segunda-feira, 30 de julho de 2007

DESIGUALDADE SOCIAL E ENVELHECIMENTO: DESAFIO PARA O NOVO MILÊNIO.


INTRODUÇÃO

DESIGUALDADE SOCIAL: FENÔMENO NATURAL

CONDIÇÃO DA MULHER

RAÇAS

CASTAS

ESCRAVIDÃO

ZONA RURAL E FAVELAS

SOCIEDADES ANIMAIS

HIERARQUIA

DESEMPREGO

ENVELHECIMENTO

FENÔMENO SOCIAL

PREOCUPAÇÃO RECENTE

CARACTERÍSTICAS PESSOAIS

DESVANTAGENS DOS IDOSOS

PERSPECTIVAS DEMOGRÁFICAS

PREVIDÊNCIA SOCIAL

DOIS LIVROS E DOIS ARTIGOS

DESAFIO MILENAR

MILENAR OU ETERNO?

CONDIÇÃO HUMANA

PERSPECTIVA OU ASPIRAÇÃO?

QUALIDADE DE VIDA

CONCLUSÃO

DESAFIO AO LADO DE OUTROS

MÍNIMO VITAL SATISFATÓRIO



Introdução


Dada a natural complexidade do nosso tema, parece adequado procurar definir com suficiente precisão seu conteúdo semântico. Ou seja, que se deve entender aqui por desigualdade social? E por envelhecimento? Quanto a desafio e novo milênio naturalmente não há dúvida.
Desigualdade social costuma ser sobretudo o negativo reflexo de condições econômicas acentuadamente diferentes. Salvo engano, é nesse indesejável sentido que devemos enfocá-la, sem prejuízo da atenção devida a fatores também básicos como saúde e educação, além de outros menos relevantes.
Assim, numa sociedade cujos membros desfrutem todos de razoáveis condições econômicas, saúde satisfatória e aceitáveis índices educacionais, dificilmente ocorrerão níveis preocupantes de desigualdade social. Uma organização política racional raramente deixa de contribuir nesse sentido.
A religião costuma ser outro fator significativo, com governos teocráticos acarretando discriminação contra quem pertença a credo diverso, ainda que apenas informalmente.
É considerável também o número de países, em geral subdesenvolvidos, onde a questão étnica conduz a diferenças sociais radicais e não raro desumanas. Conflitos raciais parecem ter ocorrido ao longo de toda a história da humanidade, porém recentemente têm sido mais freqüentes e, sobretudo, mais violentos e trágicos.
Não podemos esquecer que ainda existem países de razoável ritmo de desenvolvimento, como a Índia, onde subsiste o odioso sistema de castas, frontalmente incompatível com a igualdade social e estranho até mesmo em termos de condição humana.
Repetindo, tudo isso tem de ser considerado quando se cogita de desigualdade social, especialmente como um desafio específico para o novo milênio.
No tocante a envelhecimento, a primeira observação é que o termo também está sendo usado aqui no seu significado global, de conjunto da população. O envelhecimento individual não é menos importante, é talvez até mais complexo e, naturalmente, faz parte do todo. Entretanto, não é dele que se trata nesta oportunidade.
A esse respeito vale lembrar a curiosa ponderação de alguns demógrafos: é claro que sempre houve velhos, mas só ultimamente o seu crescente número despertou atenção para o fenômeno social do envelhecimento. Dito de outra maneira, assim como antes a gerontologia cuidava das pessoas idosas, hoje a demografia e a sociologia se ocupam do número cada vez maior delas, da progressiva e preocupante participação da velhice na composição demográfica da população.
Tendo procurado interpretar o real significado terminológico do que considero as duas preliminares do nosso tema, passo ao cerne dele, ou seja, o que elas representam como desafio para o novo milênio.


Desigualdade social: Fenômeno natural

Já temos idéia do significado de desigualdade social para o nosso presente objetivo: em última análise, reflexo ou efeito de condições econômicas muito diversas. Entretanto, ainda a propósito do sentido da expressão, parece conveniente lembrar que a rigor a desigualdade social não deixa de ser um fenômeno natural.
A razão de ser desta ponderação está no fato de que a desigualdade talvez não esteja menos ligada à natureza, à condição humana, animal e portanto natural. Quando os seres humanos passaram a reunir- se em coletividade, simultaneamente nasceu a desigualdade entre eles.
Era cedo para se falar em sociedade, mas decerto foi ainda nas hordas primitivas que nasceu a desigualdade, de início apenas entre indivíduos, porém logo evoluindo para a formação de grupos distintos uns dos outros. Quando o conjunto dos grupos iniciais evoluiu para sociedades formais, embora rudimentares, a desigualdade entre eles passou a caracterizar-se mais formalmente.
A evolução da ordem social progrediu e com ela as diferenças entre grupos cujo somatório passou a constituir o complexo fenômeno da desigualdade social, cada vez mais acentuada e chocante. Daí a necessidade, antes enunciada, de não a interpretarmos como propriamente social apenas.


Condição da mulher

É auspicioso poder começar o desenvolvimento do tema com o que pode ser considerado o fato mais importante de toda a história da evolução da sociedade: a condição social da mulher, cada vez mais coerente com a natureza humana e com a ordem natural das coisas.
Hoje homens e mulheres têm situação praticamente igual na sociedade, porém nem sempre foi assim. Ao contrário, foram necessários milênios, mediante conquistas graduais e avanços sucessivos, para chegar onde estamos, quando falta muito pouco, se é que falta algo, para novas conquistas e avanços.
Metade da humanidade, o sexo feminino, venceu as barreiras que a separavam da outra metade, os homens, em matéria de condição social. As diferenças ainda existentes a rigor são apenas conseqüência das características de cada sexo.
Repetindo, já não existe, do ponto de vista social, distinção entre homem e mulher. Nesse sentido, não ocorre desigualdade social, nem entre idosos nem em qualquer idade, e isso simplifica substancialmente o desafio para o novo milênio ou qualquer outro.
Mais específica porém de menor monta é a situação dos idosos de vários países orientais, principalmente o Japão, onde em geral lhes dispensam atenção especial e tratamento respeitoso. Isso também afasta por completo a idéia de desigualdade social em sentido negativo e até, pelo contrário, envolve tratamento privilegiado. Porém essa desigualdade às avessas já foi mais generalizada e hoje, bastante atenuada, parece estar desaparecendo.


Raças


Por outro lado, uma das mais odiosas causas de desigualdade social, pela sua natureza, seu porte e, conseqüentemente, seus malefícios, parece ser o preconceito racial. Seus perversos efeitos são bem conhecidos, inclusive no nosso País, embora tenhamos a ilusão nem sempre sincera de que o problema nos é estranho.
Sem falar em outros de menor monta, o caso mais flagrante nesse particular são os Estados Unidos, que não conseguem estender a significativa parcela dos seus milhões de habitantes a democracia que tanto propalam, arvorando-se em exemplo para o mundo.
Uma vez que para desenvolvimento do tema deste trabalho devemos entender desigualdade social com relação à humanidade como um todo, o preconceito racial desde logo afasta dessa noção uma parte dos seres humanos com tanto direito a isso como quaisquer outros.


Castas

O sistema de castas, lamentável como todas as demais formas de desigualdade social, é, talvez, o mais estranho pela sua cruel irracionalidade.
Consiste, conforme sabemos, na divisão da população em faixas basicamente estanques e hierarquicamente superiores umas das outras. Quem nasce em uma casta permanece nela até o fim da vida e só em casos muito especiais pode passar para outra. Não pode, digamos, casar com pessoa de outra casta.
Salvo engano, elas existem em alguns países asiáticos, porém é na Índia, o segundo país do mundo em população, que essa insólita divisão de pessoas, de seres humanos, é mais formal e mais rígida. Causa espécie o fato de a Índia, que sob mais de um aspecto hoje se desenvolve rapidamente, não ter conseguido até agora livrar-se de uma estrutura social arcaica, descabida e revoltante.
Trata-se de uma forma explícita de desigualdade social e ao mesmo tempo prova de insanidade do ser humano no que concerne a um dos aspectos mais importantes da sua existência. Não dá para entender que as castas ainda convivam com os inegáveis progressos daquele país, constituindo base de uma odiosa ordem social, como se vê, por exemplo, na excelente reportagem “Índia – Avanço, não de tigre, mas de elefante”, de Carlos Graieb.


Escravidão

A pior forma de desigualdade social talvez seja a escravidão. As castas, por exemplo, dividem em grupos hierarquicamente distintos seres humanos pelo menos teoricamente livres, ao passo que na escravidão umas pessoas pertencem a outras, como se fossem coisas.
A situação já foi mais grave, pois no passado esse estranho vínculo de propriedade era legal e socialmente reconhecido, ao passo que hoje ele ainda existe clandestinamente aqui e ali. No nosso próprio país costumam ser descobertos em propriedades florestais outros sórdidos casos de virtual escravidão. Existe pelo menos uma obra sobre Crime de escravidão, de Wilson Prudente.
O racismo é encontrado sobretudo em países onde já houve escravos, razão pela qual foi apontado por mais de um sociólogo como uma espécie de castigo histórico. Não podemos, entretanto, deixar de lembrar que em muitos casos escravos brasileiros e norte-americanos não eram apresados pelos traficantes deles, porém comprados de bárbaros chefes autocráticos das tribos africanas a que pertenciam. É difícil cogitar desse triste comércio sem evocar as duas belas poesias de Castro Alves O navio negreiro e Vozes d’África.


Zona rural e favelas

Condições insatisfatórias de vida e, mais especificamente, habitação precária, são importantes fatores de desigualdade social. No Brasil e na maioria dos demais países em situação semelhante as choupanas da zona rural a rigor não podem ser consideradas moradias. E pelo menos aqui os acampamentos do chamado “Movimento dos Sem Terra” decerto são piores ainda, embora neste caso haja aspectos especiais a considerar no tocante a desigualdade social.
Na periferia das cidades, onde vive praticamente o grosso da população urbana, as péssimas condições de vida vêm sendo severamente agravadas pela violência. A televisão, cada vez mais generalizada, ameniza um pouco a situação, apesar dos inconvenientes de alguns programas, apontados por sociólogos e educadores.
Em alguns países mais pobres da Ásia e sobretudo da África a rigor não existem condições de vida no sentido dessa expressão para quem não vive aí. Os meios baixíssimos de subsistência são dramaticamente agravados pela crueldade da ditadura que impera na virtual totalidade deles. Nesses países em verdade não existe ordem social, o que torna difícil cogitar de desigualdade social, restringindo o objeto deste estudo ao conjunto das sociedades onde ela existe.
“Desigualdade social divide campo e cidade na China”, segundo Gilberto Scofield Jr., em artigo com a epígrafe “Crescimento acelerado e bem-estar ainda não chegaram nas áreas rurais do país, onde vivem 61% da população”. Scofield informa que, de acordo com a ONU, “nos últimos 25 anos a desigualdade social dobrou ali”.


Sociedades animais

Voltando à natureza da desigualdade social parece lícito recordar que o ser humano não é o único a viver em sociedade e, mais importante, não se tem notícia de sociedades uniformes de animais nas quais não exista deliberada e essencial desigualdade.
O caso clássico é o das formigas, execráveis pelos danos que causam principalmente às plantas, porém admiráveis pelas lições que nos dão no tocante à racionalidade da divisão do trabalho nos seus formigueiros e à rígida hierarquia que separa as dirigentes da massa anônima das trabalhadoras. Outro exemplo não menos clássico são as abelhas, tão úteis quanto as formigas são nocivas, que o belga Maurício Maeterlinck popularizou no conhecido livro A vida das abelhas.
Não é só na modesta área dos insetos que existem exemplos expressivos de ordens internas em que a ocorrência de desigualdade social é indispensável para a sobrevivência. No outro extremo em matéria de dimensões, um bom exemplo, embora aí a desigualdade dentro dos grupos seja antes individual do que social, são algumas espécies de baleias.
Muito conhecido, também, é o caso das galinhas. Lembro-me de ter lido em mais de uma fonte que, reunidas no mesmo galinheiro umas dez delas de diferentes origens, dentro de poucos dias elas se organizam em ordem hierárquica, inclusive para acesso à comida. O que não me lembro de ter lido é sobre o papel do galo no caso.
Um zoólogo nos daria outros exemplos, mas não me parece necessário. O que pretendo aqui é apenas recordar que não é só na espécie humana que existe alguma forma de desigualdade social e que no fundo esta tem muito de natural, ainda quando individual ou coletiva.


Hierarquia

Convém não esquecer que desigualdade social é expressão de sentido amplo e complexo, que abrange modalidades diversas do fenômeno. Já vimos que no fundo ela significa a soma de outras desigualdades, a começar pela econômica. Importante entre elas é a hierarquia, sobretudo em unidades sociais de vulto, como forças armadas, religiões, grandes empresas. Aí e em outras entidades não é raro que posições hierarquicamente mais elevadas, com condições especiais favoráveis, criem situações de virtual desigualdade social com relação a grupos internos mais numerosos. Entretanto, trata-se de modalidade só condenável quando essas discrepâncias passam da conta, fugindo à sua natureza de medidas necessárias e compreensíveis.
Quando se fala em religiões como exemplos de hierarquia, é claro que não se trata das crenças, conceitos e valores de cada credo. O que se tem em mente é sua parte leiga, sua estrutura administrativa, se assim se pode dizer; é a sua igreja. Nesse sentido é bem conhecida a composição hierárquica da igreja católica, desdobrada numa escala que vai basicamente desde os padres até o Papa.
Entretanto, também encontramos hierarquia no lado místico de algumas religiões, fora e acima, portanto, do que constitui mais propriamente sua igreja.
Restringindo-nos de novo à área da igreja católica, que conhecemos melhor, sabe-se que existem nove categorias de anjos, formalmente escalonadas. Vejamos, a título de curiosidade, quais são elas, em ordem decrescente de posição hierárquica: serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, potestades, principados, arcanjos e anjos.


Desemprego

Enumerei aqui sucintamente alguns dos principais fatores de desigualdade social, procurando caracterizar a importância de cada um no conjunto deles.
Deliberadamente deixei para o fim o que talvez seja o mais importante de todos e o mais diretamente ligado ao desafio para o novo milênio. Independentemente de sua relação com a desigualdade social, em qualquer idade, ele se apresenta como algo extremamente negativo, para o que ainda não se encontrou solução satisfatória.
Sabemos que a primeira condição de membro ativo da sociedade é a posse de meios para na realidade integrá-la. Também sabemos que o meio básico para isso é um razoável rendimento econômico, que possibilite contribuir para o custeio da existência dela. Quem não dispõe dessa condição essencial não deixa de pertencer por completo à coletividade social respectiva, porém já não é um participante regular, pleno, e sim um membro dependente. Igualmente não desconhecemos que o rendimento da grande maioria das pessoas provém de um emprego. Na falta deste tudo muda para pior e é nesse sentido que a inexistência do emprego acarreta inexorável desigualdade social. Já se disse, entre outras coisas, que o desempregado é um cidadão incompleto. É óbvio que se a pessoa tem outro rendimento o problema não ocorre.
Como se não bastasse sua crucial importância intrínseca, as atuais perspectivas de emprego não poderiam ser mais desalentadoras. Por um perverso paradoxo, as causas do crescente desemprego – avanços das ciências e sobretudo da tecnologia – são altamente auspiciosos e desejáveis, além de incoercíveis.
Alguns sociólogos do trabalho chegam a falar apocalípticamente na morte do emprego, assim entendida a drástica redução das oportunidades de trabalho e a substituição dos cargos remanescentes por relações e condições de emprego completamente diferentes das que conhecemos. Por exemplo, o consultor de empresas Ricardo Neves intitula assim um artigo seu: “O emprego já era!”
Resumindo e repetindo, a desigualdade social está ligada muito de perto a complexos fatores, por sua vez vinculados à natureza humana e à ordem social, ou socioeconômica, o que os torna partes do todo. O desemprego está entre eles, sendo provavelmente o mais crucial de todos.


Envelhecimento: Fenômeno social

Assim como a desigualdade social pode e na realidade deve ser considerada fenômeno natural, o envelhecimento é em última análise um fenômeno social. Tal entendimento se aplica mais precisamente ao envelhecimento individual, porém este constitui por assim dizer a base do outro.
Nesse sentido, quando consideramos envelhecimento o efeito do conjunto de numerosas pessoas idosas, da coletividade formada por elas, só aí temos o que se pode entender como envelhecimento social. É este, salvo engano, o desafio de que trata o nosso tema.
Os que chamam atenção para a natureza social do envelhecimento costumam recordar que na natureza não há velhos; nem sequer no reino vegetal.
Apenas a sociedade mantém vivo o ser humano que já não dispõe de condições para sobreviver por conta própria. Além do que isso significa em termos pessoais e familiares, o envelhecimento, criado pela sociedade, tem várias implicações, a começar pelas que dizem respeito à previdência social, focalizadas mais adiante.


Preocupação recente

Em termos históricos pode-se considerar recente a preocupação com o envelhecimento como fase e aspecto especial da vida humana e, mais precisamente, da ordem social. Costuma-se dizer, com propriedade, que sempre houve velhos, porém que a velhice como tal, com o elevado número deles, só ultimamente passou a ser objeto de atenção e estudo. Essa preocupação recente cresce em ritmo acelerado, podendo-se talvez dizer que o seu crescimento não é menos rápido que o da coorte de idosos. Um terceiro crescimento muito importante no caso é o da duração da vida humana, que faz com que os idosos, além de crescerem mais quantitativamente, sobrevivam por mais tempo.


Características pessoais

Na medida em que, repetindo, o envelhecimento de que se cogita aqui é o da população como um todo, ou seja, é o somatório da crescente idade dos indivíduos que a compõem, é necessário atentar também para os fatores que condicionam esse crescimento, isto é, que concorrem para cada idade individual.
Pelo menos dois deles são óbvios e essenciais: o primeiro, naturalmente, é a saúde, sem a qual em geral não se vive muito tempo. Daí a atenção especial com que a sociedade procura cuidar do estado físico das pessoas, primeiro proporcionando condições de vida que a assegurem em nível satisfatório e depois empenhando-se no combate a todo tipo de doença. Nesse sentido um padrão de vida que não deixe a desejar e os rápidos avanços da medicina são fatores de insuperável impacto.
Cabe lembrar aqui que quando se fala em população inteira, na realidade desde logo está fora dela aquela sua parte, considerável em termos quantitativos, em que a rigor não ocorre desigualdade social, pela lamentável razão de que não existe aí sociedade no sentido exato da palavra.
Mais uma vez em termos de envelhecimento global, parece fora de dúvida, estatisticamente, que pessoas educadas vivem mais. Daí, portanto, a acentuada importância da educação nesse particular. Sem índices satisfatórios dela na população é difícil, quando não impossível, cogitar de envelhecimento, propriamente.
Existem, é claro, outros fatores de interesse no caso, porém estes dois são nitidamente preponderantes. A tal ponto que o reconhecimento da sua primacial importância torna dispensável insistir nela.


Desvantagens dos idosos

Quando se cogita da relação entre desigualdade social e envelhecimento, principalmente como desafio ao novo milênio, uma dura realidade desde logo se impõe: os idosos, isto é, os personagens do envelhecimento, já constituem para esse efeito um grupo à parte.
À parte e desfavorecido, no seio da sociedade e da própria família. Mais até do que isso, desfavorecido em relação a si mesmo, ao adulto, ao ser humano pleno que cada idoso já deixou de ser. Por mais numerosas, variadas, satisfatórias e especiais que sejam as condições individuais das crescentes exceções a essa regra geral, ela permanece de pé. Daí a extrema complexidade da questão.
O descompasso pessoal entre o idoso e o adulto é uma realidade que não podemos desconhecer. Esforços médicos e outros no sentido da desejável uniformidade já reduziram sensivelmente as diferenças, porém estão longe de eliminá-las. Expressivo exemplo nesse particular é o repetido surgimento de medicamentos destinados a manter o apetite sexual em idades avançadas; eles em geral são eficazes, embora, naturalmente, dentro de limites.
É da condição humana, melhor dizendo, da natureza humana, que a vida tenha normalmente uma parte ascendente, por assim dizer, e outra descendente. Sabemos que a primeira vai do nascimento até o fim da fase adulta; e aí começa a segunda fase, considerada velhice, ainda que seus limites sejam bastante precários e o emprego desse termo e de seus cognatos, tendo à frente “velho”, haja deixado de ser de bom tom. E a idéia é que, se não conseguirmos evita-la, devemos empenhar-nos em poupá-la dos seus inconvenientes.
É óbvio que seria prioritário pôr termo às cruéis modalidades de desigualdade social que o novo milênio ainda encontra, algumas das quais recordei antes; e devemos reconhecer que em certa medida isso é possível. Por exemplo, a escravidão já deixou de ser legalmente reconhecida; e o mesmo aconteceu com as castas indianas, embora elas continuem existindo abertamente.
Da mesma maneira, devemos esperar que prossigam e se intensifiquem os esforços para atenuar as inevitáveis diferenças entre as duas fases da vida. Daí a importância de programas voltados especificamente para idosos. A esse respeito nunca será demais evocar esta conhecida e inspiradora verdade: “Mais importante do que acrescentar anos à vida é acrescentar vida aos anos.”


Perspectivas demográficas

No tocante à evolução quantitativa da população, não existe unanimidade entre os demógrafos, mas a grande maioria deles entende que o crescimento continuará por muito tempo ainda, até atingir cifras catastróficas. Para a minoria discordante, o incremento populacional começará a perder força em meados deste século e não chegará a produzir os terríficos efeitos previstos pelo outro lado.
Em qualquer hipótese, acrescentam eles, haverá tempo para encontrar meios de evitar o pior.
Entre os pessimistas, se assim se pode dizer, há quem sustente que em verdade já estamos sentindo de várias formas os efeitos negativos do rápido aumento da população.


Previdência social

Técnicos, especialistas, estudiosos e autoridades da previdência social e programas congêneres vêem aí o setor mais vulnerável a esses efeitos. Muitos afirmam categoricamente que eles já se vêm fazendo sentir, ainda que de maneira indireta. A questão é complexa, porém eles parecem estar com a razão.
Um ponto importante aqui, nem sempre examinado com suficiente atenção, é que para a previdência social, mais do que o aumento da população, e, portanto, dos seus beneficiários, pesa a maior duração da vida destes, com a conseqüente extensão mais prolongada dos benefícios respectivos.
Os trabalhadores antigos morriam pouco depois de aposentados, ao passo que os de hoje permanecem muitos anos nessa situação, sendo freqüentes os casos de pessoas que vivem mais tempo aposentadas do que viveram em atividade, como contribuintes. Sabemos que esses casos são naturalmente auspiciosos sob os aspectos pessoal e familiar, porém seu crescente número é um dos mais prementes problemas que a previdência social tem de resolver, como condição especial de subsistência da eficaz modalidade de proteção que ela constitui; e portanto como fator de atenuação da desigualdade social, em qualquer idade.


Dois livros e dois artigos

O ensaísta alemão Frank Schirrmacher escreveu dois livros de grande interesse para o nosso tema. Na medida em que suas conclusões e previsões procederem, as repercussões das novas realidades sobre o envelhecimento não poderão deixar de ter conseqüências e implicações no tocante à desigualdade social.
O primeiro, do ano passado, já foi traduzido para o português, com o título A revolução dos idosos. O outro, deste ano, ainda não, salvo engano, mas já foi traduzido para o francês, com o curioso título Lê réveil de Mathusalem (O despertar de Matusalém), que corresponde, literalmente, ao título original em alemão e que, mediante a figura bíblica simbolizadora da idade avançada, dá idéia do conteúdo da obra.
O primeiro livro trata basicamente da perspectiva que seu título aponta, com algumas indicações adicionais, e afirma: “Em poucos anos nossa sociedade viverá um choque comparável a uma guerra mundial: seu próprio envelhecimento.” Schirrmacher se apóia aí no demógrafo James Vaupel, também alemão. Seu novo livro despertou especial atenção, por exemplo, da acatada revista suíça L’Hebdo. Seu redator-chefe, Alan Jeannet, dedicou-lhe preocupante editorial, considerando-o “um livro luminoso” e “um brado de alarme”. Lembrando que questões menos importantes são objeto de descabida preocupação, Jeannet encarece especial atenção para a que Schirrmacher suscita e expõe.
Esta monografia já estava a bem dizer concluída quando li, em Seleções do Reader’s Digest, o animador artigo “Jovem para sempre”, de J. Alex Tarquínio, com esta epígrafe: “Sabe quanto tempo viveríamos se tivéssemos dois terços humanos e um terço máquina? Alguns especialistas dizem que para sempre...” Trata-se principalmente de um levantamento das pesquisas e estudos voltados para a extensão da existência humana, a começar pelas causas e características do envelhecimento. Daí seu interesse para o nosso tema, embora se trate de artigo jornalístico.
Outro artigo jornalístico de interesse para o nosso tema aparece por coincidência na mesma publicação: “Quando seus pais dependem de você”, de Viviane Nogueira, com úteis considerações e informações sobre o que seu título indica. A riqueza das citações de trabalhos e especialistas inclui, por exemplo, a acatada demógrafa Ana Amélia Camarano.


DESAFIO MILENAR


Milenar ou eterno?

O novo milênio tem pela frente uma série de desafios, cada qual mais complexo e mais grave que os demais. O que o nosso tema propõe é apenas um deles. Importante e dificílimo, como tudo que se refere ao ser humano. Assim, a primeira consideração a respeito parece ser no sentido não só da realidade e seriedade do desafio mas da sua anterioridade a este novo e terceiro milênio.
Milênios, conforme sabemos, são unidades cronológicas da era cristã, mas decerto havia antes de Cristo pelo menos desigualdade social, embora não envelhecimento tal como conhecemos. Nesse particular talvez fosse cedo, naqueles remotos tempos, para pensar em sociedade nos moldes de hoje.
Seja como for, parece correto entender que o desafio de que se cogita já o era para cada milênio anterior ou para antes deles. Recordo-me de ter lido em algum lugar que é um desafio milenar, não no sentido clássico deste termo, porém com relação a qualquer período histórico realmente longo. Indo um pouco além, não seria impróprio admitir que a desigualdade social, já agora ligada especificamente a envelhecimento, seja eterna e inevitável.


Condição humana

Na medida em que a sociedade encontra dificuldade para eliminar ou sequer amenizar sensivelmente a desigualdade, específica ou genérica, ganha terreno a idéia de que o fenômeno não é de natureza social ou individual, porém se prende mais de perto à natureza humana, como uma de suas complexas características.
Os defensores desse entendimento acreditam também que sua aceitação tornará mais viável combater com êxito a desigualdade social, não no envelhecimento apenas, mas em qualquer idade. No fundo o que temos aí é uma crença na possibilidade de aperfeiçoamento da condição humana e por conseguinte menor dificuldade para fazer frente ao desafio proposto.


Perspectiva ou aspiração?

A crença na viabilidade de bons resultados nessa complexa matéria pode ser considerada uma perspectiva favorável, porém não devemos esquecer que a rigor ela pode ser menos perspectiva do que aspiração.
A história registra pelo menos um exemplo oficial, legal, de conquista nessa área: a abolição da escravatura. Mas esse próprio exemplo é precário, pois de certa maneira e em alguns lugares continua havendo escravos. Em qualquer hipótese precisamos conservar a confiança na possibilidade de melhorias. Ainda que ofereçam pouca esperança, perspectivas valem mais que aspirações.
Além disso, sabemos que em qualquer setor da vida humana tudo acontece hoje mais depressa do que nunca. No milênio anterior ocorreram no mundo mais coisas do que até então, como mostra a conhecida noção de aceleração da história.
Por conseguinte, não é impossível que aperfeiçoamentos desejáveis sobrevenham mais depressa do que se imagina. Na medida em que acreditemos neles a perspectiva poderá ficar mais próxima, ou a aspiração transformar-se na perspectiva de algo viável ou concreto.


Qualidade de vida

A despeito das inevitáveis restrições individuais, familiares e sociais que o envelhecimento acarreta, são indiscutíveis as conquistas já alcançadas pelos idosos, em matéria de saúde, educação, participação na família e na sociedade, qualidade de vida. Não se trata apenas de vida mais longa; porém de vida melhor. Principalmente com menos desigualdade social. Infelizmente esses avanços quase que só se verificam nas sociedades onde existem condições para a sua ocorrência; e até mesmo nos países desenvolvidos encontramos essa inevitável restrição. Ela pode ser menos aguda ali, menos característica, menos evidente, porém dificilmente deixará de existir; e nem sempre guarda relação especial com o envelhecimento.
É óbvio que as conquistas dos idosos, que lhes proporcionam condições de vida mais satisfatórias, têm que ver com o conjunto desigualdade social/envelhecimento, como fatores de padrão e qualidade de vida. Da mesma maneira, modificadas, ampliadas ou reduzidas, elas decerto permanecerão em vigor no novo milênio, nos seguintes e mais adiante ainda. Oxalá.


Conclusão

Desafio ao lado de outros


Todas as fases da história têm seus desafios e suas conquistas, sem falar nas suas derrotas. Umas mais do que outras, naturalmente. Principalmente os desafios e conquistas parecem renovar-se e se ampliar com o passar do tempo, isto é, dos anos, dos séculos e até, em determinados casos, dos milênios. O novo milênio da era cristã em que acabamos de ingressar não poderia fugir à regra geral, à ordem histórica. Vai ter de enfrentar diferentes problemas, a começar pelos que vêm do passado, e devemos esperar que resolva ou amenize alguns deles.
Poucos desafios terão o porte e a complexidade do que constitui o nosso tema; e poucos são tão importantes para o ser humano, sobretudo quando se cogita das ligações entre uma questão genérica, a desigualdade social, e um fenômeno específico, o envelhecimento.
Para enfrentá-lo o novo milênio terá, como o passado histórico teve, de começar por outros que fazem parte dele. Justificando o que afirmo aqui, sem dar novidade, enumerei antes algumas modalidades de desigualdade social, nem sempre coincidentes, em natureza e características, com a desigualdade social do nosso tema. Da mesma maneira, focalizei em síntese alguns aspectos do envelhecimento que em geral dão origem a situações especiais não enquadradas no âmbito geral da desigualdade social.
Repetindo e resumindo, a questão conjunta desigualdade social/envelhecimento constitui sem dúvida crucial desafio para o novo milênio e decerto continuará constituindo para os milênios vindouros e provavelmente por todo o sempre.


Mínimo vital satisfatório

A extrema complexidade da questão torna difícil pensar em sugestões concretas de solução. Entretanto, existem razões para acreditar que no novo milênio, ou depois dele, será viável encontrá-las pelo menos em parte.
Ao que tudo indica, o melhor caminho para isso seria combater caso a caso as causas das diferentes modalidades de desigualdade social. Vimos que isso ocorreu, por exemplo, no tocante à escravidão. Sabemos também que na Índia tem alcançado promissor êxito o empenho de acabar com as castas, já proibidas pela Constituição.
No Brasil a efetivação de direitos dos idosos é promissora, embora ainda mais modesta na prática do que na letra. Nesse particular cabe um registro auspicioso: a implementação do Estatuto do Idoso (Lei no 10.741, 01.10.2003). Também aqui está no Congresso projeto do Estatuto de Igualdade Social, prevendo-se a possibilidade da sua aprovação no próximo ano, em 21 de março, Dia Internacional da Luta contra o Racismo e o Preconceito. Por ocasião da recente Copa do Mundo de futebol, a FIFA promoveu intensa campanha antiracismo, exibindo grandes cartazes antes de cada jogo.
Fora disso, ou melhor, além disso, ocorre-me uma idéia que já li e ouvi mais de uma vez, porém cuja fonte não registrei. Refiro-me ao que a maioria chama de renda mínima ou rendimento mínimo e que tem no Senador Eduardo Suplicy um dos seus mais autorizados e dedicados preconizadores. Ele reuniu suas idéias a respeito de um Fundo Brasil de Cidadania no livro Renda da cidadania: a saída é pela porta; e projeto de lei de sua autoria nesse sentido já foi aprovado pelo Senado, estando em discussão na Câmara dos Deputados. Estas informações são da jornalista Giovana Mollona.
Em síntese, trata-se de a sociedade fazer com que cada um dos seus membros tenha um rendimento que lhe assegure razoável padrão de vida; quem não tiver recursos de outra fonte que atinjam esse mínimo receberá da sociedade, a fundo perdido, um auxílio equivalente a parte ou ao total dele.
Uma vez que a desigualdade social está ligada muito de perto à insuficiência de recursos econômicos, os meios próprios, no valor desse piso, garantirão em princípio um mínimo dela, se é que existe gradação nessa matéria.
De igual modo, na medida em que esse valor básico puder ser elevado até, digamos, a média dos recursos econômicos individuais, pelo menos sob esse aspecto a desigualdade social se reduzirá sensivelmente.
É óbvio que as coisas não se passariam com a tranqüilidade com que estão sendo enunciadas aqui. A desigualdade social não se prende apenas a questões econômicas; porém sem dúvida está muito ligada a elas; e dificilmente se chegará àquela sem passar por estas.
Assegurando-se um padrão básico satisfatório de condições de vida, continuaria, naturalmente, havendo para os idosos, como para todas as idades, diferenças capazes em última análise de acarretar desigualdade social.
O que deixaria de existir, de modo geral, seriam os dramáticos contrastes que conhecemos hoje, como formas agudas de desigualdade social. E parece fora de dúvida que os beneficiários dessa nova situação seriam os idosos, já que se reduziriam os inelutáveis efeitos do envelhecimento.
Dito de outra maneira subsistiriam contrastes de padrões existenciais, com algumas famílias, nelas incluídos os seus idosos, vivendo melhor que outras, até mesmo por motivo de preferências individuais; e essas diferenças são úteis, pois sem elas não haveria progresso.
Talvez se trate, como admiti antes em termos genéricos, mais de uma aspiração do que de uma perspectiva. Entretanto, o problema é tão crucial que qualquer possibilidade de solução, ainda que parcial, merece ser examinada com interesse.
É sobretudo nesse sentido que devemos encarar com otimismo o desafio que o conjunto desigualdade social/envelhecimento representa para o novo milênio.


CELSO BARROSO LEITE – Especialista em Previdência Social

Confederação Nacional do Comércio
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domingo, 29 de julho de 2007

A alegoria da caverna

"Eles são desde a infância, prisioneiros dos grilhões"

A caverna e seus prisioneiros

[Sócrates] - Imagine a situação que eu vou te descrever. Imagine uma gruta subterrânea, muito aberta em toda a sua profundidade do lado da luz do dia; e nessa gruta estão homens prisioneiros, desde a infância, em grilhões que lhes submetem tanto as pernas e o pescoço, que eles não podem nem mudar de lugar nem virar a cabeça, e só vêm o que está na frente deles. A luz lhes vêm de um fogo aceso à uma certa distância do alto atrás deles. Entre esse fogo e os cativos se eleva um caminho, ao longo do qual imagine um pequeno muro semelhante a esses tabiques que os mostradores de marionetes colocam entre eles e os espectadores, e por cima dos quais aparecem as maravilhas que eles mostram. [....] Imagine ainda que ao longo desse muro passam homens carregando objetos diversos que parecem ser assim por cima do muro, figuras de homens e de animais de madeira ou de pedra, e com mil formas diferentes ; e naturalmente entre aqueles que passam, alguns se falam entre eles, outros não dizem nada.[....].
Se agora nós arrancarmos o prisioneiro de sua caverna contra sua vontade, e que nós o arrastamos pela senda rude e escarpada, até a claridade do sol, essa violência não excitará seus lamentos e sua cólera? E quando ele terá alcançado o grande dia, sobrecarregado de seu esplendor, poderá ele distinguir qualquer um dos objetos que nós chamamos seres reais? [.....] Somente pouco a pouco seus olhos poderão se acostumar a essa região superior. O que ele vai discernir mais facilmente, será primeiro as sombras, depois as imagens dos homens e dos outros objetos que se desenham na superfície das águas, e em seguida os objetos eles mesmos. Nesse momento ele elevará seus olhares em direção do céu, no qual ele suportará mais facilmente a vista, quando ele contemplará durante a noite a lua e as estrelas, que ele não poderia fazê-lo, durante o momento em que o sol ilumina o horizonte. [....] No fim ele poderá, eu penso, não somente ver o sol nas águas e em tudo onde sua imagem se reflete, mas contempla-lo em si mesmo no seu verdadeiro lugar. [.....] Após isso, começando a raciocinar, ele chegará a conclusão que é o sol que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que ele é de uma certa maneira o princípio de tudo o que nossa gente via lá na caverna.

- Platão, A República, VII, 514A - 516B, Trad. V. Cousis, Ed. Rey et Gravier, 1834


Analogia do Bem e do Sol

[Sócrates] - Eu penso vos dizer, se assim vocês desejam, o que me parece ser o filho do bem e a sua imagem mais semelhante. [.....] É o sol que eu compreendo por filho do bem, que o bem gerou à sua própria semelhança, e que é, no mundo visível, com relação a vista e aos objetos visíveis, o que o bem é no mundo inteligível, com relação a inteligência e aos objetos inteligíveis. [....] O sol dá as coisas visíveis ainda a vida, o crescimento e o alimento, sem ser ele mesmo a vida. [...] Da mesma maneira você pode dizer que os seres inteligíveis não possuem apenas o bem que os torna inteligíveis, mas além disso o ser e a essência deles, se bem que o bem nele mesmo não seja essência, mas alguma coisa muito acima da essência em dignidade e em potência. [....] Conceba então que eles são dois, o bem e o sol: um é o rei do mundo inteligível; o outro é o rei do mundo visível.

- Idem, VI, 506E - 509D.


O Sìmbolo da Linha: Os Graus do Ser
A...Domìnio sensìvel .( o que é percebido pelos sentidos )
B.....Domìnio inteligìvel ( o que é percebido pelo espìrito )
Gênero de objetos
[ Reflexos,ilusões [ sombras, imagens......] (a)
[objetos fabricados[seres vivos ](b)
[objetos e teorias[ matemàticas] (c)
[Idéias ] (d )
Modo de conhecimento
(a) Conjetura
(b) Crença
(c) Pensamento raciocinante
(d) Intelecto ( intuição das idéias )
....................................................................Bem ( Um )
.................................................................."Além da essência"


A alegoria da caverna ou o caminho da sabedoria

A caverna, motivo herdado do pitagorismo, ilustra um lugar tenebroso e ambíguo, que Platão no diálogo" Phédon" já tinha comparado ao fundo lodoso de um charco : nossa estada terrestre! Os homens acreditam ser livres, mas seus hábitos de pensamento ("laços", "correntes") são como os hábitos de um prisioneiro, obnubilados por sombras fugazes que eles acreditam desde a infância ser a única verdadeira realidade. O interior da caverna é então a imagem de nossas sociedades; super ocupadas e repletas de simulacros. Só a educação pode segundo Platão nos permitir de sair da ilusão.


Dos reflexos as idéias

De uma maneira geral, a educação platônica, compreendida como uma "arte de conversão", visa a desviar a alma do material e a lhe fazer colocar o olhar na realidade verdadeira, a realidade das Idéias. Isto se opera através um curso científico (aritmética, geometria, astronomia, harmonia) que purifica os olhos da alma. Para Platão, como também para Pythagore, as ciências, inseparáveis da filosofia, são os instrumentos que permitem a purificação do espírito.
Platão utiliza também, no fim do livro VI, uma outra analogia, uma linha dividida em segmentos correspondendo aos graus de realidade do ser. (Ver acima, aproximativo). A esquerda, o mundo sensível (parte A), dividido em dois, os objetos reais (b) (seres vivos - homens, plantas, animais, etc), produtos da atividade humana - cadeira, navio, estátua, etc), e suas imagens (a) (representações, sombras, quimeras da imaginação, etc). A direita, o domínio dos seres perceptíveis pelo espírito, os inteligíveis (B), ele mesmo dividido em duas partes : os objetos da razão (c) por exemplo, as teorias - e as figuras matemáticas), e as Idéias platônicas (d). Enfim, completamente à direita, além do ser, o que Platão chama o Bem.
O filósofo transpõe essas divisões na alegoria da caverna: ao prisioneiro saindo da gruta subterrânea para contemplar o sol corresponde à alma que, voltada primeiro para o material (b), se interessa em seguida a sua estrutura matemática (c), depois, a partir das matemáticas, se eleva as Idéias (d). No grau inferior da realidade, os seres só são percebidos primeiro através de seus reflexos: assim, a Idéia do círculo é percebida a partir de uma figura circular. Só pode existir, segundo Platão, a dialética que possa diretamente ver as Idéias e o Bem, objetivo da educação.
O tema do Bem é o aspecto mais misterioso da filosofia de Platão. Ele já aparece no livro "O Banquete" como o Belo em si. No livro "A República", ele é mencionado várias vezes, e Platão utiliza uma terceira analogia para nos fazer concebê-lo: a do sol. O sol, "filho do Bem", permite de ver o mundo e proporciona à todos os seres vivos a luz e o calor necessários ao ciclo vital. Da mesma maneira, o Bem, luz eterna, é a origem das Idéias e permite que nós possamos percebê-las. Ele está "além da essência", quer dizer de toda forma de existência, material ou espiritual. Compreender essa visão do mundo é difícil para o pensamento moderno, pois ele acredita espontaneamente que ele tira essas idéias dele mesmo ou do mundo material. Mas alguns científicos, sobretudo matemáticos e físicos - Gödel, Penrose - se reclamam hoje de uma forma de platonismo, segundo a qual as matemáticas não são elaboradas pelo homem, mas apenas descobertas.

- O.S


Gödel, Kurt (1906 - 1978)


Lógico americano de origem austríaca. Ele estabeleceu entre outros em 1930, o "teorema da incompletude", que demonstra o limite das possibilidades de formalização completa das teorias matemáticas.


Penrose, Roger (nascido em 1931 )

Matemático britânico, professor em Oxford e grande vulgarizador das ciências, desenvolveu entre outros a teoria dos "buracos negros" - "trous noirs".


Pythagore (572 – 490 a.c.)

Filósofo e matemático grego, nativo de Samos em Ionie, na costa turca atual. Mas ou menos em 530 a.c, ele funda em Crotone, na Itália, uma comunidade religiosa que exerce uma grande influência política, antes de ser expulso por uma revolta popular. Ele desenvolveu as matemáticas místicas e um sistema filosófico em que os números têm uma função de princípios. Nós lhe devemos igualmente a descoberta dos números irracionais. Nenhum de seus escritos foram conservados.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

O que é um mito?

"Os mitos são histórias que os homens contam para melhor se conhecerem. Se nossos mitos fundadores no Ocidente vêm sobretudo da Grécia antiga, nós trabalhamos sempre para elaborar outros mitos. O mito da pátria ontem, o mito da identidade nacional hoje."


Mito

"O que é um mito? Se você interrogar um índio americano, disse Claude Levis Strauss, ele responderia provavelmente: uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não eram distintos." Se nós fizermos a mesma pergunta a Euripides, o poeta "des Tryennes" e de "Medée", ele mostraria as crianças sentadas perto do aparelho de tecelagem escutando as històrias que todo mundo conhece.
Entre Americanos e Gregos, a invenção da mitologia pode-se ler como uma bela história. Mas é preciso dizer ainda: os mitos e a mitologia falam grego ou, com mais precisão, nos falam em grego. Mito - mytos é uma palavra grega e, no subconsciente europeu, o mito dá arrepios nas grandes narrações fundadoras que atravessam as gerações, nas sociedades arcaicas ou nas nossas.
Certo, nós temos tendência - é um aspecto de nossa tradição - meio greco-romana, meio judaico-cristã - de pensar que os mitos são o problema dos outros. A herança grega foi tão importante que, desde o século VI antes de J.C, um pensamento indìgena sugeriu interpretações, no sentido de abrir um espaço para uma "mitografia" paralela à mitologia conhecida desde o período que vem antes da Iliade de Homère.
A mitologia, como "objeto" provisório de um questionamento sobre o espírito e sua relação ao mundo, se inventa para "nós" em terra e em língua gregas. O que alguns vão chamar mito entre Sumer e Babilônia, e outros declarar não encontrar na China, mas com certeza encontrar na Índia, se passa dessa maneira por analogia a uma tradição de interpretação, que pretender ser "ciência", ou saber refletido, em 1850 de nossa era.


As ilusões do sonho

Desde os primeiros antropólogos britânicos em torno de Edouard Tylor até a antropologia cognitiva contemporânea, a mitologia é um terreno de eleição para compreender o que significa as representações culturais.
Viajantes missionários, etnólogos, historiadores, todos vão imaginar teorias para interpretar as similitudes surpreendentes entre as histórias contadas nos quatro cantos do mundo e as histórias que parecem conter a marca da mitologia exemplar dos Gregos, da Civilização e do Ocidente. Na visão animista de Tylor, foram as ilusões do sonho que despertaram a crença nos espíritos, e os mitos são pensados como o efeito de uma análise confusa da realidade. Os deuses da mitologia só podendo ser as personificações de forças naturais, de altas figuras imaginárias nascidas da primeira linguagem.
Durante todo o século XIX, as seduções do evolucionismo ajudando, não existe nada mais importante do que assistir em família ao nascimento da idéia de "Deus" e a emergência cúmplice da Religião e da Magia.
Primitivo e irracional, o "pensamento dos mitos" nos fazia descobrir um estado de espírito que a passagem (com sucesso) do "Mito" à "Razão" na Grécia, e só na Grécia, permitia de atribuir às sociedades anteriores.
Mas são os etnólogos de terreno que, se esforçando de medir o impacto do simbolismo, na vida cotidiana das sociedades "primitivas", deviam constatar que acreditar nos espíritos da floresta não impede de estar totalmente de acordo com a realidade.
O "africanista" Pierre Smith (1939 - 2001), fez dessa maneira observar que " os mitos têm um relacionamento particular com o pensamento etnólogo". É formulando as questões "mais importantes" (como "qual o significado de tal ritual?") que ele se encontra com as narrações "mitológicas". Os "fonctionnalistes" após Bonislaw Malinowski (1884 - 1942) mostraram que é possível de considerar o discurso dos mitos como o elemento de coesão do grupo, sua "carta pragmática". Contudo, outros etnólogos convencidos que a mitologia forma um sistema rigoroso de crenças diversas, quiseram seguir em todos os detalhes a maneira como as narrações fabulosas explicam as práticas sociais: costumes, ritos, sinais gráficos, objetos, etc. Ao ponto que alguns começaram a falar, senão a pensar, como os membros de uma tribo....


O selvagem e o domesticado

Nos anos 1960, Claude Lévi-Strauss sugeria portanto de ver que em cada indivíduo podia coabitar um "pensamento selvagem" e um "pensamento doméstico". O primeiro, em obra nos mitos e na arte, o que é lógico, pois ele procede com a ajuda de distinções e não pela confusão. O segundo, levado pela consciência reflexiva, se exerce a conduzir rigorosamente as formas de análise que vão beneficiar a medicina, a retórica, a lógica ou a sabedoria dita "filosófica". No centro da pesquisa de Lévi-Strauss, existe a hipótese que os mitos permitem de descobrir, os modos de operação essenciais à atividade do espírito humano em geral.
Nós podemos ainda notar que na Grécia "a mitologia, se escreve". Tornando-se "mito-grafia", as narrações mudam de natureza na medida em que elas escapam de uma certa maneira ao trabalho da memória e da transmissão oral. Mas o reino da escrita não impede que nos atravessem, em nossas sociedades de alta tecnologia, os discursos anônimos sobre a origem do mundo.
Uma antropologia comparativa que retorna no conhecimento de nossas representações culturais convida a liberar certos valores fundamentais que são inscritos no espírito da maior parte dos indivíduos de uma mesma cultura. Desde o século XIX, as nações européias se deram razões de acreditar em alguma coisa "mítica" que é a identidade nacional. Para fazer uma nação, dizia Maurice Barrès, "é preciso cimitérios e um ensino da història". Deixemos os mortos, para considerar a história "mitológica" que a escola pública vai colocar em cena através de pequenas narrações e imagens durante mais de um século em todos os lugares da Europa....
Há uma dezena de anos atrás, uma pequena província da Itália se proclamava "Padanie", afirmava sua origem "celta" e escolhia de criar um ministério de identidade cultural. Hoje aparecem projetos de ministérios da Imigração e de Identidade nacional. Que deve necessariamente ser uma identidade histórica reinvindicando o direito a seu "imaginário nacional". Em 1986, o historiador Fernand Brandel contando a "odyssée" da "identidade da França", podia garantir que esta identidade vinha direto do Paleolìtico. Ele não foi compreendido apenas pela extrema direita.

"Mitodeologias" contemporâneas"

Ninguém pode duvidar da força dessas mitologias contemporâneas no debate político. Nós somos habitados no cotidiano por "mitodeologias": o dever de memória, autóctonia, etc. As ditas "grandes narrações" de outrora são feitas de fragmentos em que as afinidades se constituem de maneira contínua de microfigurações que podem cristalizar a adesão ora de um pequeno grupo, ora do Povo-Massa. Quanto mais o mundo torna-se complexo, mais nós suspiramos para as explicações que englobam a totalidade dos fenômenos. Isto poderia ser o esboço de uma definição do que é o mito, entre hoje e ontem.


- Marcel Detienne, professor em Johns Hopkins University (Estados Unidos) é o autor, entre outros, dos " Grecs et Nous" (Perrin, 2007) e de "Comment être autochtone ?" (Seuil, 2007).



Existe um documentário genial sobre o que é o mito! Procurem em locadoras quem se interessar!
O Poder do Mito - by Joseph Campbell!

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Mensagem

Que a paz.... e a verdade ainda sejam uma realidade e uma luta constante
Que a luz nem que seja pequenina ainda ilumine nossos passos e nossa vida
Que o Brasil desperte enfim..... e se conscientize de seu potencial.... de sua grandeza....
Que os Brasileiros que lutam..... continuem a lutar
Que a coragem e a força sejam nossos companheiros inseparáveis
O Amor nosso guia
A esperança...... Eterna....
Paz profunda !

Brasil, um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce,
Se em teu formoso céu, risonho e límpido,
A imagem do Cruzeiro resplandece.
Gigante pela própria natureza,
És belo, és forte, impávido colosso,
E o teu futuro espelha essa grandeza.
Terra adorada,
Entre outras mil,
És tu, Brasil,
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Banho de Brasil

Aqui na França se diz quando uma pessoa vai de encontro a multidão....um pouco como se ela mergulhasse nessa multidão....que ela vai tomar um banho de multidão, "bain de foule".
Pensando nessa expressão que é muito utilizada aqui , pensando ao mesmo tempo no Brasil e na eternidade que estou ausente....27 anos e poeiras....acredito sinceramente que eu deveria tomar um banho de Brasil !
Banho de favela
Banho de tiro e de grito
Banho de seca e sem terra
Banho de sede e de fome
Banho de negro, de ìndio, moreno, mulato....branco
Verde....amarelo....azul....anil....
Banho de corrupção...
Banho de cultura brasileira
MPB, Bossa nova, samba, pagode, forrò....
Banho de elite
Banho de praia....sol....lua e estrelas
Enfim....
Banho de Brasil !
Bem Brasileiro e sò
Somente....sol...Brasil !
Talvez assim eu possa entender melhor as desavenças, as crenças, as mazelas....a violência
Talvez assim eu possa entender a minha distância....saudade....
A eternidade sem ti Brasil
Sem mim também....
Eterna, imensa e dolorosa saudade !
Quem me dera um dia, uma hora, um minuto
De Brasil !
Quem me dera um banho de cores e sabores do Brasil
Um longo e demorado banho de floresta....
Amazônia querida....sempre...
Salve ! Salvem a Amazônia !
Salve ! Salvem !
Brasil !

sábado, 21 de julho de 2007

O sonho do Presidente

O presidente da República das bananas, das palmeiras e madrigais, dos pacatos e santos republicanos de um paìs sem igual por sua grandeza, sua beleza, sua pobreza apesar de suas riquezas, e sua corrupção incomparàvel e indomàvel fez um sonho:
Estava ele um dia de chuva e luto nacional a se debater com as pragas do congresso, desesperado ele resolveu dirigir-se a seus eleitores para pedir auxìlio. Sentou-se emocionado e escreveu uma carta aos eleitores.
Carta aos eleitores :
"Caríssimos eleitores, eis-me aqui mais uma vez presidente, estou desesperado, sem socorro, sem auxìlio.... desamparado.... cego.... mudo.... ausente.... Gostaria de uma participação mais ativa de vocês na minha presidência, afinal vocês me escolheram não?
Gostaria de ver passeatas, muitas passeatas contra a pouca vergonha e a corrupção dos polìticos, deputados, senadores, ministros...
Estou desesperado com eles, não consigo controlà-los, fazem o que querem de mim, de vocês.... de nós.... de todos!
Fazem e desfazem mil mazelas estarrecedoras, assustadoras! Sou como um mero fantoche nas mãos deles, não tenho nenhuma autoridade...
Preciso de vocês!
Saiam numerosos nas ruas e gritem bem forte e alto a revolta e a indignação de vocês, de mim... de todos!
Se revoltem!
Não tenham medo, eu sou o presidente do povo e protegerei vocês.... não me deixem sozinho e abandonado nas mãos desses bandidos miseráveis...
Salvem-me! Socorro!
Estou cheio, não aguento mais!
Além disso se vocês não me disserem o que se passa nesse país, como eu vou saber?
O que se passa atualmente?
Eles não me dizem nada, mal vejo os papéis que assino, tudo é feito de maneira traiçoeira e nas minhas costas...
Me falem! Me digam o que acontece aqui.... eu preciso saber da minha vida, da vida do povo, da fome, da miséria, dos problemas.... das tragédias.... teve alguma ultimamente? Eu preciso saber!
Já não sei mais porquê vivo, porquê respiro.... porquê?
Será que sou mesmo Presidente?...
Assim se termina o sonho do presidente
Triste.... muito triste....
Vou começar a informá-lo agora mesmo:
"Sinhô presidente
Està tudo enrolado, embrulhado, ninguém se entende, somos roubados, assassinados, humilhados e maltratados sem parar....."
Vamos! Vamos protestar para o sinhô presidente parar de sonhar....

V. A Razão dos Ateus

"Qual é a razão que faz tantos ateus? É a contemplação de nossas infelicidades e de nossos crimes.
Lucrèce era mais desculpável que nenhuma outra pessoa: ele só viu em torno dele e só experimentou calamidades. Roma, desde Sylla, deve excitar a piedade da terra de qual ela foi o flagelo. Nós nadamos em nosso sangue. Eu julgo por tudo que eu vejo, por tudo que eu escuto, que César será logo assassinado. Vocês pensam a mesma coisa. Mas após ele eu prevejo guerras civis mais horrendas do que as em que eu estive envolvido. César ele mesmo, durante toda a sua vida, o que ele viu, o que ele fez? Infelizes. Ele exterminou os pobres Gaulois que se exterminavam eles mesmos nas suas contínuas facções. Esses bárbaros eram governados por druidas que sacrificavam as filhas dos cidadãos após ter abusado delas. Velhas feiticeiras sanguinárias estavam no comando dos bandos germânicos que destruíam a Gaulle e que, não tendo casa, iam pilhar os que tinham. Arioviste era o chefe desses selvagens, e suas feiticeiras tinham um poder absoluto sobre Arioviste. Elas o proibiram de ir em uma batalha antes da lua nova. Essas fúrias iam sacrificar a seus deuses Procilius e Titius, dois embaixadores enviados por César a esse pérfido Arioviste, quando nós chegamos e que nós liberamos esses dois cidadãos que nós encontramos carregados de correntes. A natureza humana, nessas regiões, era a natureza dos bichos ferozes, e na verdade nós não éramos melhores.
Joguem os olhos sobre todas as outras nações conhecidas: vocês só vêem tiranos e escravos, devastações, conspirações e suplícios.
Os animais são mais ainda miseráveis que nós: sujeitos às mesmas doenças, eles são sem nenhum socorro; todos nascidos sensíveis, eles são devorados uns pelos outros. Não existe nenhuma espécie que não tenha seu carrasco. A terra, de um pólo ao outro, é um campo de massacre, e a natureza sanguinária está sentada entre o nascimento e a morte.
Alguns poetas, para remediar a tantos horrores, imaginaram os Infernos. Estranha consolação, estranha quimera! Os infernos estão em nossas terras. O cachorro de três cabeças, e as Três Parques - (Deusas infernais que teciam, desmanchavam e cortavam o fio da vida dos homens), e as Três Fúrias - (As Èrinyes, deusas da vingança), são ovelhas em comparação aos nossos Sylla e nossos Marius.
Como Deus poderia ter formado esse lugar sujo e estarrecedor de misérias e crimes? Nós supomos um Deus poderoso, sábio, justo e bom; e nós vemos de todos os lados loucura, injustiça e malevolência. Nós preferimos então negar Deus do que blasfemá-lo. Assim nós temos cem epicurianos contra um platônico. Eis as verdadeiras razões do ateísmo; o resto é disputa de escola.

- Voltaire, Últimos escritos sobre Deus, Lettres de Memmius à Cicéron -

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Algo notório ...


"Dirijo minha luta não contra as crenças religiosas dos homens, mas contra os que exploram a crença. Detestemos essas criaturas que devoram o coração de sua mãe e honremos aqueles que lutam contra eles. Acredito na existência de Deus. Em verdade, se Deus não existisse, fora preciso inventá-lo.

Meu Deus não é um Rei exclusivo de uma simples ordem eclesiástica. É a suprema inteligência do mundo, obreiro infinitamente capaz e infinitamente imparcial. Não tem povo predileto, nem país predileto, nem igreja predileta. Pois para o verdadeiro crente há, apenas, uma única fé, justiça igual e igual tolerância para toda a humanidade".


Voltaire (1694-1778)

domingo, 15 de julho de 2007

Crio por que lembro...



Tudo o que vemos é apenas um reflexo de nossa percepção. As imagens e sensações que sentimos do meio em que vivemos são produzidas através da atração e repulsão de partículas subatômicas agregadas nos contexto frequencial do nosso estado físico da realidade que nos é apresentada. Toda sensação é apenas um resultado da primeira impressão da consciência, que recebe as primeiras ondas de freqüência do meio, pois só se fala de uma experiência depois de vivê-la. Assim, ouso dizer que estamos constantemente olhando para nosso passado. Por mais surpreendente que a experiência nos pareça, ela só nos afeta pelo fato de ser concernente á nossa expectativa.
Mas por que temos expectativas? Por que temos medo?
Foi nos ensinado pensar sempre no nosso futuro, de maneira á criar um sistema lógico de auto aceitação de nossa de nossas capacidades e aspirações, mas não o que deixamos como impressão do meio, que nos tornou melhores.
O cérebro armazena e decodifica o que nos é similar e cotidiano, mas não reconhece o termo “Espaço/Tempo”, pois, tais informações apenas são um conjunto comum de armazenamento de “dados”.
Quando nos lembramos de algo que nos fere, o cérebro coloca em ênfase a sensação incômoda da experiência. O mesmo acontece para as boas lembranças. Mas o que nos faz bem? As boas ou más lembranças? Obviamente, a segunda alternativa é mais apropriada, por que nos toca ao que é prazeroso. Mas é: Impressão, Arquivo...
Pensamos mais no futuro que pode nos assaltar, do que no passado que deixamos para trás.
Sou convicto de que: Criamos o Nosso Futuro quando Concebemos o presente como Lembranças.
Se temos lembranças ruins, é necessário criarmos o “mecanismo restaurador”, de nosso cérebro. Como? Um grande amigo Afonso Celso me disse: “Se o que sofremos no passado nos trouxe até aqui e nos deu bom discernimento, então tivemos uma boa experiência”. Outro grande amigo, o Poeta/ Escritor Edgar Macedo Asseverou: “Somos ressonância do que Pensamos”. Assim podemos apreciar com mais perspicácia esse parâmetro de visão de nossa realidade. Toda experiência, por mais insólita que pareça, já esta arquivada na nossa mente e depois apenas nós a vivemos, pois nós a antevemos na consciência.
Se tivemos uma experiência ruim em nossa vida, devemos visualizá-la como um alicerce do que nos tornou melhor. Se a mesma foi boa, temos de lembrá-la como mais um degrau da nossa meta, na qual foi transposta. Ex: Se temos lembranças más, pensemos: Foi uma experiência na qual não vivo mais... Se foi boa... Foi uma das experiências que me tornaram o que sou agora...

...O Cérebro processa tudo como um “eterno arquivo”, pois simplesmente ignora o tempo...
Descartes falou: Penso , logo existo
Eu lhe convido, de agora em diante á Pensar: ...CRIO POR QUE LEMBRO...

Fr. R+C Aluísio Corrêa Martins - Julho/2007

terça-feira, 10 de julho de 2007

Spinoza, Èthique, 1 ("De Dieu")

"Nosso bem soberano depende únicamente do conhecimento de Deus"



Eu expliquei pelo que precede a natureza de Deus e suas propriedades, "á savoir": que ele existe necessariamente; que ele é único: que ele é e age pela única necessidade de sua natureza; que ele é de todas as coisas causa livre, e como ele é causa livre; que todas as coisas estão nele e dependem dele de tal maneira que elas não podem sem ele nem ser nem serem concebidas; e enfim que todas as coisas foram predeterminadas por Deus, não por uma liberdade da vontade, quer dizer por um " bom prazer" absoluto, mas pela natureza absoluta de Deus, quer dizer por um infinito poder.

- Spinoza, Èthique, 1 (" De Dieu "), Appendice, Trad. Originale de Pascal Séverac -


Proposição 3:

As coisas não puderam ser produzidas por Deus de nenhuma maneira nem em nenhuma outra ordem do que da maneira e da ordem em que elas foram produzidas. [...]

Scolie 2: [....] Eu confesso que a opinião que submete tudo a uma certa vontade indiferente de Deus, e afirma que tudo depende de seu "bom prazer", se afasta menos do verdadeiro do que aqueles que afirmam que Deus faz tudo em razão do bem. Pois estes parecem colocar fora de Deus alguma coisa que não depende de Deus, sobre a qual Deus coloca sua atenção nessas operações como em um modelo, ou na qual ele a considera como um certo objetivo. O que não é nada mais que submeter Deus ao destino, e nós não podemos afirmar nada de mais absurdo ao sujeito de Deus, de quem nós mostramos que ele é a primeira e única causa livre tanto da essência que da existência de todas as coisas.É por essa razão que eu não tenho que perder meu tempo a refutar esse absurdo.

- Idem, I, Prop. 33


Traité Théologico - Politique (1670)

Como a melhor parte do nosso ser é o entendimento, se nós queremos verdadeiramente procurar nosso próprio útil, nós devemos certamente, antes de todas as coisas, nos esforçar- mos de aprimorar o entendimento na medida do possível, pois é na sua perfeição que deve consistir nosso bem soberano. Ora, como todo o nosso conhecimento e nossa certeza, aquela que elimina verdadeiramente toda dúvida, dependem unicamente do conhecimento de Deus, de um lado porque sem Deus nada pode nem ser nem ser concebido, de outro lado porque nós podemos duvidar de tudo enquanto nós não tivermos uma idéia clara e distinta de Deus, podemos deduzir que nosso bem soberano e nossa perfeição dependem unicamente do conhecimento de Deus, etc. Em seguida, como, sem Deus, nada pode ser nem ser concebido, é uma certeza que tudo que está na natureza envolve e exprime o conceito de Deus na proporção de sua essência e de sua perfeição; então, quanto mais nós conhecemos as coisas naturais, mais nosso conhecimento de Deus aumenta e torna-se mais perfeito. Ou ainda : porque conhecer um efeito por sua causa, não é nada mais que conhecer alguma propriedade da causa, quanto mais nós conhecemos as coisas naturais, mais perfeitamente nós conhecemos a essência de Deus (que é a causa de todas as coisas).
E por conseguinte, todo o nosso conhecimento, quer dizer nosso bem soberano, não somente depende do conhecimento de Deus, mas consiste inteiramente nele. Disso ainda resulta que o homem aumenta sua perfeição em razão da natureza e da perfeição da coisa que ele ama mais do que todas as outras, e reciprocamente. Então este homem é necessariamente o mais perfeito e participa bem mais da suprema beatitude que ama mais do que tudo o conhecimento intelectual de Deus, o ser mais perfeito, e se regozija nesse conhecimento da maneira mais elevada. Então é nisso, no amor e no conhecimento de Deus, que reside nosso bem soberano e nossa beatitude. [....].
Então como o amor de Deus é a felicidade suprema do homem, sua beatitude e seu último fim e o objetivo de todas as ações humanas, podemos deduzir que só segue a lei divina aquele que se preocupa de amar Deus não pelo temor do suplício, nem pelo amor de outra coisa como os prazeres, a celebridade, etc..., mas pela única razão que ele conhece Deus e que ele sabe que o conhecimento e o amor de Deus são o bem soberano.

- Spinoza, Traité Théologico - Politique (1670), IV, 4 - 5 , Trad. J.Lagré et P. - F. Moreau, PUF, 1999


Deus como Natureza

Se Spinoza utiliza novamente por uma grande parte a terminologia da teologia cristã clássica e do cartesianismo, ele promove todavia, certas noções e abandona outras: assim, ele não utiliza mais, na "Èthique" (1677), o vocabulário da "criação", mas ele utiliza o vocabulário da "produção"; os seres produzidos por Deus, inclusive os homens, Spinoza os chama "modes" (1). esse termo serve a distinguí-los de Deus, ele mesmo, que é a única "substância" (2), que se produz ela mesma; ele permite também de indicar que essas coisas não saberiam existir fora da substância, quer dizer de Deus: elas não podem ser separadas dele (pelo pecado, por exemplo), e não podem existir sem ele.

Nota, 1 e 2


1 - "Mode"

Por “mode”, eu compreendo as “afecções de uma substância, quer dizer o que é em outra coisa, pela qual ele foi concebido", escreve Spinoza na Èthique (I, def. 5). O “mode” constitui então, uma das duas alternativas da ontologia espinozista: uma coisa é em si (e é a substância absoluta e única), ou então ela é em outra coisa (e é o “mode”). Mas o “mode” não é, e a substância também não, uma abstração ou uma ficção da razão: os “modes” são a infinidade das coisas concretas que Deus produz necessariamente, ou seja uma infinidade de seres reais (inclusive os homens) dotados de uma existência e de uma essência singulares.


2 – Substância

Se Aristóteles, no primeiro livro de Física, definia a substância (ousia em grego) como o substrato subjacente a todas as mudanças, matéria informada pela alma como princípio de vida, Spinoza dá a essa palavra um sentido inédito na história da filosofia: a substância, de qual a definição inaugura o sistema da Èthique ("o que é em si e concebido por si", def. 3), é também "o que a essência envolve na existência ".
A substância, então é Deus, um ser único - não pode existir pluralidade de substâncias -, eterno e dotado de uma infinidade de atributos infinitos. È também a Natureza nos seus dois aspectos: Natureza "naturante" (a substância como causa de todas as coisas) e Natureza "naturée" (os "modes" como afecções da substância ).


Deus sive Natura

A filosofia de Spinoza é com efeito uma filosofia da necessidade absoluta: Deus não pôde fazer as coisas de outra maneira que ele as fez; ele produz todas as coisas necessariamente, mas ele não obedece a outra necessidade que a de sua própria natureza (ver o texto acima). Uma tal definição implica que a potência infinita de Deus não se distingue da produção infinita de seus efeitos: ele é imanente a suas produções; ele não produz nada saindo dele mesmo; ele não conserva nenhuma potência em reserva. Sua potência não é "em potência". Ela não é um potencial, mas sua própria atividade, e esta é plenamente atual: dizendo de outra maneira, Deus é a Natureza ("Deus sive Natura") .


Contra Descartes

Dois erros então devem ser evitados. Primeiro, estimar que Deus age em função de uma norma: isso significaria submetê-lo a um outro princípio que ele mesmo, e negar sua infinidade. Esse erro, como explica Spinoza no segundo texto acima, é mais grosseiro que o que consiste a assimilar sua potência produtiva a uma vontade criativa absolutamente livre. Ao menos essa última concepção, que é a de Descartes, deixa a iniciativa da criação unicamente a Deus.
Segundo o filósofo francês com efeito, Deus criou a Natureza com leis precisas, mas ele poderia muito bem tê-la criado com outras leis (ou não tê-la criado) se ele assim o quisesse: tal é a significação da "indiferença de sua vontade", determinada por nenhuma necessidade, nem mesmo interior. Segundo Descartes, Deus não quer uma coisa porque ela é boa, mas uma coisa é boa porque ele quer. A natureza divina é então, para ele, fundamentalmente incompreensível.
Para Spinoza, existe nisso uma contradição que consiste a estipular que Deus poderia não existir : se ele tivesse tido a possibilidade de produzir as coisas de outra maneira, ele seria diferente do que ele é, e então poderia não existir. Deus na verdade "é necessariamente", e por conseguinte produz as coisas em virtude dessa mesma necessidade pela qual ele não pode não existir. Deus é na realidade "causa livre"; todavia, sua liberdade não é arbitrária, mas necessária.


Amor de Deus e beatitude

Ora, essa necessidade implica à inteligibilidade integral do real: como todas as coisas existem nele e por ele, Deus torna-se o princípio de inteligibilidade de tudo o que existe. E essa compreensão do real oferece uma alegria intelectual que deve ser relacionada à Deus como a sua causa: dizendo de outra maneira, do conhecimento de Deus e de todas as coisas singulares nasce um amor intelectual de Deus: amor que, para Spinoza, é a salvação mesma (ver o terceiro texto acima). Essa concepção de Deus será utilizada novamente por certos filósofos materialistas do século XVIII, como La Mettrie ou Maupertuis.

Na Alemanha, a briga do panteísmo será em torno da filosofia de Spinoza, de qual no século XIX, Nietzsche se reclamará. Algumas pessoas aproximarão então seu "amor fati" do "amor Dei" espinozista.

- P.S -


Nietzsche, Friedrich (1844 - 1900).

Escritor e filósofo alemão com um estilo flamejante e iconoclasta (Par - delá le bien et le mal, Le Gai Savoir, Humain trop humain, La Généalogie de la morale, Ecce homo, Ainsi parlait Zarathoustra...), ele desenvolveu uma filosofia da vida fundada sobre "o tornar-se" do homem e a vontade de potência. Para ele, a história do pensamento e da moral mostra como a vida se refugiou no erro e em um estado de servidão (principalmente por causa do cristianismo). Por isso sua vontade de "transvaluer" todos os valores "nocivos". Seu "surhomme" anunciado por Zarathoustra é um indivíduo do futuro, após um período de niilismo, em um mundo enfim libertado de tudo o que prejudica a vontade de potência. Como conseqüência da falsificação de seus textos por sua irmã, nazista determinada, esse conceito do "surhomme" foi utilizado pelos ideólogos do III Reich.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Kepler

Não nos perguntamos qual o propósito dos pássaros cantarem, pois o canto é o seu prazer, uma vez que foram criados para cantar.
Similarmente, não devemos perguntar porque a mente humana se inquieta com a extensão dos segredos dos céus... A diversidade do fenômeno da Natureza é tão vasta e os tesouros escondidos nos céus tão ricos, precisamente para que a mente humana nunca tenha falta de alimento.
Johannes Kepler
(1571-1630)

Bem pessoal, como não sou tão graduado quanto os ilustres colegas, vou estar contribuindo aqui no blog com frases de grandes pensadores.
Imagino que assim possamos refletir em constatações da vida feitas por estes gênios.

Força sempre.

terça-feira, 3 de julho de 2007

124 anos do nascimento de Franz Kafka

Não é necessário sair de casa.
Permaneça em sua mesa e ouça.
Não apenas ouça, mas espere.
Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio.
Então o mundo se apresentará desmascarado.
Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés.
Franz Kafka - ★ 03/07/1883 - ✝ 03/06/1924

Hoje vim quebrar meu jejum de postagens aqui para trazer à memória de vocês a data do aniversário de uns dos maiores gênios da literatura moderna.

Clicando no nome dele, acima, você pode ler uma página no Wikipedia dedicada a ele. Também encontrei esse site (em inglês) que traz frases memoráveis dele.

Gosto muito do estilo dele. Me identifico de uma certa maneira com ele. Vocês podem dizer que isso seja algo parecido com o filme "O Número 23", mas depois de alguns anos descobri que eu nasci no dia do aniversário da sua morte. Apesar de não significar nada, parece que me ajudou a querer saber mais sobre ele.

Quero finalizar com uma de suas belas frases:

"O Mal é tudo aquilo que distrai."

Baruch Spinosa


Spinoza é hoje um dos filósofos mais lidos e mais comentados. O polidor de lentes "néerlandais" refletiu sobre a razão e a ciência, a política e a religião, as paixões e o corpo. Inúmeros assuntos que não perderam nada da atualidade deles.


Atualidade

Baruch Spinoza (1632 - 1677) faz parte da atualidade: desde o ano passado, que uma dezena de livros lhe foram consagrados, que exploram os temas mais diversos - o amor, a linguagem, as matemáticas, o debate religioso.... nós poderíamos pensar que essa "moda" está relacionada ao fato dos escritos de Spinoza estarem em 2006 no programa "de l'agrégation " de filosofia, mas essas obras foram redigidas anteriormente. Nós assistimos também a uma eflorescência de colóquios que insistem bem mais na sua atualidade do que no seu classicismo.
Nós temos a impressão que Spinoza está confrontado a todos os temas intelectuais da atualidade, das ciências sociais as ciências cognitivas. Como explicar esse enorme interesse? ainda mais que esse interesse ultrapassa demasiadamente o círculo dos filósofos profissionais.
Que os sociólogos, os economistas, os psicanalistas se interessem a um filósofo do século XVII não é uma coisa ordinária - sobretudo se é para procurar as idéias ou os métodos para suas problemáticas atuais


Tempos conturbados

Nós nos surpreendemos desse fato somente se nós guardamos do filósofo a imagem de um sábio "invariável", pouco preocupado das circunstâncias e da vida real dos homens. É preciso se lembrar que a filosofia de Spinoza se construiu em confrontação com a atualidade - a de seu tempo, mais que não é tão diferente da nossa. Ele foi confrontado a questões vivas que possuem uma forte intensidade nos tempos atuais, e é talvez isso que explique o grande vigor da leitura de seus livros hoje. Ele escreveu sua obra em um país marcado por violentos conflitos entre o Estado e as religiões; ele foi testemunha do desenvolvimento incrível da revolução científica e das resistências que ela suscitou; ele viu as transformações que atingiram os Estados e tentou explicá-las.
Nós podemos então encontrar o princípio de quatro temas que percorrem sua obra e que permitem de compreender a atualidade dela ; a razão, a política, a religião, o corpo.


A razão rainha

A razão, em primeiro lugar. Spinoza escreve no momento da grande transformação do século XVII. Nós descobrimos então que as leis matemáticas explicam o mundo físico, nós esperamos que elas expliquem também os mecanismos do Ser vivo e os "affects" (1 ). Existem limites a esse poder de explicação através a razão, ou ele deve se inclinar diante uma fronteira traçada pela ignorância, pelo acaso, pela providência? De todas as filosofias da idade clássica, o espinozismo é a que recusa da maneira mais firme de dar limites a racionalidade; mais ainda, ele a coloca no centro mesmo de sua interpretação do mundo. Ser, é ter uma causa; é sobretudo ser causa, e quanto mais um ser é real, mais ele tem efeitos ; pensar, é procurar as causas das coisas, e compreender através de qual potência elas podem produzir uma multiplicidade de conseqüências. O real é dessa maneira totalmente inteligível, e o poder de pensar se confunde com o poder de agir. Seus leitores da idade clássica hesitam: o modelo matemático explicaria tudo? Teríamos o direito de aplicá-lo a alma humana, a política, as paixões ?
Nós encontramos as mesmas hesitações hoje: numerosos são os nossos contemporâneos que vêm nos avanços das ciências, ameaças para a humanidade, para as normas admitidas, para a dignidade humana. Certo, Spinoza não falou de clonagem. Mas ele tentou pensar a relação entre o mundo e a razão. As baforadas de irracionalismo que invadem o espaço público atual - tudo isso lembra o asilo da ignorância onde se refugiavam seus contemporâneos.


Nota (1 ) - Affect – Palavra de origem latina (affectus) que retornou ao francês através do alemão. Em psicologia, l'affect é uma disposição afetiva elementar. Na obra de Spinoza, esse conceito de qual ele consagra a terceira parte da "L"Èthique " ("Des affects"), tem uma significação original: ele é a idéia (a consciência) de uma modificação do corpo (affection). Ele pode ser passivo ou ativo: ele torna-se paixão (passio) quando nós só temos uma idéia confusa da causa dessa modificação, ele torna-se ação (actio) assim que nós temos uma idéia clara dessa modificação.
O empréstimo ao vocabulário de Descartes não deve nos desviar: l'affect e suas variações não procedem de uma comparação das idéias; é a própria idéia "que afirma do corpo alguma coisa que envolve efetivamente mais ou menos de realidade antes da modificação".


Paixões políticas e religiosas

Contudo, é preciso confundir a razão com o discurso oficial da competência? Tanto Spinoza desconfia daqueles que querem limitar o direito de conhecer, quanto ele se esforça de distinguir entre esse direito e o discurso que reclama para o Estado e seus chefes o segredo e a ausência de controle, em nome da suposta competência deles, e da ignorância dos governados. Aqui nós encontramos a política. Spinoza refletiu sobre numerosos aspectos da vida na cidade: a identidade nacional, o segredo em que se envolve o poder, a corrupção que ameaça incessantemente as instituições. Mas sobretudo sobre os elementos com os quais nós construímos a política, o que anima os indivíduos, o que lhes faz adorar, e em seguida queimar os chefes e os ideais, o que os faz matar ou morrer por eles algumas vezes: as paixões - e em primeiro a mais violenta de todas, a paixão religiosa. Nesse caso, impossível de falar do Estado sem falar de sua relação com a religião; Qual dos dois dominará o outro? Qual deles ganhará a adesão dos homens? Toda a sua obra é animada por essas interrogações: porquê o funcionamento cotidiano da vida humana provoca necessariamente a superstição, a fé na finalidade, a esperança e o temor diante os sinais que poderiam anunciar o futuro? Ilusão dos fins e espera de sinais são suficientes, haja visto a variedade infinita da imaginação ao relatar a multiplicidade e a força das crenças, inclusive as mais aberrantes. Então nesse caso ainda, nesses tempos onde nos interrogamos sobre o laicismo, devemos nos lembrar que a separação da Igreja e do Estado tem algo de mítico - nós não podemos impedir que os cidadãos sejam ao mesmo tempo os fiéis de uma ou outra religião, e os fundamentos passionais da religião excluem que ela seja facilmente regulada pelas leis. Enfim a questão das paixões é relativa à questão do corpo. Para Spinoza, o indivíduo se define primeiro por seu corpo, e este pela complexidade de sua estrutura e pelas trocas com o exterior. Paradoxo: o que parece ser a última unidade, não é um corpo isolado , é o conjunto de suas necessidades, de seus recursos e de seus poderes - quer dizer de suas relações com seus semelhantes e com a natureza, e a maneira que a constituição de seu organismo permite ou entrava suas relações. Assim, quando Spinoza pensa a origem do Estado, ele o faz, às vezes, como seus contemporâneos, em termos de "contrato social" mas também em termos das trocas do corpo: um território, uma potência, a divisão do trabalho".


“Corpo entre eles"

Nesses dois séculos da idade clássica e do Iluminismo onde se elabora a noção dos direitos do homem, Spinoza apresenta uma singularidade radical: o que constitui para ele o direito natural não é um direito abstrato, é a potência do corpo, quer dizer o sistema de relações do corpo com o que lhe rodeia. A história desse corpo é também a história de seu "corollaire" - a alma ; e numerosos aspectos do espinozismo constituem como uma teoria dispersada da biografia individual.
O indivíduo não é dado de uma vez por todas: ele só é pensável ao ritmo de sua duração, dos eventos que o transformam, das causas que se imprimem na sua complexidade. A vida humana é assim duplamente definida por suas relações com a extensão e por sua escansão no tempo.
Nós vivemos em uma época que descobre novamente a opacidade do Estado e o poder da paixões religiosas. Que se interroga sobre a ciência e sua potência, sobre o direito de controlar seus efeitos. Que se exaspera da opressão dos corpos e se surpreende da emancipação deles. Que se interessa apaixonadamente pela biografia e pela autobiografia, onde ela acredita descobrir a verdade do indivíduo, sem muitas vezes levar em conta o componente imaginário. Inúmeras razões, de reler novamente, Spinoza .

- Pierre - François Moreau, filósofo, professor na Escola normal superior de Lyon (ENSLSH), autor, entre outros, de "Spinoza et le spinozisme (PUF, colle. 3 Que sais-je?", 2003) e "coauteur" de "Lectures de Spinoza " (Ellipses Marketing, 2006).