quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Religião e ideologia, segundo Hannah Arendt


"O mal se revelou mais radical do que previsto"

Toda religião tradicional, judia ou cristão, não me diz mais nada de maneira alguma na realidade. Aliàs eu não creio mais que ela ainda possa dar algum fundamento para alguma coisa tão diretamente polìtica como as leis. O mal se revelou mais radical do que previsto. Com uma expressão superficial : o Décalogue não previu os crimes modernos.....

- Hannah Arendt - Karl Jaspers, Correspondance, 1926 - 1969, Traduction d'Èliane Kanfholz - Masmer Payot, 1995.



A luta entre o mundo livre e o mundo totalitàrio teve um efeito secundàrio surpreendente: ela revelou uma tendência marcada para interpretar esse conflito com a ajuda das categorias religiosas [.....]. O fato de interpretar as novas ideologias polìticas como religiões a caràter polìtico ou secular é uma consequência paradoxal, mesmo se ela não é sem dùvida fortuita, da crìtica bem conhecida que Marx fez das religiões, recusadas como ideologias puras e simples. Mas a verdadeira origem dessa representação é mais antiga ainda. Não é o comunismo mais o ateìsmo que foi a primeira doutrina que nòs recusamos ou aclamamos como uma nova religião [....]. A razão que faz qualificar o ateìsmo de religião està intimamente ligada à natureza que revestem os sentimentos religiosos em uma época caracterizada pela secularização [....]. Nosso mundo é um mundo secularizado do ponto de vista do espìrito, porque precisamente é um mundo de dùvida. Se nòs quisessemos verdadeiramente nos desfazer da secularização, seria preciso suprimir a ciência moderna assim que a maneira pela qual ela transformou o mundo. [....] Como ideologia e mesmo se ele recusa, entre outros elementos diversos, a existência de um Deus transcendente, o comunismo difere do ateìsmo. Ele não procura jamais dar às questões religiosas respostas precisas, mas ele faz com que seus adeptos, com sua preparação ideològica, nunca questionem. Aliàs, as ideologias, que se preucupam sempre de justificar a evolução històrica, não propõem o mesmo tipo de explicação que a teologia. Esta trata do homem como um ser razoàvel que questiona e de quem a razão precisa de um acordo, mesmo se ele é suposto acreditar no que ultrapassa essa razão. Uma ideologia - e o comunismo, na sua forma totalitària politicamente efetiva, mais do que qualquer outra - trata o homem como um corpo que cai mais seria dotado de consciência e capaz de obsevar, durante a queda, as leis newtoniennes da gravidade.
Qualificar de religião essa ideologia totalitària não significa apenas lhe fazer um cumprimento perfeitamente desmerecedor, essa atitude permite também de perder de vista o fato que o bolchevisme, mesmo se ele é oriundo da història do Ocidente, não pertence à tradição comum da dùvida e da secularização e que sua doutrina, assim que as ações que ele inspirou, criaram um verdadeiro abismo entre o mundo livre e as partes totalitàrias do planeta.
Até uma data muito recente, não se tratava mais, nisso tudo, do que uma briga terminològica, e o emprego da expressão "religião polìtica" para designar movimentos polìticos explicitamente antireligiosos era apenas uma maneira de falar [.....]. Mas nesses ùltimos tempos, duas correntes de pensamento e de anàlise bem distintas adotaram essa expressão de "religião polìtica ou secular". O primeiro é a perspectiva històrica segundo a qual uma religião secular é, de maneira totalmente literal, uma religião oriunda da secularização que conhece o mundo atual, de maneira que o comunismo é apenas a variante mais radical da "hérésie immanentiste". O segundo, é a perspectiva adotada pelas ciências sociais que tratam a ideologia e a religião como um ùnico e mesmo fenômeno, porque elas pensam que o comunismo - mais isso vale igualmente para o nacionalismo, o imperialismo, etc - preenche, para seus partidàrios, a mesma "função" que a que é atribuìda às confissões religiosas em um sociedade livre.

- Hannah Arendt, La Nature Du Totalitarisme, "Religion et Politique" ( Pages 139 - 144), Traduit et Préfacé par Michelle - Iréne Brudny de Launay - Payot 1990. -


Do Iluminismo até hoje


Oriunda de uma familia judia bem assimilada de Königsberg, a filòsofa polìtica Hannah Arendt não se sentia ligada à sua fé. O interesse exigente que ela manifesta pela questão judia - lhe consagrando perto do terço de sua obra - é contemporâneo de seu despertar polìtico e à història na Alemanha dos anos 1930. Desde seu primeiro grande livro, Les Origines du totalitarisme (1951), ela se esforça de compreender a irrupção de uma forma radicalmente nova do governo no século XX: o totalitarismo. Descobrir sua natureza, que rompe completamente com os despotismos, as tiranias e as ditaduras do passado, tal é sua ambição. No fim de sua anàlise, é verificado que a ideologia e o terror são os motores desse novo tipo de regime.


Religião e polìtica


No momento da recepção de seu livro, Karl Jaspers, o mestre de sua juventude, lhe perguntou: "Yahvé não teria muito desaparecido ?" No primeiro texto acima, ela lhe responde que a religião não pode mais ser de nenhum socorro diante os crimes completamente inéditos cometidos pelo totalitarismo. Com os campos da morte, o Inferno se realizou na terra. Um mundo onde a pròpria lei ordena : "Você matarà", demonstra que o quinto comandamento bìblico e, ao mesmo tempo, as noções de pecado e de castigo não teem mais decididamente autoridade. Nòs compreendemos então que Hannah Arendt recusa como "absurda" e "blasfematòria" a expressão de "religiões politicas ou seculares" utilizada, entre outros, pelo filòsofo polìtico americano Eric Voegehn (1901 - 1985), com quem ela teve um debate, para caracterizar os totalitarismos nazi e bolchevique.
Se substituindo aos antigos credo, o nazismo e o bolchevismo anunciavam o Paraìso na terra: para o III Reich, que queria para ele uma sociedade sem Judeus, a raça aryenne era a ùnica "raça eleita"; no caso do estalinismo era uma sociedade sem classes onde o proletariado tinha a função de Messie. A adesão massiva de tais movimentos atestaria a "necessidade de religião " presente no homem, e Eric Voegelin concluia disso na necessidade de um retorno à fé.




A "lògica da idéia"


No segundo texto acima, Hannah Arendt concede que o ateìsmo é uma condição sine qua non do advento dos totalitarismos, mas ele não saberia explicar o que se passou. A seus olhos, as massas modernas se caracterizam com efeito menos pelo seu agnosticismo do que pela ausência de todo interesse comum. Nada ligando mais os indivìduos uns aos outros, eles estão prontos a acreditar em qualquer coisa. Da mesma maneira que Hannah Arendt distingue entre religião e polìtica, ela distingue também religião e ideologia, a saber, " a lògica de uma idéia". È pretendendo querer explicar a història inteira através a luz de suas idéis - a luta de raças ou a luta de classes - , que o nazismo e o bolchevismo se tornaram ideologias totalitàrias.
Fazendo isso, eles forjaram uma realidade inteiramente fictiva, que se trate da pureza original da raça aryenne ou da restauração de um reino de justiça e de abundância. Enfim, substituindo o endoutrinamento ao pensamento, eles puderam desenvolver um raciocìnio lògico onde tudo se deduz a partir de uma ùnica prémisse: a raça inapta a viver" ( os Judeus) deve ser exterminada, a "classe moribunda" ( a burguesia ) é condenada à morte. È precisamente essa lògica que colocou as massas em movimento. " O fato que uma idéia tão "vulgar" como essa de raça tenha podido ter influenciado as pessoas cultas, e que idéias tão complexas como a dialética marxista tenham podido exercer uma influência tão forte nas pessoas incultas, mostra claramente que não é a idéia, mas a lògica da idéia que se apodera das massas".

- Sylvie Courtine - Denany -

Nenhum comentário: