sexta-feira, 29 de junho de 2007

Sapere aude!


"Tenha a coragem de te servir do teu próprio entendimento!"


O Iluminismo é a saída do homem fora do "estado de tutela" do qual ele é ele mesmo responsável. "O estado de tutela" é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a ajuda de outrem. Nós somos nós mesmos responsáveis desse "estado de tutela" quando a causa está relacionada não a uma insuficiência do entendimento mas a uma insuficiência da resolução e da coragem de servir-se de seu próprio entendimento sem a ajuda de outrem. Sapere aude! tenha a coragem de te servir do teu próprio entendimento! Eis a divisa do Iluminismo.
Preguiça e covardia são as causas que fazem que um tão grande número de homens, após a natureza tê-los libertado há muito tempo de uma conduta estrangeira [...], ficam todavia de boa vontade a vida toda deles em um "estado de tutela", e que fazem que seja tão fácil a outras pessoas de colocar-se como seus tutores. É muito cômodo de estar sob "tutela". Se eu tenho um livro que possui o entendimento no meu lugar, um diretor de consciência que tem a consciência no meu lugar, [....] nesse caso então eu não preciso fazer esforços. Não é necessário que eu pense a partir do momento que eu posso pagar para que outros o façam por mim; outras pessoas assumirão no meu lugar essa fastidiosa necessidade. E se a maior parte e de longe, homens (e entre eles, "o belo sexo" na sua totalidade), considera esse passo que liberta da "tutela", dizendo que ele é muito penoso, até mesmo perigoso, é o que os tutores se empregam em sua extrema benevolência a vigiar.
Após ter embrutecido seu gado (o deles) e ter impedido com solicitude essas criaturas tranqüilas de ousar fazer um passo sem a "roda infantil" onde eles os tinha encarcerado, eles lhe mostram em seguida o perigo que os ameaça se eles tentarem andar sozinhos.
[.....] Os preceitos e as fórmulas, esses instrumentos mecânicos de uso razoável ou mais justamente de um mau uso de seus dons naturais, são as entraves de um "estado de tutela" permanente. Quem os rejeitaria não poderia saltar o mais estreito fosso sem desastre porque ele não teria o hábito de mover-se tão livremente. Assim, pouco numerosos são aqueles que conseguiram libertar-se, pelo próprio trabalho do espírito deles, do "estado de tutela" e andar apesar de tudo com um passo seguro. Mas que um público se esclareça dele mesmo é mais provável; isso é mesmo quase inevitável a condição que nós lhe concedamos uma certa liberdade. Pois sempre existirá alguns seres pensando por eles mesmos, mesmo entre os tutores em exercício, seres que rejeitarão eles mesmos o julgo do "estado de tutela" e para propagar em seguida em torno deles o espírito de uma apreciação razoável do próprio valor e da vocação de todo homem a pensar por si mesmo. [....]. Se nós fazermos a questão : estamos vivendo hoje uma época esclarecida? A resposta é : não, mas na realidade estamos vivendo na época do Iluminismo. Seria ainda preciso muita coisa para que os homens de uma maneira geral, no estado atual das coisas, sejam já, ou possam ser capazes de se servir das coisas da religião do entendimento deles com segurança e exatidão sem a direção de uma outra pessoa. Contudo, nós temos indícios evidentes que eles tem o campo livre para trabalhar nessa direção e que os obstáculos á generalização do Iluminismo, ou a saída do "estado de tutela" do qual eles são eles mesmos responsáveis, são cada vez menos numerosos. Justamente nesse ponto de vista, essa época do Iluminismo, ou o século de Frédéric. [....].
Quando a natureza faz sair do duro envelope o germe que ela cuida da maneira mais terna, quer dizer a inclinação e a vocação ao pensamento livre, essa inclinação tem progressivamente repercussões no estado de espírito do povo (o que lhe torna pouco a pouco mais apto a agir livremente) e finalmente mesmo no princípio do governo, que acha proveitoso para ele mesmo de considerar o ser humano, que é doravante "mais do que uma máquina" conforme a sua dignidade.

- Emmanuel Kant - Resposta a questão : O que é o Iluminismo? (1784), Tradução F. Proust, Garnier - Flammarion -



L'Aufklärung

Emmanuel Kant é considerado como o mais eminente representante do Aufklärung, o Iluminismo alemão. Sua obra define o programa intelectual, moral e político de nossa modernidade. O texto acima é um extrato de sua contribuição ao debate lançado em 1787 pelo Sarlinische Monatsschrift sobre a questão "o que é o Iluminismo?". Kant apresenta um ponto de vista já esboçado no prefácio da "Crítica da razão pura" (1781), sua obra mais célebre: "Nosso século é propriamente o século da crítica, através da qual tudo deve se submeter; a religião, porque ela é sagrada, a legislação, por causa de sua majestade, querem ao mesmo tempo se abster desse exame. Mas elas [....] não podem, então fazendo isso pretender a esse respeito [....] que a razão testemunha unicamente ao que pôde se submeter a seu livre e público exame".



Autonomia da razão

Kant caracteriza o Iluminismo como o momento da "saída do homem fora do estado de tutela do qual ele é ele mesmo responsável". A afirmação moderna da autonomia da razão choca-se sempre, nesse fim do século XVIII, ao dogmatismo religioso e ao despotismo político. Aos olhos de Kant, o Iluminismo é apenas o prelúdio de uma "época esclarecida" que ainda virá. A homenagem feita à Frédéric II, da Prússia, amigo dos filósofos, não faz de Kant no entanto um adepto do despotismo esclarecido. Kant é, ao contrário, um adversário declarado do paternalismo político, no qual o chefe do Estado se coloca em garantia não da liberdade, mas da felicidade do povo. Sair do "estado de tutela" significa romper com a tradição, que submete os homens à autoridade do passado e do divino. Um elo estreito une, desse ponto de vista, a superstição, que faz obstáculo ao conhecimento da natureza, e a necessidade de ser guiado por outrem. Após Descartes, Kant sublinha a significação da vontade na construção da verdade; a divisa do Iluminismo, "tenha a coragem de te servir do teu próprio entendimento" faz eco à exigência cartesiana de deixar de lado os preconceitos. Ela constitui um dos elementos do programa da modernidade democrática.
O caminho traçado por Kant em vista de sair desse "estado de minoridade" é o caminho da reforma, que só precisa do "livre uso público do pensamento". A liberdade é então ao mesmo tempo fim e meio: não é preciso um tutor para sair do "estado de tutela". Kant, em Discípulo de Rousseau, define o homem pela "perfectibilité", a existência humana não sendo, como a existência do animal, regulada pelo instinto. Disso a importância da educação: o homem é o único ser que precisa ser educado. Kant espera dos tempos esclarecidos que virão que os Estados invistam na instrução do povo. O motor do progresso do Iluminismo reside todavia na auto-educação do público: é por isso que a liberdade de comunicar seus pensamentos constitui o bem político mais precioso.



Máximas da reforma

Kant apresenta em outras obras - na "Crítica da faculdade de julgar" (1790), depois na "Antropologia de um ponto de vista pragmático" (1798) - as máximas da reforma pessoal: a primeira, "pensar por si mesmo", designa a exigência de emancipação para com os preconceitos e os argumentos da autoridade. A segunda máxima, "pensar em se colocando no lugar de outrem", comanda de pensar em comum com outras pessoas. Ela é a máxima do pensamento extenso que, em oposição ao espírito estreito, se mostra capaz de "refletir sobre seu próprio julgamento do ponto de vista universal". A terceira máxima, enfim, "sempre pensar de acordo com si mesmo", é a máxima do pensamento conseqüente. É através do estabelecimento dessas três máximas que o indivíduo poderá acessar a autonomia e tornar-se autenticamente adulto.

- Eric Deschavanne -



Aufklärung

Em alemão, "esclarecimento", "luz". Esse termo possui um senso mais dinâmico que a palavra francesa "Lumiéres". Definido oficialmente por Kant em 1784 no seu célebre artigo Was ist Aufklärung? (O que é o Iluminismo?), esse movimento filosófico e cultural se desenvolveu desde o começo do século XVIII, se fundando no racionalismo otimista de Leibniz e de Christian Wolf (1679 - 1754). Além de Kant, ele será ilustrado por Moses Mendelssohr (1729 - 1786).
As idéias do Aufklärung se propagaram na burguesia alemã, especialmente através de revistas e de sociedades como os Amigos da Verdade, do Conde Manteuffel, em Berlim.



Cartesianismo/ cartesiano

Corrente de pensamento oriunda da filosofia de Descartes (dualismo da alma e do corpo, transparência e distinção das idéias como critérios do verdadeiro, cogito como princípio de toda filosofia) que inspirou os pensadores jansenistas de Port-Royal (Arnauld e Nicole), mas também - mesmo se eles em seguida se afastaram - Spinoza, Malebranche e Leibniz. De uma maneira geral, as filosofias do sujeito (Alain, a fenomenologia de Husserl, Sartre) se reclamam dela.



Descartes, René (1596 - 1650)

Sábio e filósofo francês, que muito viajou, ele tem a intuição, quando ele participa de uma campanha militar, de um novo método capaz de fundar a filosofia e a ciência, nas quais o princípio primeiro é o cogito ("eu penso, então eu sou"). Ele vai se inspirar das matemáticas para elaborar um sistema fundado sobre uma educação rigorosa das leis fundamentais da natureza. Pela sua análise do homem como sujeito, ele marca também o começo da filosofia moderna. O método cartesiano se apóia na dúvida radical (dita "hiperbólica") relativa a todo conhecimento. Na sua formulação mais extrema, a dúvida cartesiana supõe que um gênio malevolente teria governado nossos pensamentos e nos induzido apesar de tudo ao erro. Descartes afastará finalmente essa hipótese se apoiando nas provas da existência de Deus. Sua teoria das idéias e seu método fortemente ilustrado por Spinoza, que contribuiu na difusão do cartesianismo na Holanda (Princípios da filosofia de René Descartes, 1663 ).



Leibniz, Gottfried Wilhelm (1646 - 1716)

Filósofo e matemático alemão, bibliotecário dos príncipes de Hanovre, ele foi não somente o filósofo do racionalismo positivo e inventor (ao mesmo tempo que Newton do cálculo infinitesimal), mas também um lingüista, um jurista, um historiador, um diplomata e um teólogo. Pacifista, ele sonha de reunir os Estados Europeus, de fazer a unidade dos sábios, de aproximar católicos e protestantes (ele trabalhou com Bossuet sobre a possibilidade de união das Igrejas católica e protestante ). Filósofo - "Novos ensaios sobre o entendimento humano" (1704), "Ensaios de Théodicée " (1710) e A Monadologie (1714) - , ele coloca o princípio da razão suficiente: nada pode acontecer sem razão. Para ele, é a harmonia preexistente em Deus e por Deus que tornou a Criação possível e a melhor possível. Se o mal existe, certo que ele é necessário: Deus não podendo criar um mundo perfeito, introduziu a mais pequena porção de mal possível. Assim o mal é "a sombra do bem, a dissonância que aumenta o prazer da consonância".
Essa corrente de pensamento, que proclama que " tudo é para o melhor no melhor dos mundos possíveis", será refutada por Voltaire - Zadig (1747), Candide (1759). Os últimos anos de Leibniz foram sombrios por causa do impacto provocado pela controvérsia que o confrontou a Newton sobre a anterioridade da invenção do cálculo infinitesimal. O mundo dos matemáticos adotará portanto sua notação simbólica e sua denominação de "cálculo integral". A posteridade estabelecerá que os dois sábios chegaram a conclusões similares, independentemente um do outro.



Rousseau, Jean - Jacques (1712 - 1778)

Escritor e filósofo de origem genevoise, considerado por Emmanuel Kant como o "Newton do mundo moral", esse filósofo do Iluminismo de caráter atormentado e com uma vida aventurosa marcou profundamente o pensamento moderno. Sua obra que exalta o estado de natureza teve uma importância fundamental tanto na filosofia política - "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens" (1755), "Do contrato social" (1762) - quanto na pedagogia (L'Émile, 1762).
A pedagogia segundo ele, não deve, ter como objetivo de manter uma ordem existente mais de inventar novos modelos de vida. Primeiro autor a ousar a se desnudar sem máscaras em suas " Confissões " (posthume, 1782 e 1789) , ele tornou-se a referencia dos primeiros românticos.

domingo, 24 de junho de 2007

Emmanuel Kant, o humanista

A filosofia de Kant é uma resposta ao mundo desencantado que fizeram emergir as descobertas do século XVIII. Cabe ao homem, nos limites de sua "finitude", de dar novamente um senso ao mundo, do ponto de vista do conhecimento, da moral e dos fins políticos.


O senso e o impacto da obra de Emmanuel Kant ( 1724 - 1804 ) são imperceptíveis se nós não procurarmos medir em primeiro ligar o sismo intelectual e moral que representa a passagem do universo da cosmologia grega ao universo da fìsica moderna, à ruptura abissal que separa o "mundo fechado dos Antigos do universo infinito" (1) de Galilée e Newton. Pois é após essa ruptura que Kant pensa, e sua filosofia sò tem um ùnico objetivo: construir um edifìcio novo, o do humanismo moderno, sobre as ruìnas de uma ordem còsmica desaparecida para sempre.

Nota 1 = Expressões emprestadas a Alexandre Koyré (Du monde clos à l'univers infini, Gallimard, 1957).


Do mundo fechado ao infinito

Em menos de um século e meio, com efeito - durante o perìodo que se estende da publicação da obra de Copernic sobre "As revoluções das òrbitas celestes (1543) a obra des "Philosophie naturalis principia mathematica" (1687) de Newton, passando pelos "Princìpios da filosofia " de Descartes (1644) e a publicação das teses de Galilée sobre as revelações da terra e do sol ( 1632 ) - uma revolução cientìfica sem precedente na història da humanidade realizou-se.Não foi apenas o homem "que perdeu seu lugar no mundo", mas o mundo ele mesmo, esse famoso cosmos grego, que volatilizou-se puramente e simplesmente. Para se ter uma idéia do que os Gregos chamavam cosmos, é preciso representar-se o todo do universo como se tratasse de um ser organizado e animado. Para os estòicos, por exemplo, a ordem còsmica não era somente uma organização magnifìca, mas era tambem uma ordem anàloga a de um ser vivo. O mundo material, o universo inteiro era para eles como um gigantesco animal de quem cada elemento - cada orgão - teria sido admiravelmente concebido e agenciado em harmonia com o conjunto universal.
Eis o que a fìsica dos Antigos convidava os homens a reconhecer e que a ética os ordenava imperativamente de imitar.
Mas após a revolução cientìfica, o universo é apenas um caos infinito, desencantado e sem outro valor que aquele que nòs lhe damos, um campo de forças que se organizam, certo, mas no choque, sem nenhuma harmonia nem significação. Então não existe mais nada na natureza que nòs possamos imitar no plano moral, pois nòs não podemos ver como o silêncio desses espaços infinitos que terrorizam o libertino de Pascal poderiam servir seja no que for de modelo ético para seres humanos doravante desemparados.
Eis então a razão das questões inéditas que animam as obras principais de Kant.

Da contemplação a construção

Primeiro na "Crìtica da razão pura" (1781) : se o mundo é apenas um caos, um tecido conflituoso de forças, é doravante "do exterior", pela força de seu espìrito, que o sàbio deverà re-introduzir uma ordem e um senso no real. Isso serà por excelência, a nova tarefa da ciência moderna, que não reside mais na contemplação, no que os Gregos chamam a "theoria", mas em um trabalho, na elaboração ativa, e verdadeiramente na construção de leis que permitem de dar novamente coerência a um universo desencantado. Por exemplo, com o princìpio de causalidade, o sàbio "moderno" vai tentar estabelecer os elos "lògicos" entre certos fenômenos que ele considera como efeitos, certos outros fenômenos nos quais ele consegue, graças ao método experimental, a descobrir causas. Eis a razão pela qual a "Crìtica da razão pura" começa com uma interrogação em aparência puramente "técnica", para não dizer bizantina, mas na verdade de uma profundeza abissal, tocando nossa capacidade a fabricar "sìnteses", "julgamentos sintéticos". A fòrmula designa simplesmente a nova concepção das leis cientìficas que vão receber por missão de estabelecer ligações (etimologicamente, sintetizar quer dizer botar junto) coerentes e esclarecedoras entre fenômenos em que a ordenação não é mais dada, mas construìda. Revolução intelectual sem precedente: a noção grega de contemplação vai fazer um lugar a noção de um trabalho do espìrito, de uma atividade de sìntese, de "conexão" pela qual o sàbio autêntico consegue "fabricar" as leis cientìficas.
Mas nessas condições tambem, dependendo da interpretação da questão moral que aborda a "Crìtica da razão pràtica" (1788) muda, tambem ela, completamente. À interrogação clàssica "o que devo fazer?" nenhum outro critério natural saberia doravante responder. Como, com efeito, considerar por modelo a ordem còsmica se não podemos encontra-la? Não somente a natureza não tem mais nada de bom em si, mas é preciso estar em oposição para com ela e combatê-la sem trégua para alcançar o bem.
E isso é verdade tanto em nòs mesmos quanto fora de nòs mesmos. Vejam, por exemplo, o tremor de terra de Lisboa que, em 1755, fez em algumas horas vàrios milhares de mortos.
Estaria mesmo nessa tragédia o sinal do maravilhoso cosmos que os Antigos acreditavam ver em torno deles ?
Seria essa natureza, hòstil e malevolente, que nòs deveriamos ter por modelo ?
E em nòs mesmos, as coisas se possìvel, são piores ainda : se eu escuto minha natureza, é incessantemente e com força o egoìsmo mais decidido que fala em mim, que me comanda de seguir meus interesses particulares desprezando os interesses dos outros. Como eu poderia um instante me persuadir que eu poderei alcançar o bem comum, o interesse geral, escutando essa natureza cruel?
A verdade, é que com ela, os outros podem sempre esperar.....
Eis a razão crucial da ética no universo moderno que fez seu luto das cosmologias antigas : em qual entidade enraizar uma nova ordem, um outro cosmos se preferirmos, que seja ao mesmo tempo antinatural e irreligioso? Resposta que funda o humanismo moderno tanto no plano moral que polìtico e jurìdico: sobre a ùnica vontade dos homens, a condição que eles aceitem de se auto-limitar compreendendo que a liberdade deles, as vezes, deve cessar onde começa a liberdade de outrem.


O reino dos fins

Essa "segunda natureza" que se trata de instaurar, Kant a designarà sob a expressão do "reino dos fins". Pois seu princìpio supremo, é o respeito de outrem, que nòs não devemos jamais tratar como um simples meio. Pois é nisso, justamente, a coisa mais natural do mundo e que supõe um esforço em si mesmo, uma vontade que se arranca das inclinações egoìstas. Eis a razão pela qual a lei moral se impõe a nòs mesmos sob a forma de um imperativo, de um dever: justamente porque ela não é natural, mais supõe esforços ou, como diz Kant, uma "boa vontade", verdadeiramente uma "vontade boa". Como o conhecimento, que não é mais "theoria", contemplação, mas trabalho de sìntese dos fenômenos entre eles no seio de leis construìdas pelo espìrito humano, esse novo cosmos tambem é um universo moral "artificial", inteiramente a construir e de maneira alguma dado nem garantido com antecedência, um mundo onde o homem, longe de ser o fragmento minùsculo de uma totalidade que lhe engloba de todas as partes, torna-se um "fim em si" - e não mais um meio, um ser que nòs não poderìamos instrumentalizar se o grande Todo o exigisse, mas o alpha e o oméga de todo valor e de toda dignidade moral. Com Kant, nòs deixamos o universo dado todo feito e aprimorado pela natureza para entrar em um mundo de parte em parte forjado pelos e para os seres humanos - em que, é claro, reside o advento da democracia que està em jogo no nascimento desse novo paradigma intelectual e moral. Uma aventura que, para o melhor e para o pior, ainda é nossa atualmente.


- Luc Ferry, filòsofo, antigo ministro, presidente do Conselho de anàlise da sociedade ( CAS ), autor, entre outros, de " L'Homme - Dieu ou le Sens de la vie" ( LGF , 1997), de "Qu'est-ce qu'une vie réussie?" (LGF,2005) e "D'Apprendre à vivre: traité de philosophie à l'usage des jeunes générations " ( Plon, 2006 ).

sábado, 16 de junho de 2007

Doutrinas Políticas Contemporâneas




J. Bernardo Cabral - Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (1981/1983). Relator-Geral da Assembléia Nacional Constituinte (1987/1988). Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados (1989). Ministro de Estado da Justiça (15.03.90 a 09.10.90). Senador. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 1997/1998 e 2001/2002)


1. O Socialismo: vertente totalitária e democrática. 2. O Liberalismo: experiências de resistência aos regimes absolutistas. 3. A Doutrina Liberal. 4. Conclusão: sinais de convergência.

1) O Socialismo

Neste momento de crise, quando as perspectivas do País tornam-se incertas, é, sem dúvida, fundamental rememorar, ainda que de forma condensada, a grande polêmica que atravessou o século XX, travada entre as principais doutrinas políticas da modernidade: de um lado, o Socialismo, tanto na sua vertente totalitária, quanto na democrática, esta última mais conhecida como SocialDemocracia; de outro lado, o Liberalismo, surgido a partir das experiências de resistência aos regimes absolutistas, que chega a este novo milênio dotado de renovada legitimidade, conferida pela eficácia demonstrada no trato das grandes questões sociais e econômicas do nosso tempo.

Abordarei em primeiro lugar, alguns pontos da história e da doutrina do Socialismo, na sua vertente comunista, que, no século XX, chegou a gerir os destinos de uma significativa parcela da população mundial.

Em seguida, examinarei o desempenho daqueles que diligenciaram na realização das metas socialistas por meios exclusivamente democráticos, ou seja, a denominada Social-Democracia, corrente que obteve um sucesso significativo na maior parte dos países da Europa Ocidental, associando à sua gestão o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social.

Finalmente, discutirei a Doutrina Liberal, tentando enfatizar os pontos que, a meu ver, tornaram-na relativamente imune aos efeitos da crise contemporânea, que está eliminando o comunismo e pondo em xeque o Estado de Bem-Estar Social.

O Socialismo foi definido de diversas maneiras, ao longo de sua história. Para alguns, seria caracterizado pela preocupação com as classes desprivilegiadas da sociedade. Outros vêem como seu traço marcante a oposição à propriedade privada. Não há dúvida de que essas e outras características são comuns ao pensamento socialista. Considero, no entanto, mais fecundo definir o Socialismo, não porum traço ou conjunto de traços, e sim, como o fez o grande sociólogo francês Emile Durkheim, por uma tensão entre dois princípios coexistentes: a demanda por racionalidade econômica e a exigência de justiça social.

Demanda por racionalidade, na medida em que o caráter caótico da produção capitalista manifestou-se desde cedo. Períodos de bonança eram interrompidos por crises recorrentes durante as quais o excesso de bens convivia com a incapacidade de compra, e, portanto, com a miséria. A superação desse círculo vicioso consistiria na subordinação da propriedade privada, ou seja, um movimento que iria da autonomia dos capitalistas individuais para um planejamento racional centralizado.

Exigência de justiça social, na medida em que a mesma propriedade privada impunha uma distribuição desigual de bens, serviços e oportunidades de vida.

No pensamento socialista os dois aspectos são inseparáveis; na verdade, a justiça seria uma decorrência necessária da introdução da racionalidade na vida econômica. Foi preciso o transcurso de todo o século XX para demonstrar que justiça e racionalidade nem sempre são coincidentes, podendo, inclusive, ser excludentes.

Discorrer aqui, pormenorizadamente, sobre a história do movimento socialista seria desnecessário e extrapolaria os limites desta reflexão. Limitar-me-ei, portanto, a assinalar alguns pontos de inflexão, aqueles que julgo mais carregados de conseqüências para a história do século passado.
O Socialismo surge como tentativa de superar as mazelas da Revolução Industrial. Data, portanto, do último quartel do século XVIII. Excluí de nossa periodização todas as obras dos pensadores comunistas utópicos, de Platão a Campanella, pois estes estavam preocupados primordialmente com a questão da construção de uma sociedade justa, faltando-lhes a dimensão da racionalidade na produção de riquezas.

Isto posto, é possível delimitar, na história do Socialismo, um primeiro período que se estenderia de suas primeiras manifestações até o ano de 1848. Esse ano é tomado como marco em função da participação dos trabalhadores nos movimentos revolucionários que eclodiram na Europa e também por nele ter-se dado a publicação do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que marcaria a feição posterior do movimento.

O segundo período apresentaria como limites os anos de 1848 e de 1914. No seu curso, o Marxismo consolida-se como tendência dominante do Socialismo, por deslocar a vertente anarquista, no âmbito da Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1863. A partir daí, o Marxismo foi-se impondo como a única versão legítima do Socialismo, a única que teria como fundamento as bases sólidas da ciência. É nesse período, ainda, que os diferentes partidos socialistas europeus, já denominados, em geral, social-democratas, convertem-se em partidos eleitoralmente significativos. Houve um incremento exponencial dos votos socialistas a partir da conquista do sufrágio universal. Em 1890, a social-democracia alemã chegou à condição de partido mais votado, no que foi seguida por seus congêneres da Bélgica, Escandinávia e Áustria.

A essa altura, o Socialismo constituía-se em um expressivo movimento de massas animado por uma mesma interpretação da sociedade e da História, desenvolvida por Marx.

Suas idéias centrais são:

1 – O Materialismo: postula a primazia do ser sobre a consciência dos homens, ou seja, a consciência dos homens depende da forma como provêem suas necessidades materiais.

2 – A Dialética: consiste no reconhecimento do caráter contraditório da realidade social manifesta na centralidade da luta de classes.

3 – A Direção da História: a História da Humanidade é vista como um processo evolutivo, uma vez que o desenvolvimento tecnológico define, em última análise, a estrutura de classes de cada sociedade e esse desenvolvimento é cumulativo.

4 – O Fim da História: a própria evolução da sociedade de classes apontaria para o seu fim. A divisão da sociedade em classes teria fim e uma nova era teria início. A simplificação dos conflitos de classe levaria à expropriação do patronato, não em benefício de uma nova classe dominante, mas em benefício de todos.

5 – O Caminho: a consecução dessa meta exigiria, no entanto, um momento de transição durante o qual os trabalhadores utilizariam a coerção contra os interessados na manutenção ou restauração da antiga ordem. Nesse período o Estado assumiria o controle do sistema produtivo e injetaria racionalidade na produção mediante o planejamento centralizado.

A primeira oportunidade de testar empiricamente a validade desse corpo teórico socialista ocorreu nos desdobramentos da Revolução Russa de 1917. Instituiu-se, então, um regime unipartidário comandado por uma fração do antigo Partido Social Democrata Russo, os Bolcheviques. A propriedade privada sobre os meios de produção foi abolida com a sua passagem para as mãos do Estado, processo particularmente violento no caso da coletivização da agricultura efetuada por Stalin, na década de 1930. A política passou a ser monopolizada pelo partido no poder, que não se constrangeu em usar a coerção em doses maciças, primeiro contra os partidários do antigo regime, depois contra os demais partidos oposicionistas e, finalmente, contra os dissidentes do próprio Partido Comunista.

A aplicação da receita socialista em toda a sua integridade teve como resultado a instauração de um regime autoritário, quando não francamente totalitário. Como esse resultado pode ser encarado? Como um desvio em relação ao projeto original, ou fiel ao espírito dos textos de Marx, como uma etapa necessária ao estabelecimento de uma sociedade efetivamente livre?

Parece-me que os acontecimentos da última década não deixam dúvida a respeito. Enquanto o mundo comunista persistia era possível pensar que nos encontrávamos frente a uma etapa necessária da construção de uma sociedade justa e abundante. A ausência de democracia ainda podia ser vista como uma conseqüência da pressão dos países capitalistas sobre o bloco socialista e bastaria um esforço de auto-reforma do sistema para que o rumo correto fosse retomado. Por um momento, essas esperanças pareceram concretizar-se nos processos que os soviéticos chamaram glasnost e Perestroika. No entanto, a reforma controlada do sistema rapidamente cedeu lugar a seu desmantelamento.

Quais as razões profundas desse desfecho? Em linhas gerais, podemos dizer que o bloco comunista foi vítima do desenvolvimento tecnológico recente. Numa confirmação irônica de um dos teoremas marxistas, as relações de produção construídas a partir da extinção da propriedade privada e da substituição do mercado pelo planejamento central não resistiram ao avanço das forças produtivas e foram por ele despedaçadas.

Vale lembrar que nem sempre o sistema econômico soviético foi inoperante. Respondeu por taxas de crescimento industrial das mais elevadas por um longo período de tempo. Transformou a antiga Rússia em uma potência industrial e militar. Conseguiu, além disso, ganhos até então desconhecidos no rumo da equalização das condições de vida de sua população. Os indicadores de saúde e educação, em poucos anos, alcançaram e ultrapassaram aqueles vigentes nos países capitalistas ocidentais. Mesmo a ocorrência do processo de desestalinização aumentou o otimismo daqueles que, dentro e fora da União Soviética, julgavam o totalitarismo um aspecto descartável do sistema. Emblemático desse período de euforia foi o anúncio de Kruschev, na esteira das primeiras vitórias na corrida espacial, da iminente ultrapassagem da economia americana pela soviética.

O que mudou, desde então? Os avanços científicos e tecnológicos potencializaram o processo de globalização e geraram um novo modo de produzir bens e serviços para o qual mercado e democracia, ou seja, iniciativas no âmbito das unidades de produção e transparência revelaram-se indispensáveis. Esses eram justamente os dois fatores de que carecia o bloco soviético.

A partir de então, deixou de ser plausível a possibilidade de regenerar o comunismo, de transformá-lo por dentro, mediante uma intervenção política e ficou claro o que nós, liberais, sempre soubemos: a liberdade não surge da sua ausência. Vemos, hoje, o preço que a Rússia paga pela ausência de uma tradição política democrática e de uma tradição econômica de mercado. Na política, as instituições são frágeis e o risco de retrocesso em direção ao autoritarismo é presente. Na economia, a iniciativa privada foi açambarcada pelo crime organizado, refúgio dos únicos empreendedores remanescentes do velho regime.

O experimento comunista mostra um resultado claro: os meios preconizados historicamente pela tradição socialista não alcançaram os fins desejados. A justiça social foi incrementada ao custo de um grau absurdo de coerção e revelou -se fugaz. Não sobreviveu ao desmantelamento do regime. A racionalidade da economia revelou-se um mito. O planejamento centralizado mostrou sua inoperância em face das novas condições de produção originadas da revolução científico-tecnológica.

Resta-nos examinar o desempenho, neste século, do braço democrático do movimento socialista, a Social-Democracia.

Nas suas origens, o Socialismo manifestava desconfiança profunda quanto à eficácia e pertinência de sua participação no processo eleitoral. A atitude era procedente, na medida em que vigorava o voto censitário, ou seja, julgava-se, então, que o direito de voto deveria estar restrito àqueles que tinham algo a perder com o desgovemo do país: os proprietários e os detentores de rendas elevadas. Era recorrente, entre os primeiros pensadores socialistas, a idéia de que a nova sociedade poderia surgir, fora da esfera política, a partir de comunidades isoladas, funcionando conforme as novas regras. Acreditava-se que, comprovada assim sua eficácia, o socialismo alastrar-se-ia por força de um efeito de demonstração.

O marxismo representou uma ruptura com essa visão. Ao considerar a conquista do Estado como instrumento indispensável à construção da nova sociedade, enfatizou a necessidade de participação dos trabalhadores na política institucional “burguesa”. Era necessário sempre que possível, a organização de partidos políticos legais e a apresentação de candidatos nas disputas eleitorais.

É certo que essa visão era, no início, inteiramente instrumental. As eleições eram vistas como um momento privilegiado de agitação e propaganda das idéias socialistas, mas não se acreditava na eleição de um governo capaz de implementar as mudanças necessárias. Mesmo que eleito, um governo com essas intenções seria em pouco tempo manietado ou derrubado por uma rebelião das classes possuidoras contra sua própria ordem legal. A revolução, ponto de inflexão no rumo da nova sociedade, deveria ocorrer, na opinião majoritária entre os militantes, no bojo de uma greve geral, seguida do assalto ao poder.

A conquista progressiva do sufrágio universal nos principais países europeus, muitas vezes com a participação decisiva dos trabalhadores, foi aos poucos alterando essa visão. Os socialistas acreditavam, firmemente, na inevitabilidade de a população trabalhadora vir a transformar-se na maioria absoluta em todas as nações modernas. Conforme Marx, a tendência à concentração de empresas era inexorável, o número de capitalistas tenderia a diminuir, a pequena-burguesia e o campesinato, classes de transição, desapareceriam e os trabalhadores constituiriam a maioria esmagadora da população num futuro próximo. Nessas circunstâncias, era difícil não considerar a possibilidade de os trabalhadores chegarem ao poder pela via do sufrágio universal.

Os resultados das eleições sustentavam essa perspectiva. Conforme mencionei anteriormente, na altura da passagem do século passado, os diversos partidos socialistas foram-se convertendo nos maiores depositários de votos de seus países. Logo, foram expostos a problemas delicados. Constituindo os partidos mais votados, sem entretanto dispor da maioria absoluta necessária à implementação dos seus programas, os socialistas foram chamados a constituir ou a formar governos de coalizão. Tiveram, assim, de optar entre a manutenção integral de suas propostas, e a conseqüente exclusão do governo, e a prática do compromisso, das concessões mútuas, da obtenção de pequenas conquistas.

A fratura com a vertente comunista, concretizada ao longo da Primeira Grande Guerra e formalizada em 1921, operou nessa linha de clivagem, separando aqueles que viam as eleições como agitação preparatória da insurreição e aqueles que se comprometeram com a preservação das regras democráticas. Esses últimos desenvolveram a lógica da acumulação de conquistas, ou seja, de reforma em reforma chegar-se-ia à transformação completa da sociedade. Nas palavras de um líder socialista da época, a chegada ao socialismo poderia ser tão imperceptível quanto a passagem de um navio pela linha do Equador.

Sabemos, hoje, que essa estratégia não logrou êxito. Era necessáriopara seu sucesso a esperada maioria absoluta dos trabalhadores no conjunto da população. E tal fato não ocorreu. Por outro lado, as reformas deveriam ser cumulativas e não passíveis de reversão, e a experiência histórica demonstrou que, administradas por novas maiorias, ou simplesmente deixadas à própria sorte, as reformas tendiam a desaparecer.

O fato de os trabalhadores persistirem como maioria relativa e não como maioria absoluta foi de particular relevância para a estratégia posterior dos social-democratas. Os partidos europeus viram-se diante da alternativa de concentrar seus esforços na classe operária e renunciar à possibilidade de serem majoritários ou de se abrirem à participação de outros grupos sociais.

O problema, no caso, é que verificou-se um trade off entre ambas as possibilidades. Ao concentrar suas campanhas nos interesses e na identidade operária, perdiam eleitores de outros grupos. Ao tentar a ampliação, deixavam de apelar para a consciência de classe dos operários, liberando-os, em parte, para votos desvinculados de sua identidade de trabalhador. Nessa alternativa, ganhariam votos com uma mão e os perderiam com a outra, sem alcançar a desejada e necessária maioria absoluta.
A hipótese desse trade off, desenvolvida pelo cientista político Adam Przeworski, encontra apoio nos dados disponíveis sobre o desempenho eleitoral dos partidos socialistas. Apenas no começo do século XX os socialistas algumas vezes aproximaram-se dos cinqüenta por cento dos votos. A partir da década de 1920, entretanto, raramente ultrapassaram os trinta por cento, sendo levados a participar de governos de coalizão, seja na condição de protagonista, seja na de coadjuvante.

Não é possível, entretanto, deixar de reconhecer algum sucesso ao experimento social-democrata. Principalmente a partir da década de 1930, quando assumiram políticas de cunho keynesiano, eles tiveram participação destacada na construção do chamado Estado de Bem-Estar Social.

Desde então, e principalmente no segundo pós-guerra, os governos socialistas desenvolveram um grau de intervenção na economia sem precedentes, mediante a nacionalização de setores inteiros da produção. Paralelamente, ampliaram substancialmente os chamados direitos sociais. Além dos direitos civis, as chamadas liberdades individuais, e do direito de votar e ser votado, os cidadãos desses países passaram a ter como direitos o acesso à saúde, à educação, ao emprego, à seguridade social, à moradia, entre outros. Cabe assinalar que o conteúdo de todos esses direitos sociais era até então simples objeto de transação no mercado, acessíveis apenas aos que dispunham de recursos para comprá-los.

A intervenção do Estado no sentido de regular a economia e garantir esse conjunto expressivo de direitos a todos os cidadãos foi mais profunda e continuada em países como a Suécia e a Inglaterra. Na década de 1950, inclusive, teóricos do trabalhismo inglês não apenas acreditavam estar no caminho do socialismo, como também afirmavam ser impossível um eventual retorno daquele país ao capitalismo.

Essa, no entanto, foi a previsão que teve o desmentido mais rápido. A partir da segunda metade da década de 1970, toda uma leva de vitórias eleitorais conservadoras remeteu os partidos socialistas à oposição. As reformas conquistadas sofreram rápida reversão. Empresas estatais foram privatizadas e o Estado tratou de limitar o alcance dos direitos sociais recentemente estatuídos.

Quais as razões da crise do Estado de Bem-Estar Social? São tantas que mencionarei apenas os fatores mais relevantes. Em primeiro lugar, a globalização produziu um ambiente favorável à rápida mobilidade de capitais. Estes podem, face a uma política redistributiva considerada excessiva, migrar com facilidade para outro país, causando desemprego e mais pobreza.

Em segundo lugar, outro resultado da revolução científico-tecnológica foi a criação do desemprego estrutural. Com ele, diminui o número de contribuintes e aumenta o de beneficiários das políticas sociais. O desequilíbrio assim gerado exige recursos cada vez maiores e alimenta a chamada “revolta dos contribuintes”, que começam a direcionar seus votos aos partidos conservadores.

Em terceiro lugar, parece claro, hoje, que, mesmo nos seus melhores dias, o Estado de Bem-Estar Social tinha como premissa uma estrutura familiar tradicional. Encontrava-se equipado para atender ao desemprego masculino, pressupondo o papel de esposa para a maioria da população feminina. Com a freqüência maior de divórcios e o afluxo das mulheres ao mercado de trabalho o Estado revelou-se incapacitado para fazer frente ao aumento dos gastos.

Finalmente, uma linha de crítica, iniciada pelos liberais, mas hoje encampada por correntes socialistas, dirige-se ao complexo paternalismo/passividade que essas políticas estimulam. As populações atendidas vêem o seu destino nas mãos de uma burocracia que escapa à sua influência. Cria-se uma cultura da dependência que, ao invés de integrar os excluídos na ordem social, estimula a permanência destes nos limites dessa ordem, na condição de incapazes de garantir seu próprio sustento, expondo-os às conhecidas conseqüências em termos de preconceito.

Pode-se concluir, em suma, que o projeto social-democrata foi vítima dos mesmos fatores históricos que evidenciaram o fracasso do comunismo: a revolução científico-tecnológica e o processo de globalização dela decorrente. Aqui cabem duas indagações: antes que o peso desses fatores se fizesse sentir em meados dos anos de 1970, era possível afirmar, ao longo das três décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra, que a via social-democrata alcançara êxito? E, ainda, o caminho das reformas sucessivas levara ao socialismo?

Depende. Se por Socialismo entendemos uma sociedade próxima do pleno emprego, com uma elevada renda per capita, na qual os desempregados e os excluídos do mercado de trabalho por incapacidade também fazem jus a um rendimento digno, garantido pelo Estado, então a Suécia foi, de fato, durante alguns anos, uma sociedade socialista.

O Socialismo, no entanto, prometeu mais do que isso. Propôs-se à construção de uma sociedade de liberdade e abundância, na qual todas as necessidades individuais encontrariam satisfação. Acenou com a libertação do homem de todas as amarras e da situação de alienação em que se encontra. Até a formação da identidade individual ver-se-ia livre de toda distorção. Nesse sentido maximalista, o Socialismo não foi substantivamente implantado nem na Suécia, nem em parte alguma.


2) O Liberalismo: experiências de resistência aos regimes absolutistas

Aliás, a trajetória do Liberalismo constitui um interessante contraponto aos percalços do Socialismo, em todas as suas variantes. Surgido como processo de limitação dos poderes do Estado, principalmente na Inglaterra, a partir do século XIII, ganhou densidade intelectual com as contribuições de inúmeros filósofos e pensadores da política, de Locke a John Stuart Mill. Cabe assinalar que sua origem histórica, vinculada às lutas da burguesia ascendente, levou os socialistas a identificá-lo, a priori, como a ideologia dessa classe social e a condená-lo à impossibilidade de cumprir as suas promessas.

Numa sociedade dividida em classes, as liberdades fundamentais permaneceriam apanágio das classes dominantes: os proprietários. A extensão concreta dos direitos abstratamente universais colocaria em risco, de imediato, a ordem social e propiciaria sua subversão pelos excluídos. Podemos avaliar hoje, em concreto, que as promessas do Liberalismo foram cumpridas numa extensão muito maior que as do Socialismo.

Mas, de que estamos falando, quando usamos o termo Liberalismo? A palavra, na verdade, recobre uma gama de significados tão ampla quanto Socialismo. Valho-me da definição proposta pelo pensador italiano contemporâneo Norberto Bobbio, por sua clareza e operacionalidade. Para ele, Liberalismo é uma concepção de Estado, aquela que o encerra em limites bem definidos. O Estado liberal opõe-se, de um lado, ao Estado absoluto, cujo poder é ilimitado. Nesse sentido, Estado liberal confunde-se com Estado de Direito. Por outro lado, o Estado liberal não é limitado apenas em seus poderes, mas também em suas funções. Nesse sentido, o Estado liberal é um Estado mínimo, oposto, por exemplo, ao Estado de Bem-Estar Social.

É importante fazer uma distinção entre o Liberalismo assim definido e a Democracia. Esta é um regime político, na qual o poder encontra-se nas mãos de todos, a antítese, portanto, da Autocracia. A Democracia responde à exigência de distribuir o poder, não de limitá-lo.

A tensão entre Liberalismo e Democracia perpassa toda a história da doutrina. Não são poucos os pensadores liberais que consideraram ambos inconciliáveis. Historicamente, o Liberalismo prosperou inicialmente em regimes políticos oligárquicos, nos quais os direitos políticos eram inseparáveis da propriedade. Na melhor tradição liberal, a propriedade era vista como única garantia de um comportamento político responsável, única salvaguarda contra o voto disruptor da ordem.

Sabemos, hoje, no entanto, que as relações entre Liberalismo e Democracia são bastante complexas. Numa primeira dimensão, pode-se afirmar a compatibilidade entre ambos. É possível existir um Estado simultaneamente liberal e democrático. Há, porém, outras possibilidades históricas, como um Estado liberal, mas não-democrático, exemplificados pelos regimes oligárquicos, ou um Estado democrático, mas não liberal, no qual a vontade da maioria seria ilimitada.
Numa segunda dimensão, comprova-se a permanente tensão, até mesmo o antagonismo entre Liberalismo e Democracia. Nesse caso, a procura da igualdade de condições entre os cidadãos, por meio da ação do Estado, expande essa ação até esferas que deveriam ser deixadas ao arbítrio individual. Se o Estado decide tudo por nós e nos provê de todos os bens necessários, acabam a autonomia e a responsabilidade individuais.

Numa última dimensão, transparece, nas condições políticas modernas, a união necessária entre Liberalismo e Democracia. A história recente fornece razões convincentes para se crer que, de um lado, os direitos individuais dependem da regra do jogo democrático para se manterem; de outro lado, que a proteção dos direitos individuais é indispensável ao funcionamento da democracia.

Daí resulta que, hoje, os liberais trabalham no espaço da compatibilidade entre Liberalismo e Democracia; são conscientes da solidariedade existente entre ambos e procuram limitar a busca da igualdade de condições à igualdade de oportunidades para todos. Os liberais sabem que o máximo que o Estado pode fazer, sem colocar em risco os direitos individuais e a esfera privada, é assegurar o mesmo ponto de partida a todos os cidadãos. Tentar assegurar o mesmo ponto de chegada, como almejam os socialistas, é enveredar pelo caminho da servidão, na expressão feliz de Hayek.


3) A Doutrina Liberal

Cabe aqui recapitular que as linhas mestras da doutrina liberal, decantadas após séculos de especulação e debates teóricos, são:

1 – O Individualismo: Se os liberais buscam limitar o poder do Estado, fazem-no em nome de uma realidade anterior e moralmente mais elevada – o indivíduo. Para eles, os indivíduos precedem o Estado, que só existe para satisfazer as suas, deles, necessidades.

2 – Os Direitos Naturais: Esses indivíduos que preexistem ao coletivo portam direitos invioláveis, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. A tradição liberal fundamenta esses direitos na sua suposta naturalidade. A suposição não é necessária. Basta-nos considerar, em cada sociedade e em cada período histórico, como direitos fundamentais e, portanto, invioláveis, aqueles reconhecidos a todos os seus membros. Os direitos universais são os fundamentais.

3 – A Valorização da Diversidade: Na tradição liberal, toda uniformidade é percebida como imposta por um poder exterior ao indivíduo. Os seres humanos são plurais e um de seus direitos inalienáveis é o da expressão e do desenvolvimento de sua singularidade. Da mesma forma, os conflitos que advêm da expressão das diferenças – de valores, idéias e interesses - são salutares, uma vez que propiciam a emulação, o aperfeiçoamento e a prevalência das alternativas mais eficazes. Na esfera econômica, essa diretriz materializa-se na valorização da concorrência. Sociedades que estimulam a diversidade são ativas e progressistas.

Parece-me claro que, no ambiente globalizado e sujeito a intensas alterações tecnológicas já aqui mencionados, um corpo doutrinário com as características acima descritas encontra-se mais capacitado para conduzir sociedades modernas do que as doutrinas concorrentes originadas do tronco socialista. Os valores articulados pelos liberais aparentam ser hoje os únicos compatíveis com o modo de produção que atualmente se gesta. Transparência e livre circulação da informação, plena liberdade à iniciativa individual, tanto no campo do capital quanto do trabalho, dotação de responsabilidade aos sujeitos dessa iniciativa; todas essas são condições para operar a produção de bens e serviços, na contemporaneidade.

O resultado mais evidente das mudanças recentes é a crescente complexidade da vida e do mundo modernos. Nossos problemas, sejam eles tecnológicos, econômicos ou meramente cotidianos, não dispõem mais de apenas uma solução ótima, mas sim de uma multiplicidade de soluções ao alcance dos atores sociais. Tornou-se plenamente aceitável a crítica dos economistas liberais ao Socialismo: se num estágio mais simples de sociedade, o planejamento central podia aspirar a uma racionalidade superior à do mercado, hoje o mercado é mecanismo muito mais eficiente para captar e transmitir os sinais da esfera produtiva. O planejamento central, na forma como foi postulado pelos socialistas, foi relegado ao campo da irracionalidade econômica.

Devo dizer, contudo, que a hegemonia dos mecanismos de mercado e das instituições democráticas a que assistimos não significa uma vitória absoluta do Liberalismo, em sua feição originária. Décadas de embate com as correntes socialistas tornaram os liberais sensíveis às condições sociais que possibilitam a igualdade de oportunidades.
Poucos expoentes do Liberalismo negariam hoje a necessidade de interferência estatal em áreas como saúde e educação, cruciais para que os indivíduos iniciem o processo de concorrência em igualdade ou ao menos em semelhança de condições. Alguns preferem dar a esse movimento o nome de Social-Liberalismo, uma vez que legitima a intervenção do Estado em esferas antes deixadas exclusivamente ao livre jogo das forças de mercado.

Nota-se, por outro lado, movimento semelhante da parte de tendências historicamente situadas no campo do Socialismo. As debilidades do Estado de Bem-Estar Social, particularmente sua tendência à burocratização, à alienação da população beneficiada, à perpetuação da exclusão social num gueto de dependentes do Poder Público, originaram críticas entre os próprios socialistas. Estes passaram a reconhecer, ao menos parcialmente, as limitações do Estado como instrumento de promoção da igualdade e da justiça e a conseqüente necessidade de estimular a autonomia individual. Outro não é o significado da tentativa autodenominada Terceira Via, teorizada por Anthony Giddens, na Inglaterra, inspiração do atual governo trabalhista daquele país.


4) Conclusão: sinais de convergência

Neste começo de século, é difícil prever o resultado desses processos, tanto no campo do debate Intelectual, quanto no da prática de governo. O que se pode é apenas considerar os sinais de convergência entre as distintas doutrinas aqui sucintamente abordadas como um sintoma auspicioso de que décadas de debate intenso estão produzindo conclusões, expressas como consensos parciais acerca da gestão da sociedade. Ainda bem.


Já não era sem-tempo.

terça-feira, 12 de junho de 2007

A educação do Iluminismo

- Um primeiro exemplo, Rousseau (L'Emile)

Introdução

- Iluminismo = movimento europeu de difusão do conhecimento, de melhoração prática seguindo os progressos teóricos. Existem traços distintivos nas diferentes manifestações nacionais: tendência ao materialismo nos Franceses, a adoção da religião natural nos Ingleses, uma reforma do cristianismo nos Alemães.

- O Iluminismo dá uma grande importância a educação, como meio de formar o homem por ele mesmo e o cidadão. O Iluminismo integra com freqüência a dimensão histórica do progresso.

- Rousseau aparece então como um personagem paradoxal do Iluminismo. Na filosofia dele, nós vemos sempre um otimismo antropológico e um pessimismo histórico. ("Tudo está bem saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem"). Contudo, sua idéia de uma nova educação é realmente a filha de seu tempo: ela quer romper com as antigas tradições e liberar o homem.

Contexto de l'Emile (páginas citadas segundo a edição GF): acompanhar um personagem fictício, Emile, e contar sua educação ideal através um preceptor nas diferentes idades da vida.

1. Da educação em geral

1.1 Sua definição e sua necessidade.

1.1.1. "Nós modelamos as plantas pela agricultura, e os homens pela educação”. (pg. 36)

1.1.2. Sem educação, nós ficaríamos fracos, desprovidos de tudo e estúpidos. (pg. 36-37)

1.2. As três educações.

1.2.1. "O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação pela natureza".

1.2.2. "[....] O que nos ensina a utilização a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens".

1.2.3."[.....] e a aquisição de nossa própria experiência sobre os objetos que nos são destinados é a educação das coisas". (p. 37)

2. Finalidades da educação.

2.1 Qual é a unidade que podemos encontrar entre as três educações?

2.1.1. Porque sozinha a educação não depende de nós.

2.1.2. Enquanto que a educação das coisas só depende em alguns aspectos e que a dos homens depende bem mais.

2.1.3. O objetivo em direção do qual devem convergir as três educações é o da natureza. (p. 37)

2.2. " [.....] É preciso optar entre fazer um homem ou um cidadão". (p. 38)

2.2.1 "O homem é tudo para ele; ele é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só é relativo a ele mesmo ou a seu semelhante".

2.2.2. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que é relativa ao denominador, e que o valor está na sua relação com o inteiro, que é o corpo social. (p. 39)

2.3 Quer dizer escolher entre uma educação pública, comum, e uma particular, doméstica.

2.3.1. " A instituição pública não existe mais e não pode mais existir, porque onde não existe mais a pátria, não é mais possível a existência de cidadãos". (p. 40)

2.3.2. Permanece a educação doméstica, que ensina a viver, e não uma profissão determinada. (p. 42)

3. Uma educação sob o signo da liberdade.

3.1. Viver, é ser ativo, e não subjugado às maneiras de ser tradicionais.

3.1.1. "Viver, não é respirar, é agir; é fazer uso de nossos órgãos, de nossos sentidos, de nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos, que nos dão o sentimento de nossa existência".

3.1.2 "O homem civil nasce, vive e morre na escravidão: no seu nascimento nós o costuramos em um maillot; na sua morte nós o pregamos em um caixão; enquanto ele guarda a figura humana, ele está acorrentado pelas nossas instituições". (p. 43)

3.2. A conseqüência pedagógica disso é que a educação deve ser negativa para preservar a autonomia da criança.

3.2.1. A primeira educação "consiste, não a ensinar a virtude nem a verdade, mas a garantir o coração do vício e do espírito do erro". (p. 113)

.3.2.2. "Homem prudente, espie durante muito tempo a natureza, observe bem seu aluno antes de lhe dizer a primeira palavra; deixe primeiro o germe de seu caráter em plena liberdade de se mostrar, não o obrigue em nada que possa ser, afim de melhor vê-lo todo inteiro". (p. 113 - 114)

3.2.3. "Lembrem-se que antes de ousar empreender de formar um homem, é preciso ter-se feito homem a si mesmo; é preciso encontrar em si mesmo o exemplo que se deve ser proposto". (p. 114)

4. O que convém na primeira idade da vida (até dois anos).

4.1. [....] a educação do homem começa no seu nascimento. (p. 70)

4.2. A educação dos sentidos.

4.3.2. E a educação motora. (p. 73)

4.4. "Reforce então o máximo que for possível o vocabulário da criança. É um grande inconveniente que ele tenha mais palavras do que idéias, e que ele saiba dizer mais coisas do que ele possa pensar". (p. 86)

5. Em seguida na segunda (de dois à doze anos).

5.1 Contra o ensino verbal da história e da geografia. (p. 135 - 136)

5.2. "Emile nunca aprende nada por eles, nem mesmo as fábulas". (p. 139)

5.3. O método das crianças na geometria não é o nosso. (p. 185).

Conclusão

- Uma das grandes dificuldades desse autor é de pensar a coerência entre seus diferentes textos. Aqui, por exemplo, ele insiste na educação do homem e deixa de lado a educação do cidadão. Poucas coisas são ditas sobre Emile cidadão, mas nós podemos considerar que estando formado como homem, Emile terá desenvolvido os conhecimentos gerais de seus direitos e deveres, e que ele poderá tornar-se um bom cidadão.

- Rousseau = também é um grande clássico do pensamento francês, com ecos numerosos (de Pestalozzi à Meirieu, passando por Claparéde e Piaget)

- Ele insistiu na continuidade da educação através das idades, como sobre o fato que a criança não é um adulto em miniatura. Seu livro foi uma ruptura considerável na história da educação.

- Não foram os detalhes práticos da educação que asseguraram à posteridade de Rousseau, mas sua filosofia da educação como concepção da infância e da pedagogia em geral.

Filosofia e Educação

Algumas matérias para reflexão

A Educação humanista

O exemplo de Montaigne (De l'institution des enfants)


Da Instituição das crianças

Introdução

O Humanismo = redescoberta do modelo antigo de humanidades. Século 15 na Itália, em seguida em toda a Europa. Neo-humanismo no começo do século 19, que deixará rastros principalmente na concepção do "lycée" e da cultura geral.
Exemplos de grandes nomes: Pic de la Mirandole, tentando redescobrir a cidadania platônica; Comenius e sua grande didática; Montaigne e sua instituição das crianças.

- Instituição, professor, e educação; crianças: senso moderno, apesar da etimologia latina.

- Contexto: dar conselhos de educação a uma nobre a fim de educar melhor seu filho que vai nascer.

1. "[...] A maior e mais importante dificuldade da ciência humana parece situar-se nesse assunto, onde se trata da alimentação e da instituição das crianças".

1.1 A dificuldade é inerente à educação ela mesma. (p. 63)

1.1.1. O paralelo entre educação e agricultura: facilidade de procriar, variedade nas formas de educar.

1.1.2 O natural humano é imediatamente recoberto pelos costumes, pelos hábitos, e não pode ser forçado.

1.1.3. Na ausência de um conhecimento exato do que a criança pode tornar-se, é preciso lhe apresentar as melhores coisas e as mais aproveitáveis.

1.2. A dificuldade também vem na escolha do preceptor (a).

1.2.1 O objetivo da educação do pequeno nobre: fazer dele um homem hábil em vez de um sábio.

1.2.2 Para alcançar o objetivo fixado na educação, o preceptor (a), deve ter a cabeça bem feita em vez de bem cheia.

1.2.3. O preceptor (a), também deve saber se conduzir.

2. "Eu gostaria [....] que (o condutor) se conduza na sua função com uma nova maneira". (pg. 64).

2.1. O mestre não deve transmitir seu saber pelo saber segundo seu próprio ritmo. (pg. 64)

2.1.1. O preceptor, não deve prejudicar seu aluno com a sua autoridade.

2.1.2. O mestre deve primeiro olhar o aluno evoluir para em seguida ter uma discussão com ele.

2.1.3. A grande tarefa do mestre é de se regular no ritmo da criança.

2.2 O mestre deve se preocupar de seu aluno individualmente.

2.2.1. A crítica do ensino a um grupo de alunos.

2.2.2. O mestre deve se assegurar que a lição foi assimilada e posta em prática.

2.2.3.O mestre deve eventualmente favorecer a suspensão do julgamento.

3. “Sua (a do aluno) instituição, seu trabalho e estudo, só visam a (o julgamento) formá-lo”. (pg. 65)

3.1 Desenvolver o espírito crítico é uma coisa que se realiza no contato com os autores.

3.1.1. Nós aprendemos a julgar quando nos é proposto uma diversidade de julgamentos. (pg. 64)

3.1.2. É preciso fazer seu mel dos ensinamentos de outrem.

3.1.3. "Saber de cor não é saber"; o saber deve recair na conduta.

3.2. Formar o julgamento se faz igualmente pelo exercício e pelo comércio dos homens.

3.2.1. Nós desenvolvemos o julgamento exercendo-se a julgar.

3.2.2. A ações mais comuns dos homens são matérias para aprender a julgar.

3.2.3. As viagens nos países estrangeiros permitem de se confrontar a outrem.

4. "Também é uma opinião de cada um, que não é razoável de alimentar uma criança no colo de seus pais". (p. 65 - 66)

4.1. O amor familial impede que nós submetamos as crianças aos exercícios necessários.

4.2. Adestrar-se nos exercícios é uma preparação necessária às dores da vida.

4.3 A presença dos pais prejudica a autoridade do preceptor.

5. "A escola do comércio dos homens". (p. 66)

5.1. Não se trata para a criança de fazer um papel, mas de se informar honestamente sobre a verdade.

5.2 Nós só devemos ensinar a lutar quando a competição é eqüitativa.

5.3. Nós podemos obter um maravilhoso esclarecimento na freqüência ao mundo.

Conclusão

Montaigne = grande clássico do pensamento francês, com ecos em todos os séculos (Descartes, Pascal, Rousseau, Condorcet, Alain, Morin).

- Uma falta enorme desse pensamento clássico da educação: não ter levado em conta de maneira alguma a função do grupo na educação. Aqui, o contexto rigoroso do ensino é afirmado.

- A idéia de pensar por si mesmo, na filosofia de Kant, por exemplo, não é a mesma na filosofia de Montaigne. Kant diz que nós podemos aprender a filosofar sem aprender as doutrinas filosóficas.

- Ademais, a função do mestre como parteiro dos espíritos, a formação do cidadão, a escola como lugar neutro, o fato que a família educa mal, a importância do exercício é, por exemplo, os pontos importantes nos "Propos sur l'éducation" de Alain.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Hegel - O Espírito absoluto

"Saber absoluto", "fim da história" ...existe um antes e um depois Hegel. Levando a idéia de sistema a seu paroxismo, Hegel deu uma grande extensão ao campo da filosofia. Sua obra continua a suscitar a controvérsia, principalmente na França onde sua influência foi imensa.


Georg Wilhlm Friedrich Hegel

(1770 - 1831), o mais influente sem contestação dos filósofos post-Kantiens, deixou uma obra difícil. Mas será que existe um pensador importante que não tenha feito a mesma coisa? Um pensamento poderoso não se confessa sem defesa. Hegel é um grande filósofo porque ele nos força a transformar as questões que nós nos fazemos: ele desloca nossas "idéias". Ele nos ensina também essa modéstia que consiste a se colocar a escuta do real antes de julgá-lo: "Cada um quer e acredita ser melhor que seu mundo. O melhor é aquele que exprime melhor do que os outros esse mundo que é seu”.


Aristóteles dos tempos modernos

O caráter enciclopédico de seus interesses lhe valeu de ser considerado como o Aristóteles dos tempos modernos. Como esse último, ele considera que não existe de uma certa maneira nenhum objeto, tão humilde que seja possível que não ofereça um interesse para o pensamento: ao mesmo tempo em que ele reflete sobre a dialética do ser e do não ser ou sobre o "saber absoluto", ele se interessa à química, a astronomia, a psiquiatria, a economia política, a arte viva assim que a sua história....
Sua obra faz parte daquelas que desenharam a paisagem contemporânea. Na França, em particular, sua influência se fez sentir em lugares inesperados: os surrealistas o inscreveram no panthéon deles (Magritte até pintou suas "Férias" em 1958...) e, graças a Kojève, toda uma geração de espíritos originais (Aron, Bataille, Lacan, Merleau- Ponty....) se alimentaram de seu pensamento. De maneira mais extensa, é toda a filosofia européia dos séculos XIX e XX que reage a Hegel. Marx e Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger, e mesmo a filosofia analítica que começa (Russel), definiram até um certo ponto o programa deles com relação a Hegel, na verdade, sobretudo contra ele.
Com efeito, uma coisa é clara: após Hegel, nós não podemos mais filosofar da mesma maneira. Marx e os "jovens-hegelianos" querem, por conseguinte sair da filosofia para realizar seus direitos ativamente; Kierkegaard quer arrancar a existência da influência do conceito; Nietzsche concebe seu empreendimento como uma máquina de guerra contra a dialética; Heidegger enfim, lê em Hegel o último capítulo da história da metafísica, que é aquele do "esquecimento do ser".
Mas o que é que, nesse pensamento suscita a oposição de autores tão diferentes? Provavelmente o fato que ele é sistemático, dialético, e "conceitual?" - (conceptuel - me perdoem, não sei a palavra em português... resgatando a língua pátria, grata) - (na linguagem hegeliana, "especulativo").


O desdobramento do absoluto

A filosofia moderna quis de uma maneira geral ser científica, por conseguinte sistemática: "A unidade sistemática é o que transforma em ciência o conhecimento comum" (Kant). A sistemática é uma garantia de "scientificité" para um saber sempre exposto ao risco da dispersão e da discordância. Mas o pensamento de Hegel é sistemático em um sentido particularmente forte.
"Diachronicamente", cada filosofia, inclusive a sua, é uma expressão provisória de um único sistema de pensamento se desdobrando no curso do tempo: expor a história da filosofia é expor a filosofia ela-mesma. Sincronicamente, a filosofia é construída a partir de uma fonte única, que Hegel chama "a idéia" ou "o absoluto". Ela é assim um "círculo de círculos": a lógica, a filosofia da natureza, a filosofia do espírito. Esses círculos só tem significação relativamente uns aos outros e com relação ao tudo que os reúne: "O verdadeiro é o tudo". Mas, nesse tudo, as diferenças não são anuladas: o absoluto não é "a noite onde todas as vacas são pretas".
Hegel, após Kant, fez uma distinção entre a razão e o entendimento. O entendimento produz saberes localizados e parciais (as ciências). O sistema (a Ciência) é a totalização racional. Mas ele não é a simples adição, pois a razão transforma os saberes de entendimento para exprimir a verdade. Essa apropriação é dita "dialética": o "trabalho do negativo" transforma de maneira considerável a economia do conhecimento. Ela também é "especulativa", pois o tudo não é igual a soma das partes, ele apresenta um excesso com relação a estas; é esse excesso da razão com relação ao entendimento e aos saberes determinados que a filosofia quer encarnar.


O real e suas contradições

Mas o que é então essa "dialética" que a filosofia Hegeliana faz seu emblema? Ela consiste em "suprimir as oposições rígidas" sobre as quais são construídos o pensamento e a língua comuns. A mais fundamental dentre elas é a do pensamento e a do ser; é ela que Hegel quer antes de tudo superar. Mas a dialética não é apenas um método que o filósofo "aplicaria" ao real ou ao discurso. Ela designa, no seio do ser ele mesmo, essa propriedade que tem "tudo o que é terminado" de "suprimir-se a si mesmo". A dialética é a expressão pensada da contradição interna, do dinamismo imanente graças "a quem" - ( está correto o emprego do pronome? grata ) - o ser advêm infinitamente a si mesmo: essa verdade em movimento do ser imediato, realização de sua "dialética imanente", é o que Hegel chama a idéia. Da mesma maneira que ela é essencialmente dialética, o pensamento é, por conseguinte "especulativo": ele realiza uma razão "positiva" que "parachève" - não conheço a palavra em português, quer dizer, " que conduz ao ponto mais próximo da perfeição") - a obra da razão "negativa" expondo o resultado "positivamente racional" de seu trabalho. Mas é na realidade a mesma razão que é ao mesmo tempo dialética e especulativa, negativa e positiva. Do entendimento à razão dialética, da razão dialética à razão especulativa, existe continuidade e descontinuidade, quer dizer, segundo o termo através do qual Hegel faz seu slogan: Aufhebung (supressão, ultrapassagem, conservação). Elas são os aspectos solidários do processo um pelo qual o ser se coloca como objeto.


A modéstia do pensador

A filosofia hegeliana é uma filosofia do conceito. O "caro eu" ocupa nela um lugar muito pequeno. Hegel repugna falar dele mesmo, preferindo a postura em aparência modesta do secretário escrevendo de acordo com o espírito do mundo.
Contudo, ele nos "condena a explicá-lo". "É estúpido, escreve ele, de sonhar que uma filosofia qualquer ultrapassa seu mundo": sua filosofia então não fala de nosso mundo. Mas ela nos fornece poderosas ferramentas para tentar de pensar o que ele é. Hegel foi o primeiro a tematizar a oposição da sociedade civil e do Estado, que tornou-se um "lugar comum". Foi ele que colocou (de maneira mais complexa que nós possamos acreditar) o problema do fim da história, que Fukuyama e os neoconservadores colocaram em deliberação após a queda do mundo soviético. Estranha ironia: quando Lênin durante a primeira guerra mundial preparava a revolução russa, o que ele lia? A lógica....
Mas Hegel não é um pensador que nós podemos facilmente nos apropriar: aqueles que quiseram fazer dele um conservador ou um revolucionário mutilaram seu pensamento, justamente o dele, que não tinha a preocupação de prever o que vai acontecer ("o futuro não interessa o filósofo"; "a filosofia não faz profecias"), nem de prescrever o que deve ser feito ("a idéia não é assaz impotente para dever apenas ser"). A tarefa do filósofo não é de dizer aos homens o que eles devem esperar, mas de lhes permitir de esperar de uma maneira sensata lhes ajudando a "conceber o que é".

- Jean-François Kervégan, professor de filosofia em Paris-I, tradutor dos Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, e autor, entre outros, de Hegel e o hegelianismo (PUF, colle. "Que sais-je?" 2005) e de Hegel, Carl Schmitt. O Político entre especulação e positividade. (PUF, 2005).

terça-feira, 5 de junho de 2007

Pense bem nisto....


“... as principais dificuldades sociais não são hoje essencialmente políticas, mas, sobretudo morais, de sorte que sua solução possível depende realmente muito mais das opiniões e dos costumes do que das instituições; o que tende a extinguir uma atividade perturbadora, transformando a agitação política em movimento filosófico...”

- Discurso Preliminar Sobre o Espírito Positivo - Auguste Comte (1798 - 1857).

segunda-feira, 4 de junho de 2007

A razão na história


Extratos da primeira tradução integral dessa obra, centro da filosofia hegeliana, e sobre a qual se funda todo o pensamento moderno. Com esse texto, o mais direto de Hegel, se abolem o Mundo dos Antigos e a Natureza do Século das Luzes ( Iluminismo). O real, que reordena um pensamento suficientemente poderoso para abraçar todos os aspectos - consciência, política, cultura - torna-se doravante o rosto de nossos tormentos.

"Igual a Mercúrio, o condutor de almas, a idéia é na verdade o que conduz os povos e o mundo, e é o Espírito, sua vontade razoável e necessária, que guiou e continua a guiar os acontecimentos no mundo." pág. 39

"Ver o mundo razoavelmente, é também ser visto razoavelmente pelo mundo; existe reciprocidade." pág. 50

"Uma toda-poderosa vontade divina reina no mundo; ela não é fraca a ponto de não poder determinar seu conteúdo. Nosso objetivo é de conhecer essa substancialidade, e para conhecê-la é preciso ter consciência da Razão." pg. 51

"[.....] Então o que se realiza na história é a representação do Espírito. A consciência dos povos depende do saber que o Espírito tem dele mesmo; e o estado final da consciência é o da liberdade humana." pg. 80

"Digamos que a consciência do povo é a consciência que ele tem de seu ser." pg. 82

"[....] Ao mesmo tempo, é a liberdade que contém nela mesma a infinita necessidade de tornar-se consciente – pois, segundo seu conceito, ela é conhecimento de si próprio - e dessa maneira do destino real. Na realidade, ela é ela mesma, o fim que ela realiza, o único fim do Espírito." pg. 85

"Na sua atividade, o Espírito do povo conhece antes de tudo os fins de sua realidade determinada - ele ainda não conhece a si mesmo. Ele tem todavia, o desejo de conhecer seus próprios pensamentos. Sua mais alta atividade é o pensamento e nas suas ações mais elevadas ele trabalha para apreender-se a si mesmo. O que é supremo para o Espírito, é de saber-se ele mesmo, de alcançar não somente a intuição, mas também o pensamento dele mesmo." pg. 86

"Cada povo faz progressos nele mesmo; ele progride, ele declina. A categoria que logo se impõe é a categoria da cultura (Bildung ), do excesso da cultura ( Uberbildung ) e da perversão da cultura (Verbildung), este último momento é para o povo ao mesmo tempo, o produto e a fonte de sua ruína. Mas a palavra "cultura" não especifica o conteúdo substancial do Espírito popular. A cultura é uma "mise en forme" e se constitui pela forma da universalidade; assim o homem culto é aquele que sabe imprimir a todas as suas ações o selo da universalidade." pg. 87

"[.....] Os povos são o que são seus atos. Seus atos são seu objetivo. O Espírito é essencialmente ativo." pg. 88

" A morte natural do Espírito de um povo pode se manifestar pela nulidade política." pg. 90

" Um Estado é bem ordenado e forte nele mesmo quando o interesse particular dos cidadãos está unido ao fim geral do Estado, quando o interesse particular e o fim do Estado encontram um no outro sua satisfação e sua realização. Isso é uma proposição de uma extrema importância. Mas essa unificação só pode tornar-se real na medida em que o Estado consegue - o que pressupõe longas lutas intelectuais - a conscientizar-se do fim geral e de se dotar de múltiplas instituições conforme a esse fim. Ademais, é preciso que ele lute contra os interesses particulares e as paixões e os submeta a um adestramento tanto demorado quanto difícil. A época onde uma tal unificação acontece, é aquela da eflorescência de sua virtude, de sua força e de sua felicidade." pg. 109

" O ponto supremo da cultura de um povo é de pensar sua vida e sua condição, de conhecer suas leis, seu direito, sua ética, pois nessa unidade reside a unidade mais íntima na qual o Espírito pode se encontrar com ele mesmo." pg. 208

"A coragem está essencialmente ligada a inteligência que é a astúcia suprema." pg. 229

"Basta que o homem tenha progredido um pouco na sua consciência para que ele tenha respeito pelo homem na sua qualidade de homem." pg. 259

"A escravidão é uma injustiça em si e por si, porque a essência do homem é a liberdade." pg. 260

" A liberdade encontra seu conceito na realidade e ela transformou o mundo secular em um sistema objetivo de uma existência (Dieses) hic et nunc orgânica."

"[....] Mas a passagem do tempo é uma coisa toda relativa e o Espírito pertence a eternidade. Para ele, a passagem do tempo propriamente dita não existe. Seu trabalho ulterior consiste em que esse princípio se desenvolva e se aperfeiçoe, que o Espírito chegue à realidade, à consciência de si próprio na realidade." pg. 296

- La Raison dans l'Histoire - Hegel -



EXTRATO ANEXO

342

"A história universal não é o tribunal onde é julgada sua "força", quer dizer a necessidade abstrata e irracional de um destino cego. Ao contrario, esse destino é em si e por si Razão e "l'être-pour-soi" da história é saber espiritual. A história é então segundo o único conceito de sua liberdade, o desenvolvimento necessário dos momentos da Razão de sua consciência de si próprio e de sua liberdade : ela é "explicitação " e a " realização do Espírito universal. " pg. 298


344

"Nessa obra do Espírito do Mundo, os Estados, povos e indivíduos, afirmam seu "princípio particular determinado" que se atualiza e se exprime em sua "Constituição" e em toda a extensão de sua realidade. Eles são conscientes disso." pg. 299

- Hegel - Filosofia do Direito, parágrafo 347 - 360 -

sábado, 2 de junho de 2007

"Uma vida sem exame não merece ser vivida"

28d) Eis na realidade o verdadeiro princìpio, Athéniens. Qualquer pessoa que ocupe um cargo, - que ela o tenha escolhido ela mesma como o mais honorável, ou que ela tenha sido escolhida para ocupar esse cargo por um chefe, - tem por dever, segundo a minha opinião, de continuar firme nesse cargo, qualquer que seja o risco, sem levar em conta a morte , nem nenhum outro perigo, em vez de sacrificar a honra. [....]

(29) O que é com efeito, juízes, que temer a morte, senão atribuir-se um saber que nós não temos? Não seria imaginar que nós sabemos o que nós ignoramos? Pois, enfim, ninguém sabe o que é a morte, nem se ela não é por acaso para o homem o maior de todos os bens. E, portanto, nós a tememos, como se (29b) nós soubéssemos que ela é o maior de todos os males. Como não seria essa ignorância verdadeiramente repreensível, que consiste em acreditar que nós sabemos o que nós não sabemos? [...]

(29c) Dessa maneira, suponhamos que vocês me absolvam, apesar de Anytos [....]. Admitamos que, apesar disso, vocês me digam essa linguagem : "Sócrates, nós não queremos acreditar em Anytos; nós vamos te absolver, a uma condição todavia: que você não passará mais seu tempo examinando como você faz as pessoas, nem a filosofar. (29d) Se nós te vermos fazer isso, você morrerá." Essa condição, juízes, se para me absolver vocês quisessem me infligi-la, eu vos diria: "Athénien, eu vos agradeço e eu vos amo; mas eu obedecerei ao deus em vez de obedecer a vocês; e, enquanto eu tiver um sopro de vida, enquanto eu serei capaz, tenham a certeza que eu não cessarei de filosofar, de vos exortar, de fazer a lição a qualquer um de vocês que eu encontre : E eu o direi como costumo fazê-lo : " Como! caro amigo, você é Athénien, cidadão de uma cidade que é maior, mais célebre que nenhuma outra por sua ciência e seu poder, e você não tem vergonha de ter mais cuidado com a sua fortuna, para aumentá-la cada vez mais, assim ( 29d) que com a sua reputação e a sua honra; mas quanto a razão, quanto a verdade, quanto a tua alma, que é preciso melhorá-la sem cessar você não se preocupa, você nem pensa !
"E se algum de vocês contesta, se ele afirma sua preocupação, não pensem que eu vou deixá-lo e partir imediatamente; não, eu o interrogarei, eu o examinarei, eu discutirei profundamente. Então, se parece-me uma certeza que ele não possui a virtude, seja o que for que ele me diga, eu o reprovarei de conceder um preço tão baixo ao que tem um grande valor, tanto valor ao que não custa tanto. Jovem ou velho, seja quem for que eu tenha encontrado, estrangeiro ou compatriota, é dessa maneira que eu agirei com ele; e sobretudo com vocês, meus compatriotas, pois vocês estão ligados mais perto de mim pelo sangue.
Pois é isso que me ordena o deus, compreendam bem; e, de meu lado, eu penso que jamais nada de mais vantajoso encalhou na cidade do que meu zelo a executar essa ordem. Minha única ocupação, é com efeito de ir pelas ruas para vos persuadir, jovens e velhos, de não vos preocupar nem de vosso ( 30b) corpo nem de vossa fortuna com a mesma paixão com a qual vocês devem se preocupar de vossa alma, para torná-la tão boa quanto possível. [....] Nisto, eu direi, acreditem em Anytos ou não acreditem, Athéniens, absolvam-me ou não absolvam-me, mas tenham a certeza que eu não mudarei jamais de conduta, mesmo (30c) se eu devesse mil vezes me expor à morte. [....] (37e) talvez alguém me dirá : "Como, Sócrates? você não pode nos livrar de sua presença e viver tranqüilamente sem discorrer? "Eis justamente o que seria o mais difícil (38) de fazer compreender a algumas pessoas entre vocês. Se eu vos digo que seria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, eu não posso me abster, vocês não me acreditarão, vocês pensarão que eu falo ironicamente. E se eu digo, por outro lado, que talvez seja o maior de todos os bens para um homem de dialogar todos os dias ou da virtude, ou de outros objetos dos quais vocês me escutam falar, quando eu examino os outros e a mim mesmo, e se eu acrescento que uma vida sem exame não merece ser vivida, vocês me acreditarão menos ainda. Portanto, juízes, é a verdade; simplesmente, não é fácil de vos fazer admiti-la.

- Platon, Apologie de Socrate, 28D - 38B, Trad. M. Croiset- Les Belles-Lettres, 1925 -

Sócrates, herói da filosofia

Xénophon, discípulo de Sócrates, diz em seus Memoráveis, as condições históricas do ato de acusação dirigido contra seu mestre, em 399 an. J.-C., por três de seus compatriotas : "Sócrates é culpado do crime de não reconhecer como deuses os deuses da cidade e de introduzir novos deuses : e ademais ele é culpado de corromper a juventude. Castigo pedido : a morte. "No mesmo ano, no fim do processo que foi feito, Sócrates, tendo fracassado na tentativa para se inocentar, foi condenado a beber a ciguë.


Antes a morte que a injustiça

Sua defesa, relatada por um outro discípulo Platão em sua célebre Apologia de Sócrates, ia determinar para os séculos futuros a figura ideal do filósofo. Com efeito, apesar do fracasso aparente de seu mestre, é a este último que Platão concede o crédito da verdadeira vitória diante seus adversários: a de ter, através de seu heroísmo de mártir da verdade, reanimado para a posteridade o desejo de filosofar. Em uma outra perspectiva, a "mise en scène platonicienne" da acusação e da condenação a morte de Sócrates exprimem o conflito, até mesmo a incompatibilidade, entre o exercício crítico do pensamento filosófico e a esfera do poder político ou da opinião pública. Através o processo e a apologia de Sócrates, encontra-se assim colocado o problema do filósofo na cidade e do engajamento intelectual.
A atitude de Sócrates não sofre nenhum compromisso. O filósofo inscreve sua atividade em um registro que não depende das autoridades civis: não é com efeito um homem, mas um deus que, pela boca do oráculo de Delphes, o consagrou "o mais sábio dos homens" e o investiu de sua missão: desmascarar a ignorância. Essa missão, Sócrates lembra a seus compatriotas que ele sempre teve e terá sem cessar de cumpri-la junto a eles, mesmo correndo o perigo de perder a vida. Ele reafirma diante seus juízes que é unicamente a procura do verdadeiro e do justo, se bem que essa atitude o tenha levado ao tribunal, que continuará a ditar sua conduta.


Mártir da verdade

Não se trata aqui de uma vulgar teimosia. Platão mostra que Sócrates não é motivado nem pelas honras, nem pela riqueza, nem pelo gosto do poder, nem pelo temor da morte. Mesmo confrontado a esta última, ele vai demonstrar até o fim, pelas suas palavras e pelos seus gestos, que o cuidado concedido a alma, nosso bem mais precioso, deve passar acima de tudo. ´É agindo de acordo com o que ele considera ser justo que ele evitará o verdadeiro infortúnio, aquele que toca a alma corrompida; para Sócrates é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la. O temor da morte ele mesmo não saberia ser dissuasivo, pois ele depende da opinião, enquanto que a sabedoria consiste precisamente a vencer essa opinião. Pelo seu último gesto, Sócrates eleva a filosofia além das exigências de um simples saber teórico para tornar-se uma pesquisa que engaja a pessoa que a ela se consagra. Ele convida o filósofo a uma forma de sacerdócio do qual o eco ressoa em todas as correntes da filosofia antiga, inclusive na corrente dos estóicos, de quem ele representa de uma certa maneira o santo patrono.
E até hoje, Sócrates, porque ele preferiu morrer em vez de renunciar a atividade filosófica, sem a qual a vida "não é digna de ser vivida", encarna, por assim dizer, o herói da filosofia ocidental.
S.-J.A. –


O mais sábio dos homens ?

O templo de Delphes, cidade situada no noroeste de Athénas, era consagrado a Apollon, deus da luz, das artes e da adivinhação. As pessoas consultavam a Pythie, célebre oráculo pela boca do qual o deus se pronunciava sobre os negócios humanos. Ele afirmou um dia que "ninguém era mais sábio que Sócrates." Surpreso por essa distinção insigne, o filósofo se empenha a descobrir o sentido dessas palavras indo interrogar uns e outros, até que ele realize que sua "sabedoria" consistia a saber que ele não sabia nada.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

VOCÊ É, MAS NÃO SABE

Tenho insistido na denúncia de sofismas, distorções conceituais e uso gramsciano de determinados vocábulos. Há pouco mais de um mês mostrei como a palavra neoliberal serviu para combater tudo que deu certo na economia brasileira: Plano Real, privatizações, pagamento pontual da dívida externa, exportações, agronegócio, superávit primário, responsabilidade fiscal e assim por diante.

Outras palavras, com uso obrigatório na política, têm peculiaridades que exigem esclarecimento, mormente em presença de seus antônimos. Veja, por exemplo, o conceito político de "conservador". Tenho certeza de que qualquer cidadão brasileiro, minimamente familiarizado com o idioma, tratará de manter distância de quem se declare conservador.

No entanto, prezado leitor, os conservadores defendem tudo aquilo que você, por certo, desejaria ver conservado: as liberdades, a ordem, a família, os valores, a religião, a democracia, o respeito à propriedade privada. Se opõem às revoluções e à violência como instrumento de ação política. Sabem que a justiça social é resultado do progresso econômico e da boa política, e não das utopias, das revoluções, do relativismo, e do desprezo pela ordem e pelos valores morais. Os conservadores, prezado leitor, respondem pelo progresso e produzem excelentes governos. Eram conservadores os políticos que tiraram a Europa da fome endêmica, fazendo avançar a democracia constitucional, enquanto outros, lá no Leste Europeu e na Ásia, pelo viés oposto, impuseram o totalitarismo e a preservação institucional da miséria.

Pense comigo. Quem foi que saiu às ruas, em abril de 2000, para vociferar contra o Descobrimento, chamando o episódio de Invasão? Aliás, não sei por qual obscuro motivo eles ainda não escolheram Cabral, "primeiro invasor", como patrono do MST. Saiba, porém: se os portugueses tivessem tocado direto para as Índias, nosso país seria hoje o que são as tribos que se mantiveram sem contato com a civilização. Vale dizer, viveríamos lascando pedra.

Quem age como se o Brasil fosse um imenso e satânico usucapião? Na conseqüência de suas posições, os brancos deveriam voltar para a Europa, os negros para a África e os índios ficariam autorizados a promover uma continental desapropriação do solo e das malfeitorias aqui implantadas. Saiba, porém: os defensores de tão escabrosa geopolítica se aborrecerão terrivelmente se você apontar o racismo embutido em tais conceitos.

Quem vocifera contra a globalização? No entanto, para evitá-la, teríamos que retornar às cavernas e combater o nomadismo como um fenômeno perigoso, precursor do maldito neoliberalismo. Quem é contra o "grande capital"? Saiba, porém: isso não significa ser favorável ao "pequeno capital", porque capital, nessa lógica, é coisa que degenera enquanto cresce.

Se os que apontam os conservadores como agentes da maldade tivessem poder ao longo dos séculos, estaríamos plantando com as mãos, tocando tambor para chover, trocando mercadorias e tratando de desinventar o dinheiro, a democracia representativa, a pesquisa genética, as privatizações, o mercado, as máquinas e toda a tecnologia. Abertamente cultuam Marx, Lênin, Fidel, Che e, agora, Hugo tChávez. Como gostam de ditadores e como são reacionários!
Percival Puggina - http://www.puggina.org/