesma vida que eles, são relacionados a eles de mil maneiras, e sabem muito bem o que é a miséria com nove mil francos, porque eles não a julgaram suportàvel. È o PODER DOS ELEITORES, os PROGRESSOS da INSTRUCÃO, o DESPERTAR do JULGAMENTO que Faz MEDO a eles TODOS. Assim eles dizem agora que eles tinham uma outra idéia da Repùblica, e que os Poderosos deveriam realmente dirigir e governar ao invés de Ter que Justificar a Cada Instante suas CONTAS [.....]
Mas eu tenho mais receio das paixões do que dos interesses. O Mundo as alimenta habilmente com mil maneiras excitando as ambições e a CUPIDEZ. Existe uma fùria muito surpreendente naqueles que se privam por necessidade de uma despesa de Luxo; no fundo deles mesmos eles sabem muito bem que suas queixas não são justas, e que eles jà Possuem DEMAIS;
assim a còlera deles se eleva contra o que eles têm de melhor neles mesmos; é por isso que as Dìvidas deles as Estimulam CONTRA O POVO. Mas sobretudo Reina no Mundo uma Opinião que é preciso se curvar a ela. Existem Argumentos Comuns contra o Operàrio, Contra O ELEITOR, contra o Deputado, e seria inconveniente de PROTESTAR CONTRA ESSES ARGUMENTOS. Uma Discussão Séria não é POSSÌVEL; aquele que quer Seguir uma Idéia é mal educado sò por essa razão; é verdade também que qualquer tese fere alguém; o Homem Jovem logo compreende as regras do jogo; ele deve Renunciar a TODOS os SUCESSOS, e mesmo ao AMOR; ele deve se Resignar a algum trabalho obscuro e mal pago; ou então se separar das opiniões que ainda não o conveceram. Ele praticamente nunca hesita a fazer isso. Existe no MUndo um Recrutamento de Todos os TALENTOS CONTRA A Repùblica. Assim o ELEITOR é ABANDONADO a ele mesmo, melhor ainda, ele é TRAÌDO, DESPREZADO, INSULTADO pelos mais instruìdos. Ele deve compreendê-lo; e quando é dito que a Repùblica é contra a Natureza, contra a Ciência, contra a Razão, ele não deve se surpreender, mas ao invés disso se perguntar :" QUANTO È PAGO a ESSA PESSOA, PARA QUE ELA ME LEVE AO DESESPERO DE MIM MESMO ? "

- 15 de dezembro de 1910 -

- Alain - Propos sur les pouvoirs.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Filosofia polìtica - 1 -

[......] Eu preciso estudar a maneira pela qual uma sociedade consegue conjugar dinamismo econômico e alto nìvel cultural e educacional para o maior nùmero de pessoas possìvel. Isso significa concretamente alcançar uma inteligência do polìtico na consideração e no tratamento dos males sociais mais graves, inteligência que supõe a possibilidade de limitar na medida do possìvel a quantidade de indivìduos saindo da sociedade, muitas vezes de maneira violenta. Todas essas questões estão no primeiro plano polìtico, e a resposta para elas depende primeiro do governo e da classe polìtica. A solução reside, na quasi-totalidade dos casos, no estabelecimento de uma relação adequada entre o Prìncipe e o povo, como tinha visto Machiavel, e na capacidade daquele que està habilitado a exercer efetivamente o poder - o que é todo o contràrio do totalitarismo - a partir da seleção dos objetivos a alcançar até a realização integral, incluindo os detalhes mais locais, do que foi decidido. [.....]

[.....] ademais eu sempre tive horror do pensamento aproximativo, impreciso e irreal e acredito que o valor de um pensamento - como de um projeto polìtico - està na faculdade de se afrontar com os detalhes que formam a substância da realidade. [.....]

[....] Muitos erros na gestão de affaires pùblicas vêm de seu "esquecimento" e de uma ignorância sideral, no seio do aparelho do Estado, de uma arte de governar que permanece o que a filosofia pode dar a melhor contribuição. O mundo polìtico ainda deve ser construìdo.

[....] como construir seriamente hoje um projeto polìtico ? Eu pensei sobretudo que seria honesto e filosòficamente indispensàvel de considerar [....] à inquietude do nosso devir. Eu não sei verdadeiramente até que ponto ela é determinante da filosofia, justamente porque se as razões da inquietude são verdadeiras, filosofar seria assaz vão. È certamente o ùnico senso vàlido, na lògica, para o engajamento polìtico.

- Nicolas Tenzer - Pour une nouvelle philosophie politique - Retour au bon gouvernement - 40 - 43




A crise filosòfica da democracia


[....] A crise polìtica é então em primeiro lugar uma crise de projetos, e para ir além, uma crise da construção do projeto. [.....]

[.....] Na realidade, a polìtica não tem suficientemente julgamento e espìrito de decisão por causa de um congestionamento de conceitos filosòficos as vezes duvidosos, de uma utilização pouco rigorosa da filosofia, de um embaraço das remanências teòricas que desviam. Nòs nos acreditamos então autorizados a analizar a crise polìtica como resultando de um desvio filosòfico e como o sinal de um esquecimento das regras fundamentais da filosofia. O problema polìtico mais importante poderia ser de conseguir filosòficamente uma emancipação da filosofia e de realizar um retorno ao fato.

- Nicolas Tenzer - Pour une nouvelle philosophie politique - Cap. 2 - A crise filosòfica da democracia - pg. 48 - 49.



Crise polìtica, resultado de um desvio filosòfico

[.....] Como considerar nossos valores, decidir e argumentar, sem se referir a um absoluto ou a uma verdade ? Em outras palavras, como aprender a emancipar o valor dos valores de sua verdade e o projeto polìtico de um fundamento filosòfico ? [....]

[.....] Entre uma autoreferência impossìvel e um universalismo improvàvel, como nòs podemos navegar ? [....]

- Nicolas Tenzer - Pour une nouvelle philosophie politique - Cap. 2 - A crise polìtica, resultado de um desvio filosòfico.




Uma Regra Importante !


[....] quando o filòsofo quer fazer polìtica, ele deve impor silêncio a sua filosofia e, como qualquer cidadão, ele deve aceitar de descer no reino da opinião. Quando um polìtico faz polìtica, ele pode se apoiar na filosofia para compreender a realidade, e não para dar alguma autoridade a seu projeto. O esquecimento dessa regra tem as vezes consequências funestas: nòs esquecemos particularmente que um adversàrio belicoso da democracia luta com armas na mão, e não com a filosofia. Trata-se primeiro de condena-lo pelo que ele faz ou quer fazer e não pelo que ele diz. O que é primeiro abominàvel não é que o que ele diz é falso, mas as consequências que isso provoca. Nòs não precisamos esperar de ter fundado na razão a falsidade do racismo para combatê-lo. O que està em jogo não é a filosofia, mas os valores em que nòs acreditamos.

- Idem -

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Os poderes contra os cidadãos - 15 -

Como eu lia a "Història de um lavrador", de Erckmann-Chatrian, eu vivia, pela imaginação, no tempo da Revolução francesa; eu procurava compreender como esse povo, tanto tempo tiranizado, despojado e desprezado, havia mostrado tão de repente sua potência, simplesmente através sua confiança nele mesmo; mas eu admirava também essa astùcia dos privilegiados que prometiam sempre e depois retiravam suas promessas, e que passavam de uma louca confiança ao terror louco, segundo às aclamações e os estrondos populares. Assim que as coisas voltavam a uma espécie de equilibrio, eles tinham novamente esperança na velha arte de governar, experimentada por tantos séculos; sempre a moderação deslizava para a traição, sempre o poder absoluto se fechava em uma espécie de cristalização inevitàvel. O Império, a Restauração, o Império novamente, agrouparam as mesmas forças; toda a elite sempre se encontrou no centro, se recrutando da mesma maneira, tentando a mesma resistência enfurecida; e sempre os sucessos surpreendentes lhe deram razão. Aqueles que dizem que a monarquia é um estado natural no qual nòs voltamos sempre, dizem uma coisa assaz evidente. E para mim os reacionàrios de hoje se parecem com aqueles desses tempos de outrora.
Existe uma corte, hoje como outrora, e cortejadores, mesmo sem rei. Existe uma vida rica e enfeitada; o homem que se permite de entrar nela perde para sempre a liberdade de seu julgamento. È inevitàvel. A vida que acontece no baile, no jantar, no teatro, na arte de se vestir, é uma espécie de prova por ela mesma, e muito poderosa. E a opinião acadêmica, que é a opinião das mulheres mais brilhantes, dos escritores, dos dansarinos, dos advogados, dos médicos, de todos os ricos enfim e seus parasitas, a opinião acadêmica logo vai limpar o espìrito de qualquer ambicioso.
Que um homem de boa fé queira voluntariamente refletir nisso, que um sucesso qualquer, no mundo que faz sucesso, possa se medir exatamente à quantidade do espìrito monàrquico que pode se mostrar.
E a elite, apesar de uma frivolidade aparente, sabe muito bem reconhecer o mais pequeno grão de traição; cada um é pago na hora, e segundo seu mérito. De maneira que é preciso dizer que a medida que um homem se empurra no mundo, ele é mais estreitamente amarrado. " O pensamento de um homem no seu lugar, é seu tratamento", essa forte màxima de Proudhon encontra sua aplicação desde que nòs temos um elevador, um carro e um dia de recepção. Não tem nenhum escritor que possa viver de sua pluma e ao mesmo tempo desprezar abertamente esse gênero de avantagens. Nòs podemos considerar, mas é preciso passar nesse caminho; ou então viver como um selvagem, eu quero dizer renunciar a toda espécie de Importância.
Nòs nos perguntamos sempre porquê os reacionàrios têm confiança nos traidores, que seguiram visivelmente o pròprio interesse deles, e vão ingenuamente do lado onde està a lisonja. Mas justamente a traição é uma espécie de garantia, se nòs ousamos dizer; pois o interesse nunca muda, ele não està ora aqui, ora ali; ele puxa sempre à direita. De maneira que aquele que traiu seu povo aparece como dominado para sempre pelo luxo, pela vida fàcil, pelos elogios, pelo salàrio enfim do Homem de Estado. O outro partido não oferece nada igual. Então nunca existe duas espécies de traição, sò existe uma. Toda fraqueza de qualquer homem o puxa do mesmo lado. A declive està na direita.

- 12 mars 1914 -

- Alain - Propos sur les pouvoirs - Pg. 61 - 62 -

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Do julgamento polìtico - Reflexão - Corneluis Castoriadis.

1. Em primeiro lugar, o que nòs chamamos julgamento polìtico ? Certo, como o lembra Vincent Descombes, o julgamento polìtico, como todo julgamento pràtico, visa não o "verdadeiro", mas o "bem", ele não é da forma " eu penso A porque B", mas "eu quero X porque Y ". As questões consideram o domìnio de X e Y, que pertence ao prakton mas não causa este, e a especificidade desse porque.
È preciso distinguir o julgamento no interior de um regime e o julgamento polìtico que considera o regime como tal. Nòs somos em 1788: a linguagem comum vai qualificar de polìtico um julgamento como "Necker deve fazer X para salvar a Monarquia" da mesma maneira que um outro tipo de julgamento " a Monarquia deve ser abolida e substituìda pela Repùblica". Nòs consentiremos que, considerando absolutamente, o primeiro não se faz uma questão filosòfica. Ele enuncia, mesmo se é explicitamente um "axioma" ( a Monarquia deve ser salva), a partir disso ele pode se desenvolver, de maneira racional com relação aos meios (zweckrationell), as consequências, o que pode ser horrivelmente complicado na realidade, mas como tal, não é relativo aos princìpios ( a não ser que outras clàusulas intervenham, por exemplo: ".....através todos os meios").
A ambiguidade consideràvel, pode ser retirada se nòs aceitamos de distinguir entre o polìtico - o que é relativo à dimensão do poder na sociedade, seu exercìcio e o acesso a ele - , e a polìtica, que é relativa à instituição in toto da sociedade, incluindo evidentemente a dimensão do poder. O polìtico não reconsidera os fins e os princìpios, e nòs o encontramos necessariamente em toda sociedade; a polìtica, como atividade considerando a questão do melhor regime ou da boa sociedade, é uma criação essencialmente gréco-européenne.

2. Esse esclarecimento me parece indispensàvel para responder à questão colocada por Vincent Descombes: tudo é polìtica ? Claro que não, se polìtica quer dizer tendo relação ao poder. Mas claro que sim, por definição nòs podemos dizer, se nòs consideramos a polìtica no sentido definido acima. Ainda é preciso evitar os mal entendidos. Nòs gostarìamos é claro, pelo menos a maioria, de colocar limites a toda atividade instituante ( légiférante) explìcita; mas isto mesmo é uma posição e uma decisão polìticas. A idéia que tudo não deve ser polìtico (ou submetido à lei "divina", etc.) é uma criação social-històrica muito recente (mais ou menos equivalente à criação da democracia). Mas esses limites dependem, também, de uma decisão polìtica. È preciso uma decisão polìtica - instituante - para declarar e assegurar que o que se desenvolve no "oikos" ou no "agora" escapa às decisões e ao poder do "ecclesia", nos limites traçados por essa decisão ela mesma.
Que se trate nesse caso de uma decisão polìtica ( instituante ) mostra o fato que a decisão contrària não somente pode ser tomada ( como no caso do totalitarismo comunista ou nazista), mas foi efetivamente tomada por quase todas as sociedades quase sempre na història. Tal foi, nòs o sabemos, o caso de todas as sociedades "religiosas" (primitivas como històricas) que sempre regularam com injunções e princìpios "divinos" uma parte enorme das atividades particulares (no oikos) como as particulares-pùblicas ( no "agora" ), como sempre querem fazer as sociedades islâmicas puras e duras. Que umas e outras não tenham podido (ou, compreendendo essa impossibilidade, não quiseram), fazer a 100% depende de outros fatores e particularmente da impossibilidade de controlar totalmente os homens e as circuntâncias - se bem que a interiorização completa da instituição tenha sempre conduzido a tocar quase esse limite.


3. O caso do "bom nazista" não me parece ser um bom exemplo - e, longe que ele seja "construìdo para ser difìcil", ele contem vàrios elementos ad hominem: o horror compartilhado do nazismo, e, sobretudo, sua derrota. Ele é ao mesmo tempo "politicamente correto" e historicamente oportunista. O que seria se nòs perguntassemos: o que hà de bom, em um sentido qualquer ( instrumental ou ùltimo), no fato que o reitor " da universidade de Téhéran seja um bom islamista ou, jà que pensamos assim, o reitor da universidade de Salamanque no século XVI um bom cristão ?" Então, que você coma ou que você beba ou que você faça qualquer coisa, faça tudo pela glòria de Deus " ( Cor. I, 10, 31). Ora nòs sabemos que a interpretação do que exige a glòria de Deus variou demasiadamente segundo as épocas, e seria arriscado de pretender que as interpretações mais extrêmas eram incompatìveis com a sobrevivência ou mesmo a expansão das sociedades que a alimentam. Além disso, existiu poucas expansões massivas e ràpidas na història como a do Islam a partir de século VII.



4. Qual pode ser o porquê.....do julgamento polìtico, como nòs podemos justificar que nòs queremos tal tipo de sociedade e não um outro tipo ? Nòs supomos que ninguém aceitarà como justificativa vàlida um enunciado como "....porque està escrito no Lévitique 20,13 que...." ou a invocação A Polìtica tirada da Escritura Santa. Isso jà nos separa da imensa maioria dos humanos através as idades, para quem esse tipo de justificativa era não somente legìtimo mas o ùnico concebìvel. Nòs nos situamos em um campo social-històrico, o campo do logon didonai, prestar contas e prestar razão. Mas prestar razão como ?
Vincent Descombes tem razão de denunciar o que eu havia chamado a confusão entre a història universal e um seminàrio de filosofia em Francfort, e de rejeitar o que ele chama a filosofia fondationnaire. O que nòs devemos querer, em polìtica não pode ser o resultado de um raciocìnio discursivamente deduzido de um fundamento indiscutìvel. Um tal fundamento não existe nem em filosofia "pura" ( e claro que nem o princìpio de contradição nem as condições da "comunicação" não saberiam cumprir essa função). Da mesma maneira é inaceitàvel um simples décisionnisme, pois ele sò faz repetir o que é: os nazistas são nazistas porque eles decidiram de ser nazistas, os cristão também, e os partidàrios do FSI também. Cada um "sempre jà" decidiu de ser alguma coisa (mesmo um cidadão cìnico, apàtico ou covarde) e se nòs permanecemos nessa simples apresentação tautologique dos fatos nenhum julgamento polìtico tem uma razão de ser.
Mas porquê é preciso existir um julgamento polìtico, porquê nòs devemos ter tais julgamentos ? Porquê não cultivar seu jardim, ou deixar fazer "aqueles que sabem" ? Nòs não podemos escapar aqui a duas decisões ou considerações inaugurales, que nòs podemos defender por todas as formas de argumentos mais ou menos racionais mas não logicamente obrigatòrios. Existe a decisão de fazer, e não aceitar ou suportar.
E existe a decisão de fazer isso ao invés daquilo, a escolha por tal tipo de regime de preferência a um outro tipo de regime. Assim essas duas decisões que toda argumentação tentando justifica-las pressupõe a criação social-històrica de um espaço e de um tempo onde a polìtica, no sentido definido desse texto, como objetivo e querer explìcitos relativos à instituição da sociedade e aceitando de prestar contas e razão delas mesmas, jà é colocada, onde então a Revelação, a palavra dos antepassados, etc., cessaram de ser consideradas como motivos de fazer ou não fazer, de fazer isso de preferência a fazer aquilo.
Como aval dessa posição, mas unicamente como aval, discussão, augumentação, raciocìnio são possìveis e requeridos. Ainda é preciso ver que, se nòs saìmos do domìnio do instrumental, do racional quanto aos meios (onde o hipotético-discursivo conserva sua validade), esses raciocìnios serão, como eu disse, razoàveis, e não obrigatòrios. Eles serão, na maior parte do tempo, enthymématiques: ex consequentibus vel ex repugnantibus, diria Quintilien. Eu posso defender minhas posições polìticas diante alguém que aceite que certas consequências sejam superlativamente desejàveis, e outras horrivelmente detestàveis. Mas quem, possuindo esses espìritos, empreenderia de demonstrar a excelência da democracia a um adepto da filosofia de Nietzsche ?

Corneluis Castoriadis.

- Philosophie du jugement politique - Débats avec Vincent Descombes - Du jugement politique - pg. 81 - 85 - Points Essais.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Baruch Spinoza


Considerações Gerais

O pensamento de Descartes exercerá uma influência vasta no mundo cultural francês e europeu, diretamente até Kant e indiretamente até Hegel. E exerceu tal influência não tanto como sistema metafísico, quanto especialmente pelo espírito crítico, pelo método racionalista, implícito nas premissas do sistema e realizado apenas parcialmente pelo filósofo.

O desenvolvimento lógico do cartesianismo é representado por alguns grandes pensadores originais: Spinoza, Malebranche, Leibniz. Spinoza é a mais coerente e extrema expressão do racionalismo moderno depois do fundador e antes de Kant; Malebranche e Leibniz encontram, ao contrário, nas suas preocupações práticas, religiosas e políticas, limitações ao desenvolvimento lógico e despreocupado do racionalismo.

Ladeia estes três pensadores uma turma numerosa de cartesianos mais ou menos ortodoxos, particularmente na França na segunda metade do século XVII. Significativa é a influência que o criticismo e o racionalismo cartesianos exerceram sobre a cultura do século de Luís XIV, o século de ouro da civilização francesa; sobre a arte de Racine e de La Fontaine, sobre a poética de Boileau, a ética de La Bruyère, o pensamento de Bayle.

Descartes teve seguidores também em determinados meios religiosos de orientação platônico-agostiniana, mais ou menos ortodoxos. Os dois centros principais desse sincretismo são representados pelo Jansenismo e pelo Oratório. Brás Pascal, porém (se bem que, em parte, jansenista), grande físico e matemático, mas de um profundo sentimento religioso e cristão, parece ter tido intuição da falha da filosofia cartesiana. À razão matemática, científica - espírito geométrico - que vale para o mundo natural mas não chega até Deus, contrapõe a razão integral - esprit de finesse - que leva até o cristianismo.

Descartes teve numerosos adversários e críticos no campo filosófico, entre os quais Hobbes. Entretanto, as oposições maiores contra o cartesianismo surgiram evidentemente no ambiente eclesiástico e político, quer católico quer protestante. Nesses ambientes houve a intuição de um perigo revolucionário para a religião e a ordem social, por causa do criticismo, mecanismo e infinidade do universo, próprios daquela filosofia.

E, no entanto, o cartesianismo forjou a mentalidade (racionalista-matemática) dos maiores filósofos até Kant. E também propôs os grandes problemas em torno dos quais girou a especulação desses filósofos, a saber: a relação entre substância finita de um lado, e entre espírito e matéria do outro. Daí surgiram o ontologismo e o ocasionalismo de Malebranche, a harmonia preestabelecida de Leibniz e o panteísmo psicofísico de Spinoza.


Baruch Spinoza

O racionalismo cartesiano é levado a uma rápida, lógica, extrema conclusão por Spinoza. O problema das relações entre Deus e o mundo é por ele resolvido em sentido monista: de um lado, desenvolvendo o conceito de substância cartesiana, pelo que há uma só verdadeira e própria substância, a divina; de outro lado introduzindo na corrente racionalista-cartesiana uma preformada concepção neoplatônica de Deus, a saber, uma concepção panteísta-emanatista. O problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. Une os dois na mesma substância segundo um paralelismo psicofísico, uma animação universal, uma forma de pampsiquismo. Em geral, pode-se dizer que Descartes fornece a Spinoza o elemento arquitetônico, lógico-geométrico, para a construção do seu sistema, cujo conteúdo monista, em parte deriva da tradição neoplatônica, em parte do próprio Descartes.

Os demais racionalistas de maior envergadura da corrente cartesiana se seguem, cronologicamente, depois de Spinoza; entretanto, logicamente, estão antes dele, pois não têm a ousadia - em especial Malebranche - de chegar até às extremas conseqüências e conclusões racionalista-monista, exigidas pelas premissas cartesianas, detidos por motivos práticos-religiosos e morais, que não se encontram em Spinoza. Com isto não se excluem, por parte deles, desenvolvimentos em outro sentido. Por exemplo, não se excluem os desenvolvimentos idealistas do fenomenismo racionalista por parte de Leibniz.


Vida e Obras

Baruch Spinoza nasceu em Amsterdam em 1632, filho de hebreus portugueses, de modesta condição social, emigrados para a Holanda. Recebeu uma educação hebraica na academia israelita de Amsterdam, com base especialmente nas Sagradas Escrituras. Demonstrando muita inteligência, foi iniciado na filosofia hebraica (medieval-neoplatônico-panteísta) e destinado a ser rabino.

Mas, depois de se manifestar o seu racionalismo e tendo ele recusado qualquer retratação, foi excomungado pela Sinagoga em 1656. Também as autoridades protestantes o desterraram como blasfemador contra a Sagrada Escritura. Spinoza reitrou-se, primeiro, para os arredores de Amsterdam, em seguida para perto de Leida e enfim refugiou-se em Haia. Aos vinte e cinco anos de idade esse filósofo, sem pátria, sem família, sem saúde, sem riqueza, se acha também isolado religiosamente.

Os outros acontecimentos mais notáveis na formação espiritual especulativa de Spinoza são: o contacto com Francisco van den Ende, médico e livre pensador; as relações travadas com alguns meios cristão-protestantes. Van den Ende iniciou-o no pensamento cartesiano, nas línguas clássicas, na cultura da Renascença; e nos meios religiosos holandeses aprendeu um cristianismo sem dogmas, de conteúdo essencialmente moralista.

Além destes fatos exteriores, nada encontramos de notável exteriormente na breve vida de Spinoza, inteiramente dedicada à meditação filosófica e à redação de suas obras. Provia pois às suas limitadas necessidades materiais, preparando lentes ópticas para microscópios e telescópios, arte que aprendera durante a sua formação rabínica; e também aceitando alguma ajuda do pequeno grupo de amigos e discípulos. Para não comprometer a sua independência especulativa e a sua paz, recusou uma pensão oferecida pelo "grande Condé" e uma cátedra universitária em Heidelberg, que lhe propusera Carlos Ludovico, eleitor palatino.

Uma tuberculose enfraquecera seu corpo. Após alguns meses de cama, Spinoza faleceu aos quarenta e quatro anos de idade, em 1677, em Haia. Deixou uma notável biblioteca filosófica; mas a sua herança mal chegou para pagar as despesas do funeral e as poucas dívidas contraídas durante a enfermidade.

Um traço característico e fundamental do caráter de Spinoza é a sua concepção prática, moral, de filosofia, como solucionadora última do problema da vida. E, ao mesmo tempo, a sua firme convicção de que a solução desse problema não é possível senão teoreticamente, intelectualmente, através do conhecimento e da contemplação filosófica da realidade.

As obras filosóficas principais de Spinoza são: a Ethica (publicada postumamente em Amsterdam em 1677), que constitui precisamente o seu sistema filosófico; o Tractatus theologivo-politicus (publicado anônimo em Hamburgo em 1670), que contém a sua filosofia religiosa e política.

A princípio desconhecido e atacado, o pensamento de Spinoza acabou por interessar e influenciar particularmente a cultura moderna depois de Kant (Lessing, Goethe, Schelling, Hegel, Schleiermacher, etc.), proporcionando ao idealismo o elemento metafísico monista, naturalmente filtrado através da crítica kantiana.


O Pensamento: Deus

A teologia de Spinoza é contida, substancialmente, no primeiro livro da Ethica (De Deo). Spinoza quereria deduzir de Deus racionalmente, logicamente, geometricamente toda a realidade, como aparece pela própria estrutura exterior da Ethica ordine geometrico demonstrata. Não nos esqueçamos de que o Deus spinoziano é a substância única e a causa única; isto é, estamos em cheio no panteísmo. A substância divina é eterna e infinita: quer dizer, está fora do tempo e se desdobra em número infinito de perfeições ou atributos infinitos.
Desses atributos, entretanto, o intelecto humano conhece dois apenas: o espírito e a matéria, a cogitatio e a extensio. Descartes diminuiu estas substâncias, e no monismo spinoziano descem à condição de simples atributos da substância única. Pensamento e extensão são expressões diversas e irredutíveis da substância absoluta, mas nela unificadas e correspondentes, graças à doutrina spinoziana do paralelismo psicofísico.

A substância e os atributos constituem a natura naturans. Da natura naturans (Deus) procede o mundo das coisas, isto é, os modos. Eles são modificações dos atributos, e Spinoza chama-os natura naturata (o mundo). Os modos distinguem-se em primitivos e derivados. Os modos primitivos representam as determinações mais imediatas e universais dos atributos e são eternos e infinitos: por exemplo, o intellectus infinitus é um modo primitivo do atributo do pensamento, e o motus infinitus é um modo primitivo do atributo extensão.

As leis do paralelismo psicofísico, que governam o mundo dos atributos, regem naturalmente todo o mundo dos modos, quer primitivos quer derivados. Cada corpo tem uma alma, como cada alma tem um corpo; este corpo constituiria o conteúdo fundamental do conhecimento da alma, a saber: a cada modo de ser e de operar na extensão corresponde um modo de ser e de operar do pensamento. Nenhuma ação é possível entre a alma e o corpo - como dizia também Descartes - e como Spinoza sustenta até o fundo.

A lei suprema da realidade única e universal de Spinoza é a necessidade. Como tudo é necessário na natura naturans, assim tudo também é necessário na natura naturata. E igualmente necessário é o liame que une entre si natura naturans e natura naturata. Deus não somente é racionalmente necessitado na sua vida interior, mas se manifesta necessariamente no mundo, em que, por sua vez, tudo é necessitado, a matéria e o espírito, o intelecto e a vontade.


O Homem

Do primeiro livro da Ethica - cujo objeto é Deus - Spinoza passa a considerar, no segundo livro (De mente), o espírito humano, ou, melhor, o homem integral, corpo e alma. A cada estado ou mudança da alma, corresponde um estado ou mudança do corpo, mesmo que a alma e o corpo não possam agir mutuamente uma sobre o outro, como já se viu.

Não é preciso repetir que, para Spinoza, o homem não é uma substância. A assim chamada alma nada mais é que um conjunto de modos derivados, elementares, do atributo pensamento da substância única. E, igualmente o corpo nada mais é que um complexo de modos derivados, elementares, do atributo extensão da mesma substância. O homem, alma e corpo, é resolvido num complexo de fenômenos psicofísicos.

Mesmo negando a alma e as suas faculdades, Spinoza reconhece várias atividades psíquicas: atividade teorética e atividade prática, cada uma tendo um grau sensível e um grau racional.

A respeito do conhecimento sensível (imaginatio), sustenta Spinoza que é ele inteiramente subjetivo: no sentido de que o conhecimento sensível não representa a natureza da coisa conhecida, mas oferece uma representação em que são fundidas as qualidades do objeto conhecido e do sujeito que conhece e dispõe tais representações numa ordem fragmentária, irracional e incompleta.

Spinoza distingue, pois, o conhecimento racional em dois graus: conhecimento racional universal e conhecimento racional particular. A ordem oferecida pelo conhecimento racional particular nada mais é que a substância divina; abrange ela, na sua unidade racional, os atributos infinitos e os infinitos modos que a determinam. E desse conhecimento racional intuitivo, místico, derivam necessariamente a felicidade e virtude supremas. Das limitações do conhecimento sensível decorrem o sofrimento e a paixão, dada a universal correspondência spinoziana entre teorético e prático.

Visto o paralelismo psicofísico de Spinoza, é claro que o conhecimento, no sistema spinoziano, não é constituído pela relação de adequação entre a mente e a coisa, mas pela relação de adequação da mens do sujeito que conhece a mens do objeto conhecido.


A Moral

Como é sabido, Spinoza dedica ao problema moral e à sua solução os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz ele uma história natural das paixões, isto é, considera as paixões teoricamente, cientificamente, e não moralisticamente. O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza energicamente no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude rigidamente científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção universalmente determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões podem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas, as superfícies, as figuras geométricas.

Depois de nos ter oferecido um sistema do mecanismo das paixões no IV livro da Ethica, Spinoza esclarece precisamente e particularmente a escravidão do homem sujeito às paixões. Essa escravidão depende do erro do conhecimento sensível, pelo que o homem considera as coisas finitas como absolutas e, logo, em choque entre si e com ele. Então a libertação das paixões dependerá do conhecimento racional, verdadeiro; este conhecimento racional não depende, entretanto, do nosso livre-arbítrio, e sim da natureza particular de que somos dotados.

No V e último livro da Ethica, Spinoza esclarece, em especial, a condição do sábio, libertado da escravidão das paixões e da ignorância. O sábio realiza a felicidade e a virtude simultânea e juntamente com o conhecimento racional. Visto que a felicidade depende da ciência, do conhecimento racional intuitivo - que é, em definitivo, o conhecimento das coisas em Deus - o sábio, aí chegado, amará necessariamente a Deus, causa da sua felicidade e poder. Tal amor intelectual de Deus é precisamente o júbilo unido com a causa racional que o produz, Deus. Este amor do homem para com Deus, é retribuído por Deus ao homem; entretanto, não é um amor como o que existe entre duas pessoas, pois a personalidade é excluída da metafísica spinoziana, mas no sentido de que o homem é idêntico panteisticamente a Deus. E, por conseguinte, o amor dos homens para com Deus é idêntico ao amor de Deus para com os homens, que é, pois, o amor de Deus para consigo mesmo (por causa precisamente do panteísmo).

Chegado ao conhecimento e à vida racionais, o sábio vive já na eternidade, no sentido de que tem conhecimento eterno do eterno. A respeito da imortalidade da alma, devemos dizer que é excluída naturalmente por Spinoza como sobrevivência pessoal porquanto pessoa e memória pertencem à imaginação. A imortalidade, então, não poderá ser entendida senão como a eternidade das idéias verdadeiras, que pertencem à substância divina. De sorte que imortais, ou eternas, ou pela máxima parte imortais, serão as almas ou os pensamentos dos sábios, ao passo que às almas e aos pensamentos dos homens vulgares, como que limitados ao conhecimento e à vida sensíveis, é destinado o quase total aniquilamento no sistema racional da substância divina.


A Política e a Religião

Spinoza tratou particularmente do problema político e religioso no Tractatus theologico-politicus. Considera ele o estado e a igreja como meios irracionais para o advento da racionalidade. As ações feitas - ou não feitas - em vista das penas ou dos prêmios temporais e eternos, ameaçados ou prometidos pelo estado e pela igreja, dependem do temor e da esperança, que, segundo Spinoza, são paixões irracionais. Elas, entretanto, servem para a tranquilidade do sábio e para o treinamento do homem vulgar.

No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os homens se encontravam em uma guerra perpétua, em uma luta de todos contra todos. É o próprio egoísmo que impede os homens a se unirem, a se acordarem entre si numa espécie de pacto social, pelo qual prometem renunciar a toda violência, auxiliando-se mutuamente. No entanto, não basta o pacto apenas: precisa o homem do arrimo da força para sustentar-se. De fato, mesmo depois do pacto social, os homens não cessam de ser, mais ou menos, irracionais e, portanto, quando lhes fosse cômodo e tivessem a força, violariam, sem mais, o pacto. Nem há quem possa opor-se a eles, a não ser uma força superior, porquanto o direito sem a força não tem eficácia. Então os componentes devem confiar a um poder central a força de que dispõem, dando-lhe a incumbência e o modo de proteger os direitos de cada um. Só então o estado e verdadeiramente constituído. Entretanto, o estado, o governo, o soberano podem fazer tudo o que querem: para isso têm o poder e, portanto, o direito, e se acham eles ainda no estado de pura natureza, do qual os súditos saíram.

O estado, porém, não é dominador supremo, porquanto não é o fim supremo do homem. Seu fim supremo é conhecer a Deus por meio da razão e agir de conformidade, de sorte que será a razão a norma suprema da vida humana. O papel do estado é auxiliar na consecução racional de Deus. Portanto, se o estado se mantivesse na violência e irracionalidade primitivas, pondo obstáculos ao desenvolvimento racional da sociedade, os súditos - quando mais racionais e, logo, mais poderosos do que ele - rebelar-se-ão necessariamente contra ele, e o estado cairá fatalmente. Faltando-lhe a força, faltar-lhe-á também o direito. E de suas ruínas deverá surgir um estado mais conforme à razão. E, assim, Spinoza deduz do estado naturalista o estado racional.

O outro grande instituto irracional a serviço da racionalidade é, segundo Spinoza, a religião, que representaria um sucedâneo da filosofia para o vulgo. O conteúdo da religião positiva, revelada, é racional; mas é a forma que seria absolutamente irracional, pois o conhecimento filosófico de Deus decairia em uma revelação mítica; a ação racional, que deveria derivar do conhecimento racional com a mesma necessidade pela qual a luz emana do sol, decairia no mandamento divino heterônomo, a saber, a religião positiva, revelada, representaria sensivelmente, simbolicamente, de um modo apto para a mentalidade popular, as verdades racionais, filosóficas acerca de Deus e do homem; tais verdades podem aproveitar ao bem desse último, quando encarnadas nos dogmas. Por conseguinte, o que vale nos dogmas não seria a sua formulação exterior, e sim o conteúdo moral; nem se deveria procurar neles sentidos metafísicos arcanos, porque o escopo dos dogmas é essencialmente prático a saber: induzir à submissão a Deus e ao amor ao próximo, na unificação final de tudo e de todos em Deus.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Fidelidade e renovação.

Èis a narração que [ o Talmud] fez na pàgina 216 do tratado de Chabath: " O que significa Hanoukka ? Os doutores ensinam: o vingt-cinquième dia do mês de Kislev [novembro-decembro] começam nos dias de Hanoukka. Oito dias em que nòs não celebramos nenhuma cerimônia de luto, em que nòs não praticamos os jejuns. Quando os Gregos haviam penetrado no Templo, eles tornaram impuros todos os òleos que nele se encontravam. Quando a casa dos Hasmoneens teve a superioridade, nòs encontramos um ùnico pequeno frasco de òleo puro, tendo o sceau do grand-prêtre. O òleo sò poderia ter sido suficiente para manter a luz (permanente no Templo) durante um dia. Mas um milagre se produziu: o òleo do frasco foi suficiente durante oito dias. No ano seguinte, foi instituìda a celebração desses dias através os cantos de louvores e de graças."
Hanoukka é então para nòs a maravilha de uma luz mais rica do que as energias que alimentam, a maravilha do "mais" oriundo do "menos", a maravilha da ultrapassagem. A resistência hasmonéenne também é essa luz desprendida de suas fontes materiais. Mas o texto talmudique restitue a uma guerra nacional - a uma guerra que defende uma cultura - o horizonte permanente do prodìgio. Trata-se do prodìgio cotidiano do espìrito, que precede a cultura. È uma chama que se incendeia de seu pròprio ardor: o gênio que inventa o incrìvel se bem que tudo esteja dito; o amor que inflama sem que o ser amado seja perfeito; a vontade que empreende apesar dos obstàculos que a paralisam; a esperança que ilumina uma vida na ausência das razões de esperar; a paciência que suporta o que pode mata-la. Trata-se dos recursos infinitos do espìrito que ultrapassa, criador, a prudência das técnicas; sem càlculos, sem passado, ele se estende alegre no espaço, se engajando pelas causas de outrem, gràtuìto e pròdigo.Mas o texto que eu acabo de citar corrige por uma outra sabedoria essa sabedoria audaciosa. Criação, liberdade, renovação permanente. Essa essência revolucionària do espìrito diz todo seu mistério ?
Ele sopra onde ele quer. Mas todo vento que sopra assim jà é espìrito, por esse simples desprezo das fronteiras ? Transgredir, jà é ultrapassar ? Nossas luzes não podem queimar de uma maneira simplesmente gratuita. Antes do milagre da luz generosa - e como condição desse milagre - um outro milagre aconteceu. Milagre obscuro que nòs esquecemos. Nòs o esquecemos no brilho das luzes que crescem e triunfam. Mas se, no Templo destruìdo e profanado pelos infiés, nòs não tivessemos achado um frasco de òleo puro celado pelo grand-prêtre e que, ignorado de todos, mas inalterado, subsista durante os anos em que o castiçal ficava vazio, não teria havido o milagre de Hanoukka. Era preciso que se conserve em algum lugar um òleo transparente e intacto.
Oh ! existência noturna dobrada sobre ela mesma nos limites estreitos de um frasco esquecido, oh ! existência subtraìda a todo contacto duvidoso com o exterior, existência letàrgica atravessando a durabilidade, liquido dormindo na margem da vida como uma doutrina conservada em alguma Yechivah perdida, existência clandestina, isolada, no seu refùgio subterrâneo, do tempo e dos acontecimentos, existência eterna, mensagem codificada dirigida por um clérigo a um clérigo, pureza irrisòria em um mundo abandonado às misturas ! oh ! maravilha da tradição, condição e promessa de um pensamento sem obrigações, que não quer ficar um eco, uma agitação da época.
Oh ! luz generosa que inunda o universo, você bebe nossa vida subterrânea, nossa vida eterna e igual a ela mesma. Você celebra essas horas admiràveis, obscuras e secretas.

- Emmanuel Levinas, Difficile Liberdade ( pages 321- 322) Le livre de poche, Coll. "Biblio- Essai", 1997.



Emmanuel Levinas - Fidelidade e renovação.

Emmanuel Levinas conjugou durante sua vida duas fidelidades: a fidelidade à tradição judia e a fidelidade à disciplina na qual ele foi formado na França e onde ele se tornou um dos grandes nomes, a filosofia. Melhor, ele permanece na història como uma pessoa excepcional tendo estabelecido uma ponte entre a sabedoria tradicional judia, de qual ele aprendeu os esplendores e o método ao lado do mestre excepcional Chochani, e a inteligência transparente e sistemàtica da filosofia.

A emoção ética

Na filosofia, o centro da mensagem de Levinas consiste em colocar no primeiro plano a "relação ética". Nòs temos tendência, no Ocidente em acreditar que as palavras "saber", "ser", "verdade" e "liberdade" são suficientes para indicar senso e horizonte para a humanidade. Levinas nos ensina portanto que, se nòs nos apegamos a elas, o absurdo nos ameaça: nòs arriscamos sempre de simplesmente fazer um sketch irrisòrio no seio da comédia global. Para salvar o senso encontrando o que suporta e justifica as luzes da razão e da verdade elas mesmas, é preciso voltar à experiência mais propriamente humana: a emoção ética diante outrem, rosto que comparece para mim, e, no seu fim e na sua fragilidade pròpria, reclama meu socorro, minha responsabilidade. A partir dessa emoção, tudo tem sentido, em particular ou par excellence a aventura intelectual, social e polìtica do Ocidente.
Nosso texto cita o Talmud contando a història comemorada na festa judia de Hanoukka, festa das luzes. Da història milagrosa desse frasco de òleo que queimou 8 vezes mais tempo do que ele não deveria. Levinas tira disso dois ensinamentos.


O outro

De um lado, ele apresenta o excedente deixado no frasco, sem que ninguém esperasse, como sìmbolo da capacidade de ultrapassagem que é a do espìrito, além dos obstàculos, das condições do contexto. Esse espìrito da criatividade e da liberdade parece aquele que celebram no Ocidente e suas "luzes". Entretanto, esse espìrito inventando o novo enquanto tudo parece fixo e repetitivo, Levinas o liga a elementos éticos: ele é "amor que se inflama sem que o ser amado seja perfeito" e ele se engaja "pelas causas de outrem". O segundo ensinamento aprofunda o primeiro, no sentido em que, para que o espìrito possa "ultrapassar", é preciso primeiro que uma humilde fidelidade tenha preservado seu senso e sua possibilidade: que um frasco de òleo ao menos tenha se conservado puro durante a dominação grega.
Tudo repousa, nessa història, sobre o fato que os Judeus continuaram a se sentir em dìvida com relação à tradição judia. Um tal sentimento, para Levinas, se relaciona à atitude fundamental no centro de sua filosofia: o medo de fazer mal a outrem, e o engajamento concreto no socorro. Para que minha dìvida seja vivenciada autenticamente também, eu devo entrar no pensamento que tudo não começa para mim e não està em vista de mim. Levinas acaba seu comentàrio fazendo o elogio de uma certa forma de vida e sociedade: dobrada e obscura, talvez, mais centralizada na preucupação moral do outro homem e a meditação dos textos intepestìvel, em margem do barulho e da sedução do que domina. È de uma tal vida que pode unicamente jorrar, a cada vez, a absoluta inovação: vida secreta da fidelidade que jà é o sentido da condição humana, como tal. È claramente a continuidade mesmo da experiência judia e do judaìsmo - o que faz dela o "sal da terra" - que Levinas celebra, en l'ocurrence.

- Jean-Michel Salanskis.


Levinas, Emmanuel ( 1905 - 1995 )

Filòsofo francês de origem lituanienne, de quem a obra prolìfica é herdeira da fenomenologia de Husserl e do pensamento de Heidegger, que ele contribuiu a fazer conhecer na França ( En découvrant l'existence avec Husserl et Heidegger, 1949). Naturalizado francês em 1924, ele ganhou sua vida como professor de filosofia. Formado no Talmud por Chouchani, ele redigiu Les lectures talmudiques, que contribuiram à renovação do pensamento teològico judeu na França. Dando um novo brilho na exègése bìblica, ele se relacionou com a tradição germânica encarnada por Franz Rosenzweig e Martin Buber. Ele é considerado atualmente como um dos maiores filòsofos contemporâneos.