sábado, 24 de maio de 2008

Ódio ao liberalismo e aos EUA une esquerda latina


O Foro de São Paulo foi criado em 1990 como uma resposta de grupos de esquerda latino-americanos ao fim do comunismo – e agora, ao que tudo indica, está querendo ver seu renascimento. O tema da XIV edição do foro, que começou na quinta-feira, dia 22, e vai até domingo, dia 25, em Montevidéu, no Uruguai, é “A esquerda de América Latina e Caribe no Novo Tempo – A riqueza e a diversidade”. A cúpula do foro está convencida de que a esquerda da região venceu uma etapa – a de encontrar um lugar no mundo depois da derrocada da União Soviética.

Por isso, no documento de convocação para o evento em Montevidéu (que pode ser encontrado no site do PT) fala-se no “relançamento do foro”. O texto diz o seguinte: “Que as organizações integrantes do FSP que estão no governo em nível nacional ou regional façam um esforço para conceituar suas conquistas, coordenar suas ações em diferentes níveis, buscar objetivos comuns e transmitir em diferentes e permanentes formas suas experiências aos que lutam para ascender a funções governamentais.”

Essa diretriz fica mais clara quando se observa o sentimento geral que prevalece nas rodinhas de conversa nos corredores do encontro em Montevidéu. Os participantes estão extasiados com o fato de que as organizações políticas de que fazem parte estão no governo de quase metade dos países da América Latina. O objetivo para eles, agora, é dominar o resto. O assustador nesta meta é o tipo de esquerda que a cúpula do foro prefere ver no poder: a ênfase não está em administrações responsáveis como a da presidente chilena Michelle Bachelet (cujo partido também participa do evento), mas em regimes populistas e estatizantes como o de Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador. Bastante revelador foi o discurso do secretário-geral do PT, José Eduardo Cardozo, na cerimônia de abertura do Foro de São Paulo, na noite de ontem, dia 23. Alguns trechos:

“O neoliberalismo perdeu espaço. Nós avançamos, estamos em outro patamar. O PT quer reafirmar seu compromisso com esse foro. Temos a mais absoluta clareza que nossos adversários tentarão nos desunir. Temos a mais absoluta clareza que nossos adversários ideológicos e políticos tentarão nos desintegrar, porque sabem a força do momento que estamos vivendo. Queremos reafirmar: eles não conseguirão nos desunir. Permaneceremos unidos, combatendo o neoliberalismo.”

“É preciso apoiar o governo Evo Morales, na Bolívia. Esse governo tem pela frente uma difícil jornada no referendo convocatório. E nós temos que estar juntos, lutando pela defesa desse governo. Toda solidariedade e todo apoio ao governo [do paraguaio Fernando] Lugo.”

“Temos que combater com muito rigor as iniciativas criminosas de privatização do petróleo no México. (...) O petróleo é dos mexicanos!”

“A solidariedade a Cuba, meus companheiros, é mais importante do que nunca. Não podemos perder a referência histórica e simbólica que representa Cuba para todos nós.”

O discurso de Cardozo, em sintonia com os dos outros oradores da noite, revela alguns dos principais elementos que definem o foro:

A obsessão com o neoliberalismo Segundo os participantes do foro, a América Latina é o que é hoje – pobre e irrelevante para o resto do mundo – por culpa das políticas de privatizações e de responsabilidade fiscal implementadas na década de 90 e pela ingerência americana nos assuntos internos dos países da região (leia abaixo). O ódio ao neoliberalismo é um recurso cômodo para os ideólogos do foro porque serve para qualquer coisa, mas não vai no cerne da questão. Este seria, na visão do historiador peruano Álvaro Vargas Llosa, o seguinte: as reformas liberais fracassaram na América Latina simplesmente porque foram incompletas, não por estarem equivocadas a priori. Segundo Vargas Llosa, em alguns países, por exemplo, as privatizações foram mal feitas e apenas substituíram o monopólio estatal pelo privado.

O antiamericanismo Para a cúpula do foro, seus verdadeiros adversários não são os partidos de direita, mas os Estados Unidos. A tese é de que, se não fosse pelo desinteresse político que os americanos demonstraram pela região após a queda da União Soviética, a esquerda jamais teria chegado ao poder em muitos países latino-americanos. Os participantes do foro também estão convencidos de que os Estados Unidos continuam sendo uma ameaça e que por isso a esquerda precisa se unir. Disse Carlos Gaviria, ex-candidato à presidência colombiana, em seu discurso na cerimônia de abertura: “Estamos diante do império mais poderoso que a humanidade conheceu”. Na entrevista a VEJA, na quinta-feira, o secretário-executivo do foro Valter Pomar disse que, para fazer frente a esse império, é preciso “integrar a região latino-americana entre si”, em vez de aliar-se (leia-se: assinar tratados comerciais) com os americanos. No documento de convocação, a falecida Alca (Área de Livre Comércio das Américas) é apresentada como uma “nova forma de colonização e predomínio estadunidense de norte a sul do continente”. Por todo o documento há referências críticas aos Estados Unidos. Alguns exemplos: “a extrema periculosidade do Plano Colômbia, que é parte do orçamento federal dos Estados Unidos”, “a agressão de Colômbia a Equador, efetuada com premeditação e aleivosia mediante elementos de alta tecnologia fornecidos pelos Estados Unidos” e “persistentes agressões imperialistas”.

A solidariedade à ditadura comunista cubana – O discurso de encerramento da cerimônia de abertura – e o mais longo, também – foi feito por Fernando Ramírez, secretário de relações internacionais do Partido Comunista cubano. Sua fala foi permeada por gritinhos entusiasmados vindos da platéia e terminou, sob aplausos, com um retumbante “Viva la revolución! Viva el socialismo! Hacia la vitória, siempre!”.

O foro é um espaço de influência do PT na América Latina – O que o PT tem a ver com as privatizações no México, mesmo? Fundador do Foro de São Paulo, o partido brasileiro desde o início o utilizou para ganhar projeção e influência regional. A estrutura do Grupo de Trabalho (uma espécie de cúpula ideológica do foro) reflete isso. Com a palavra, Valter Pomar: “O Foro de São Paulo não é um conjunto orgânico. Como o próprio nome diz, é um foro que se reúne uma vez ao ano. Temos um Grupo de Trabalho composto por partidos de dezesseis países – basicamente aqueles em que, ao longo dos últimos dezoito anos, a esquerda se consolidou mais ou já tinha alguma força antes. A instituição permanente do Foro de São Paulo, portanto, é o Grupo de Trabalho. Os partidos que o compõem mudaram ao longo dos anos, mas o PT e o Partido Comunista cubano sempre fizeram parte. O Grupo de Trabalho se reúne uma vez a cada quatro ou cinco meses. O Grupo de Trabalho, no segundo ou terceiro foro, não me lembro bem, resolveu constituir uma secretaria-executiva, que é ocupada desde o inicio pelo PT. E o PT convencionou que a função deve ficar a cargo do secretário de relações internacionais do partido.”

Os representantes do PT no foro não se preocupam em defender os interesses brasileiros no exterior – A referência a Evo Morales e a Fernando Lugo são claras. Ambos têm como bandeira o nacionalismo energético, contra os interesses brasileiros. O documento de convocação do foro vai além: “A oligarquia de Santa Cruz [na Bolívia] e outros departamentos limítrofes organizam febrilmente um referendo ilegal, de caráter abertamente separatista, que aponta à divisão do país e à perda de sua unidade territorial com o propósito de manter em suas mãos a riqueza em hidrocarbonetos e gás e a grande propriedade latifundiária.” Primeiro, há nesse trecho uma distorção da realidade. O referendo de Santa Cruz, em que ganhou o “sim”, pedia para o departamento uma autonomia administrativa semelhante à que os estados têm no Brasil. Não tem nada a ver com separatismo. Segundo, o texto demonstra o desprezo do foro pelos bem-sucedidos produtores rurais de Santa Cruz, a esmagadora maioria deles brasileiros.

A reunião é um saco de gatos – A preocupação de Cardozo com a desunião dos membros do foro faz sentido: além do ódio irracional ao neoliberalismo, do antiamericanismo e da solidariedade à ditadura cubana, não há muitas outras idéias que unam os participantes do encontro. Há, por exemplo, o caso do Chile, que tem no foro um partido que está no comando do país e outro que lhe faz oposição. O secretário-executivo do Foro de São Paulo, o petista Valter Pomar, chamou a isso de “pluralidade” na entrevista que concedeu a VEJA, no primeiro dia do evento: “Se você me perguntar: o Foro de São Paulo é socialista? Vou dizer: não. O Foro inclui partidos de esquerda, com certeza, e muitos deles são socialistas. Outros são progressistas, que não escrevem o socialismo como tal em sua sigla. A idéia é de nos agruparmos com muita pluralidade, com uma crítica muito forte do neoliberalismo e na busca por uma alternativa.”

Diogo Schelp, de Montevidéu - http://vejaonline.abril.com.br

terça-feira, 20 de maio de 2008

RENE GUENON: VIDA E OBRA


Guénon foi um prodígio precoce. Cedo dominava o grego, latim, inglês, italiano, alemão, espanhol, sânscrito, hebraico, árabe e mais tarde, o chinês, mantendo conversação com seus interlocutores europeus e orientais em suas próprias línguas, para desconcerto de muitos deles, ao constatarem um francês dominar com maestria a língua e o espírito de civilizações distantes.

O mais decisivo em sua formação, sem dúvida, foram os dados doutrinais obtidos pela oralidade diretamente de representantes do hinduísmo (Escola de Shankara), do Islã (tariqah do Sheikh Elish El Kebir, da linha Alkbariana) e do Taoísmo (por intermédio do filho espiritual de Tong Sou Luat, eminente mestre Taoísta).

Guénon desmascarou terminantemente dezenas de impostores, desde os grosseiros aos mais pretensamente refinados, angariando para si, de um lado, a grata surpresa e o agradecimento dos que buscavam o oriente autêntico e, de outro, o ódio e as perseguições de uma maioria, surpreendida em suas falsas bases e artimanhas.

O mais eminente reconhecimento de valor partiu de autoridades orientais. Marco Pallis relata a perfeita ortodoxia de suas exposições, constatada por lamas tibetanos; Ramana Maharshi denominou Guénon como "The Great Sufi" ; os verdadeiros mestres taoístas, mais de uma vez, designaram Guénon como o único ocidental nos últimos séculos a conseguir a apreensão e posterior transmissão do verdadeiro espírito do Taoísmo.

René (Jean-Marie-Joseph) Guénon nasceu em 15 de novembro de 1886 em Blois, França. Filho único do qüinquagenário e arquiteto Jean-Baptiste Guénon e Anna Jolly. De saúde muito frágil para ir à escola, aprendeu as primeiras letras com sua tia, sua preceptora até a idade de 12 anos. Ao fazer os estudos secundários, sua saúde ainda inspirava cuidados extremos. Já nessa época, começou a estudar Filosofia com um especialista dos pré-socráticos – Albert Leclère – e com o cônego Gombault, um tomista exaltado e interessado em fenômenos sobrenaturais. Ainda em 1905, fez uma peregrinação com sua tia ao santuário de Lurdes. Após obter bacharelado em filosofia, Guénon foi recebido na Escola Politécnica e na Escola Normal Superior em Paris. Encetou estudos da Matemática, abandona-os em 1906. Ainda nesse ano, começou a dirigir sua atenção para o ocultismo. Introduziu-se na Escola Hermética dirigida por Papus, pseudônimo do Dr. Encausse. Recebido, ainda, foi na ordem Martinista e em diversas organizações maçônico-ocultistas (Loja Humanidade). Começou, então, o esboço de um romance “A Fronteira do Outro Mundo”.

Em 1908, ao ser nomeado secretário do Congresso Espiritualista e Maçônico, declinou do cargo após o discurso de abertura de Papus. Foi o começo de sua divergência e ruptura com Papus e outros ocultistas em geral por ele qualificados de ‘materialistas’. Ingressou, em seguida, na Loja Tebas praticante do REAA, da Grande Loja da França, frequentando-a até a Primeira Guerra Mundial. Nessa época, estreitou contatos com Albert de Pouvouville, iniciado taoísta; Léon Champrenaud (Abdul-Haqq), iniciado sufista; Théodor Reuss, grão-mestre da OTO e Fabre des Essarts, patriarca da Igreja gnóstica da França.

Em 1909, teve início a publicação de seus primeiros trabalhos escritos. O primeiro foi um relatório da Escola Hermética na Initiation de Papus; o segundo uma polêmica na revista maçônica Acácia a propósito do rito de Memphis e Misraim e, o terceiro, uma reflexão na France Chrétienne Antimaçonnique sob o pseudônimo Le Sphinx. Ao mesmo tempo, tomou a frente de uma enigmática Ordem do Templo renovada que o levou a ser excluído da Ordem Martinista e das organizações controladas por Papus. No final de 1909, ingressando na Igreja Gnóstica de Alexandria, foi sagrado bispo gnóstico sob o nome de Palingenius. Fundou, ainda com esse nome, a revista La Gnose – que circulou até 1912 – na qual foi publicado seu primeiro texto “O Demiurgo”, uma importante parte do “Simbolismo da Cruz”, e a parte essencial do “O Homem e seu Devenir segundo o Vedanta” e “Um Lado Pouco Conhecido da Obra de Dante”.

Em 1912, foi iniciado no sufismo sob o nome de Sheikh Abdel Wàhed Yahia. Catolicamente, com Berthe Loury, casou-se.

Em 1913, Abel Clarin de la Rive, diretor do jornal La France anti-maçonnique, abriu colunas para que Guénon expusesse suas idéias sobre a Maçonaria e ‘o poder oculto’. No jornal, Guénon encontrou Olivier de Frémont, católico anti-semita e anti-maçom, estabelecendo, conjuntamente com L. A. Chabonneau, uma intensa reflexão sobre a questão da Tradição. Desenvolveu com Charles Nicoullaud e Gustave Bord, colaboradores da Revista Internacional das Sociedades Secretas (RISS), uma polêmica em torno da questão dos “Superiores Desconhecidos”. Seu amigo, como ele, filiado à Igreja Gnóstica – Pierre German – recobrou a fé católica em Lurdes e se inscreveram, tal qual o jovem tomista Noèle Maurice-Denis, no curso de Filosofia das Ciências do Prof. Milhaud. Noèle introduziu Guénon no círculo de Jacques Maritain e do Pe. Emile Peillaube S.J. Guénon obteve diploma de estudos superiores em Filosofia com o Mémoire intitulado “Exame das Idéias de Leibniz sobre o Significado do Cálculo Infinitesimal”.

Em 1919, Gonzague Truc, diretor das Edições Bossard, promoveu a introdução dele na Revue Philosophique. Em 1921, Sylvain Lévi recusou conceder-lhe o doutorado em Filosofia pelo seu trabalho “A Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus”. Essa obra, contudo, seria publicada no mesmo ano. Houve a publicação, ainda, de “Teosofismo. História de uma Pseudoreligião”, pela Nouvelle Librairie Nationale, numa coleção dirigida por Jacques Maritain.

Em 1922, estabeleceu amizade com Paul Chacornac, editor da revista Le Voile d’Isis, que perderá pouco a pouco seu caráter ocultista e que, mais tarde, se transformará nos Études Traditionnelles. Ainda nesse ano, teve publicado “O Erro Espírita”. Seu amigo Frans Vreede, conseguiu-lhe um serviço parcial na biblioteca do Centro de Estudos Neerlandeses da Universidade de Paris. Em 1924, como consequência do livro de F. Ossendowski – Bestas, Homens e Deuses – formou-se uma mesa redonda, organizada pela Les Nouvelles Littéraires, sobre o tema de um centro iniciático sagrado em que pontificaram o neo-tomista Rei do Mundo Jacques Maritain; o orientalista René Grousset; o editor Frédéric Lefèvre; o filósofo Ferdiand Ossendowski e o hinduísta René Guénon. Surgiu através da Payot, o livro “Oriente e Ocidente”, no qual um capítulo consagrava-se às condições da reconstituição de uma verdadeira elite.

Através da Regnabit, revista universal do Sagrado Coração do Pe. Félix Anizan e de L. A. Charbonneau-Lassay, descobriu Guénon, bem próximo dele, a sobrevivência de um grupo hermetista cristão. O editor Charles Bosse publicou “O Esoterismo de Dante”, tratando em um dos capítulos de uma sociedade esotérico-religiosa: a Fede Santa. Teve, ainda, seu livro, editado pela Brossard, “O Homen e Seu Devenir Segundo o Vedanta”. Fez-se pronunciar, na Sorbone, uma conferência sobre “A Metafísica Oriental”.

Em 1926, publicou na Regnabit o seu “Terra Santa e Coração do Mundo”. Tornou-se colaborador de diversas revistas: Voile d’Isis, Vers l’Unité (órgão da nova direita), La Revue Bleu, Vient de Paraître (de inspiração católica), Au Christ Roi etc.

O ano de 1927 viu aparecer dois de seus livros: “O Rei do Mundo” e “A Crise do Mundo Moderno”. Abondonando a revista Regnabit, retomou a polêmica com a Revista Internacional das Sociedades Secretas. No ano seguinte, assistiu à morte de sua esposa e, alguns meses depois, de sua tia, que tanta influência exerceu na sua vida. Essas duas mulheres foram substituídas, em 1929, pela viúva riquíssima – Madame Dina, conhecida num serão na Livraria Chacornac. Nesse mesmo ano, publicou pela Vrin “Autoridade Espiritual e Poder Temporal” e uma plaquete sobre “São Bernardo”.

Viajou para o Cairo em 1930, em companhia de Mme. Dina à procura de textos sufis. Começou a freqüentar, também, a Universidade de El Azhar. À época, assistiu-se a uma série de artigos na Voile d’Isis tratando do esoterismo islâmico. Adotou o nome árabe de Sheikh Abdel Wahêd Yahia travando contato com círculos esotéricos no Cairo. Casou-se, em 1934, com Fátima Hanem, filha caçula do xeique Mohammed Ibrahim, indo morar numa espécie de subúrbio afavelado chamado Doki, a oeste do Cairo, em um imóvel que lhe foi doado pelo seu admirador John Levy. Durante a guerra, manteve intensa correspondência com Julius Evola e diversos maçons franceses. Os ‘guenonianos’ na França, fundaram a Loja da Grande Tríade do REAA na Grande Loja de França.

Em 1944, nasceu sua primeira filha Khadija; em 46, instalou-se definitivamente com sua família numa casa no centro do Cairo; em 47, nasceu sua segunda filha Leila; e, em 48, obteve nacionalidade egípcia, mas sua saúde começou a dar sinais inquietantes; em 49, viu nascer seu primeiro filho homem Ahmed (o segundo – Abdel Wahêd -, nascerá após sua morte em 1951).

No ano de 1950, sua saúde estava seriamente abalada. Sua morte ocorreu em 7 de janeiro de 1951 às 23 horas. Suas últimas palabras foram a invocação do nome de Alá, o ‘nafass khalass’ ou seja, ‘a alma se vai’, e manifestou o o último desejo para sua mulher de que o seu gabinete de trabalho fosse mantido intacto. As orações fúnebres foram executadas na mesquita Seyidna-Hussein e foi enterrado no túmulo da família Ibrahim.

Cronologia de suas Obras

a) Obras em vida

1909 – La Frontière de l’Autre Monde (A Fronteira do Outro Mundo).

1921 – Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues (Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus).

1921 – Le Theosophisme, histoire d’une pseudo-religion (O Teosofismo, História de uma Pseudo-Religião).

1923 – L’Erreur spirite (Erro do Espiritismo).

1924 – Orient et Occident (Oriente e Ocidente).

1925 – L’Homme et son devenir selon le Vêdânta (O Homem e seu Devenir segundo o Vedanta).

1925 – L’ésotérisme de Dante (O Esoterismo de Dante).

1927 – Le roi du monde (O Rei do Mundo).

1927 – La crise du monde moderne (A Crise do Mundo Moderno).

1929 – Autorité spirituelle et pouvoir temporel (Autoridade Espiritual e Poder Temporal).

1929 – Saint Bernard (São Bernardo).

1931 – Le Symbolisme de la Croix (O Simbolismo da Cruz).

1932 – Les états multiple de l’être (Os Estados Múltiplos do Ser).

1939 – La Métaphysique orientale (A Metafísica Oriental).

1945 – Le règne de la quantité et les signes des temps (O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos).

1946 – Les principes des calcul infinitésimal (O Princípios do Cálculo Infinitesimal).

1946 – La Grande Triade (A Grande Tríade).

1946 – Aperçus sur l’Initiation (Considerações sobre a Iniciação)

b) Obras Póstumas

1952 - Initiation et Réalisation spirituelle (Iniciação e Realização Espiritual), Paris, Éditions traditionnelles, avant-propos de Jean Reyor.

1954 - Aperçus sur l’ésotérisme chrétien,(Considerações sobre o Esoterismo Cristão) Paris, Éditions traditionnelles, avant- propos de Jean Reyor.

1962 - Symboles fondamentaux de la science sacrée (Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada), Paris, Gallimard, N.R.F. "Tradition", introduction de Michel Vâlsan.

1964 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage (Estudos sobre a Franco-Maçonaria e a Compagnonnage) , 2 vol.

1968 - Études sur l’hindouisme (Estudos sobre o Hinduísmo), Paris, Éditions traditionnelles.

1970 - Formes traditionnelles et cycles cosmiques (Formas Tradicionais e Ciclos Cósmicos), Paris, Gallimard, N.R.F., avant-propos de Roger Maridort.

1973 – Comptes Rendues (Resenha), de artigos surgidos nas revistas Le Voile d’Isis e Études Traditionnelles.

1973 - Aperçus sur l’ésotérisme islamique et le taoïsme (Considerações sobre o Esoterismo Islâmico e o Taoísmo), Paris, Gallimard, N.R.F., Les Essais, avant-propos de Roger Maridort. Resenhas.

1976 – Mélanges (Misturas).

1976 – Études sur l’Hindouisme (Estudos sobre o Hinduísmo).

WILLIAM ALMEIDA DE CARVALHO .´. www.freemasons-freemasonry.com


quarta-feira, 14 de maio de 2008

Coménio (1592-1670)



João Amós Komensky nasceu na localidade mora morava de Uhersky Brod no dia 28 de Março de 1592 e faleceu em Naarden, na Holanda, a 15 de Novembro de 1670.

Ao longo dos 78 anos que medeiam entre estas duas datas foi protagonista de uma movimentada existência terrena pontuada por sucessivos reveses da sorte que o não impediram de produzir uma dilatada e fecunda obra que se traduz em quase centena e meia de títulos.

Considerando uma das grandes figuras da história checa (ou, mais correctamente, da Boémia e da Morávia), Komensky, que cedo latinizou o seu nome para Comenius (normalmente aportuguesado para Coménio) merece ser tido como um dos grandes vultos do pensamento universal.

A nova Pedagogia por ele desenvolvida, absolutamente revolucionária para a época, solicita a compreensão da criança, que deve descobrir por si própria o seu conhecimento.

Encorajando quer o ensino ao ar livre, quer a prática de jogos colectivos, o processo educativo por ele preconizado não se limita à escola e à família, sendo solidário de toda a vida social.

Coménio considera, com efeito, que a Educação não compete exclusivamente a um ou dois quadros restritos, cabendo pelo contrário a sua promoção à sociedade tomada como um todo. Reclama, deste modo, a instrução para todos, sem levar em conta o nascimento do indivíduo.

Ao colocar os dois sexos em pé de igualdade abalou, por outro lado, as estruturas mentais da época. Por todos estes motivos, as concepções de Coménio influenciaram profundamente os filósofos e os enciclopedistas do século XVIII e a UNESCO prestou-lhe a devida homenagem ao promover, em 1958, a publicação da sua obra completa.

A sua Didactica Magna valeu-lhe os epítetos de Bacon da Pedagogia e de Galileu da Educação. Animado pelo objectivo de mostrar que é possível ensinar tudo a todos, inventou um método inovador de ensino quer do Latim, quer das línguas vivas que, numa segunda fase, lançou abundantemente recurso à ilustração, motivo pelo qual muitos o consideram igualmente um precursor da banda desenhada.

O seu método de ensino da língua latina, então ainda o idioma franco da comunidade científica e cultural, é também um pioneiro das modernas técnicas de transmissão de conhecimentos linguísticos "sem mestre".

A sua paixão, neste campo, eram, porém, as línguas vivas, cujas potencialidades soube devidamente explorar a partir da devotada análise da sua língua materna, o checo, à qual dedicou um raiado que é simultaneamente uma gramática e um livro de estilo.

Partindo do princípio de que todos os ensinamentos e todas as pesquisas devem confluir num único ponto transcendental, sendo portanto necessário descobrir a cada passo a unidade essencial que desse todo emana em cada uma das suas partes.

Coménio, por vezes considerado ainda um precursor do Estruturalismo, reuniu o da maioria das suas concepções na Pansofia, obra e doutrina que tenta estabelecer uma metodologia conciliadora das diversas correntes religiosas, assim como das ciências e das técnicas.

Às ideias pedagógicas de Coménio não são alheios os estudos interiores de Francis Bacon e de Campanella, que no entanto refundiu aos quais imprimiu a marca da sua originalidade.

Membro do grupo dos Irmãos Morávios, que seguia os postulados de João Huss, Coménio só aos 16 anos principiou os seus estudos, tendo frequentado a Universidade de Herbon (Nassau), onde estudou Teologia e se apaixonou pelas línguas vivas, cedo elaborando um manual de Pedagogia e um dicionário de Latim-Checo.

Quando era tutor-mestre da escola de Fulnek, na Morávia, eclodiu a Guerra dos .trinta Anos, em consequência de cujas razias a sua casa foi pilhada e incendiada e a mulher e os filhos assassinados.

Principiou então a sua errância por casas senhoriais e por colégios da Europa Central e Ocidental e ainda da Grã-Bretanha e da escandinávia, ao longo da qual foi dando corpo à sua vasta obra.

Em França, Richelieu interessou-se pela sua actividade e convidou-o para fundar um Colégio Pansófico, projecto que se gorou com a morte do cardeal.

Conheceu pessoalmente Descartes e tendo-se encontrado, na Holanda, com o filho do governador da então colónia britânica de Massachusetts e mais tarde governador do Connecticut, ter-lhe-á sido oferecido o reitorado da nóvel Universidade de Havard.

No plano das relações internacionais, Coménio defendia a criação de um Parlamento Mundial com a função de derimir e evitar os conflitos, funcionando a par de outras instituições de apoio.

O plano de uma reforma universal deveria, no seu entender, ser preparado pelos povos cristãos, não lhe sendo alheia a unificação das religiões cristã e judaica.

Múltiplos são, pois, os motivos pelos quais Cornénio deve ser recordado e homenageado na data do quarto centenário do seu nascimento (1992).

Mª B. F.

O genial Galileu Galilei

Nasceu em Pisa em 15 de Fevereiro de 1564 e morreu em Florença a 8 de Janeiro de 1642 com cerca de 78 anos.

Quando os amigos e seguidores de Galileu quiseram erigir um monumento sobre o seu túmulo, Urbano VII disse ao embaixador da Toscana que seria um mau exemplo para o mundo, uma vez que o morto “tinha dado origem ao maior escândalo de toda a cristandade”.

O heliocentrismo

Os autores medievais defendiam que a Terra era redonda, aliás a ideia era muito antiga e Magalhães partira de Sanlúcar de Barrameda em 20 de Setembro de 1519 para a viagem de circumnavegação do globo com cinco navios, tendo uma das naus completado o trajecto, chegando a Sevilha em 6 de Setembro de 1522 fornecendo a prova final se alguma prova faltava.

Dizia Magalhães: “A Igreja diz que a Terra é achatada, mas sei que ela é redonda, porque vi a sombra na Lua, e tenho mais fé numa sombra do que na igreja”.

Cláudio Ptolomeu de Alexandria, no século II da era cristã, formulou no “Almagesto” sua teoria de que: a Terra se apresentava imóvel e rodeada de esferas transparentes de cristal que giravam a sua volta e a que se subordinavam o Sol e os planetas.

Ptolomeu relacionou as estrelas, registrou seus brilhos, estabeleceu normas de previsão de eclipses, tentou descrever o movimento dos planetas contra o fundo praticamente imóvel das constelações, acreditou que a Terra fosse o centro do universo e que todos os corpos celestes a rodeavam.

Esta teoria foi adoptada por S. Tomás de Aquino no século XIII, e esta concepção do cosmos foi seguida até ao século XVI.

A Igreja, aceitava o geocentrismo como fora estruturado por Aristóteles e Ptolomeu. Esse sistema cosmológico ensinava que a Terra estava parada no centro do universo e os outros corpos orbitavam em círculos concêntricos ao seu redor.

A Igreja Católica aceitava o modelo porque se adequava com a observação directa do firmamento e com os textos das escrituras.

Essa visão geocêntrica tradicional foi abalada por Nicolau Copérnico, que em 1514 começou a divulgar um modelo matemático em que a Terra e os outros corpos celestes giravam ao redor do Sol, tese que ficou conhecida como heliocentrismo.

Ptolomeu já havia considerado a possibilidade de um modelo heliocêntrico, porém o rejeitou devido às teorias de Aristóteles, segundo as quais a Terra não poderia ter uma rotação violenta.

Aliás Aristóteles afirmava que se a terra se movesse um objecto lançado do cimo de um mastro nunca podia cair no seu sopé.

A teoria era de facto muito revolucionária, tanto que Copérnico deixou escrito: “quando dediquei algum tempo à ideia, o meu receio de ser desprezado pela sua novidade e o aparente contra-senso, quase me fez largar a obra feita”.

Refere Martinho Lutero a propósito das ideias de Copérnico: fala-se para aí de uma novo astrónomo que quer provar que a terra se move e anda à volta em vez do céu, o sol e a lua, como se alguém que se movesse numa carruagem ou navio pretendesse que estava imóvel, enquanto a terra e as árvores se moviam. Mas é assim que tudo vai nos nossos dias: quando um homem quer parecer inteligente é preciso que invente qualquer coisa de especial, e o modo como o consegue deve parecer o melhor! O louco quer virar toda a arte da astronomia da cabeça para os pés. E no entanto como nos dizem as sagradas escrituras foi Josué quem mandou parar o sol e não a terra.

O percurso de Galileu

Se existe uma figura da ciência bem disposta, mulherenga e que adorava os prazeres de uma mesa bem regada, essa figura era por certo Galileu Galilei.

Acresce que aliava uma impressionante inteligência e originalidade a um discurso brilhante, possuía uma personalidade muito irreverente e tinha alcunha do “brigão”. Não obstante, no decurso da vida granjeou muitas simpatias e apoios, tanto de religiosos, incluindo o Cardeal Maffeo Barberini futuro papa Urbano VIII como do meio académico: Só um impacto inevitavelmente destrutivo com a ciência oficial, num mundo institucional em rotura e conflito com as tendências protestantes inverteria a situação, e empurraram o génio para um julgamento que acabou por ser o maior foguetório publicitário de uma tese que a igreja pretendia sufocar.

Galileu saiu da universidade com 21 anos sem diploma, porém passados 4 anos mercê da sua fama foi convidado para orientar a cadeira de matemática da Universidade de Pisa.

Pisa

Em 1589, com o apoio de Guidobaldo del Monte, matemático e admirador da sua obra, Galileu é admitido para leccionar matemática na Universidade de Pisa. Inicia aí o estudo do movimento do pêndulo tendo determinado que o seu período não depende da massa, mas apenas do comprimento do fio. Foi o primeiro a pensar que este fenómeno permitiria fazer relógios muito mais precisos. Também em Pisa realizou as suas famosas experiências de queda de corpos em planos inclinados. Nestas demonstra que a velocidade de caída não depende do peso. Em 1590 publica o pequeno tratado “De motu”, sobre o movimento dos corpos materiais.

Pádua

Em 1592, ainda devido à influência de Guidobaldo del Monte, consegue a cátedra de matemática na Universidade de Pádua, onde passaria os 18 anos seguintes. Nesta universidade ensinou geometria, mecânica e astronomia. Por volta do ano 1597 dedica-se ao estudo de instrumentos de medida, inventa o chamado termómetro de Galileu e aperfeiçoa um compasso para uso militar.

Neste período Galileu fez descobertas importantes, das quais se destacam as melhorias significativas do telescópio refractor e a sua utilização em astronomia.

Tendo conhecimento da construção do primeiro telescópio, na Holanda a partir de um esboço construiu os seus próprios modelos que foi melhorando até conseguir os melhores telescópios do seu tempo. Ele utiliza o telescópio sobretudo para fazer observações astronómicas e descobre assim que a Via Láctea é composta de incontáveis estrelas, descobre ainda os satélites de Júpiter, as montanhas e crateras da Lua. Todas essas descobertas foram publicadas no livro “Mensageiro das estrelas” em 1610 com apenas 32 anos.

Foi a observação dos satélites de Júpiter, que o levaram definitivamente a defender o sistema heliocêntrico de Copérnico.

O impacto das descobertas astronómicas de Galileu foi imediato, devido à publicação do “Mensageiro das Estrelas”, com o nome latino de Sidereus Nuncius.

Foi nomeado matemático e filósofo do Grão-Duque. Nas suas observações estuda as fases de Vénus, que utiliza como uma prova mais do sistema heliocêntrico.

Em 1611 foi convocado a Roma onde apresentou as suas descobertas ao Colégio Romano dos Jesuítas, onde se encontrava o futuro Papa Urbano VIII e o cardeal Roberto Bellarmino, que reconhece as suas descobertas. No mesmo ano acede à Academia dei Lincei um grupo de investigação heterodoxo e vanguardista.

Abandona então Pádua e vai viver para Florença. Em 1614 estuda métodos para determinar o peso do ar, descobrindo que pesa pouco, mas não zero como se pensava até então.

Entre 1613 e 1615 escreve as famosas cartas copérnicas dirigidas a Benedetto Castelli, Pietro Dini e Cristina di Lorena. Nestas cartas Galileu descreve as suas ideias inovadoras, que geram muito escândalo nos meios conservadores, em que circulam apesar de nunca ter sido publicadas. As passagens mais polémicas são aquelas em que transcreve alguns passos das Escrituras que deviam ser interpretados à luz do sistema heliocêntrico, para o qual Galileu não tinha ainda provas científicas totalmente conclusivas.

Inquirido pela inquisição diz o padre Cassini sobre Galileu: que ouviu que este afirmava que Deus não é substância mas contingência, seja, que ri e que chora como qualquer humano, e que os milagres dos Santos não são verdadeiros milagres, e por fim, que sustentava a estabilidade do sol e o movimento da terra, por querer interpretar as Sagradas Escrituras contra o senso comum dos santos padres.

Galileu teve em 1616 oportunidade de defender as suas ideias perante o Tribunal do Santo Ofício dirigido por Roberto Bellarmino, que decidiu não haver provas suficientes para concluir que a Terra se movia e que por isso admoestou Galileu a abandonar a teoria heliocêntrica excepto como ferramenta matemática conveniente para descrever o movimento dos corpos celestes.

Como Galileu persistisse nas suas ideias foi então proibido de as divulgar. O Tribunal do Santo Ofício pronunciou-se então pela primeira vez sobre a Teoria Heliocêntrica, publicando o celebre decreto de 1616, declarando que a afirmação de que o Sol é o centro imóvel do Universo era herética e que a de que a terra se move estava “teologicamente” errada.

O livro de Copérnico e outros sobre o mesmo tema, foi incluído no índice de livros proibidos.

Foi proibido falar do heliocentrismo como realidade física, mas era permitido referir-se a este como hipótese matemática, considerando a necessidade de explicar fenómenos que não se encaixavam nos esquemas de Arquimedes e Ptolomeu.

Apesar das admoestações, encorajado pela entrada em funções em 1623 do novo Papa Urbano VIII, seu amigo pessoal e um espírito mais progressivo e interessado nas ciências do que o seu predecessor, publicou nesse mesmo ano o “O Analisador” que lhe foi dedicado.

O novo livro destinava-se à física aristotélica e a estabelecer a matemática como fundamento das ciências exactas. Nele coloca em causa muitas ideias de Aristóteles sobre movimento, entre elas a de que os corpos pesados caem mais rápido que os leves.

O livro também dava resposta ao modelo defendido pelo jesuíta Orazio Grassi segundo o qual a Terra estava fixa no centro do Universo, mas os planetas e outros astros giravam em torno do Sol, que por sua vez girava em torno da Terra.

A acção de Urbano VIII

Urbano VIII que tinha sido testemunha de defesa de Galileu no processo de 1616 contra o modelo Heliocêntrico sentiu o peso esmagador da cúria, não teve coragem de recuar e manteve o decreto condenatório.

Para evitar um confronto com Galileu que ganhava um crescente prestigio no mundo académico, recebeu o cientista no Vaticano em seis audiências, oferecendo-lhe honrarias, dinheiro e recomendações.

Para contornar a situação, encoraja Galileu a continuar os seus estudos sobre o tema heliocêntrico, mas sempre como de uma hipótese matemática útil, porque simplificava os cálculos das órbitas dos astros.

Em 1618 tinha iniciado a guerra dos 30 anos, a guerra da contra-reforma entre Católicos e Luteranos, uma guerra que mergulhou toda a Europa num esforço para se contarem lanças onde o rigor ideológico tinha um papel fundamental.

É neste contexto confuso e socialmente pervertido que Galileu escreve o “Diálogo sobre os dois grandes sistemas do universo” completado em 1630 e publicado em 1632, onde voltou a defender o sistema heliocêntrico e a utilizar como prova, a sua teoria das marés, embora incorrecta.

É um diálogo entre três personagens, Salviati, que defende o heliocentrismo, Simplício, que defende o geocentrismo e é um pouco tonto e Sagredo um personagem neutro, mas que termina por concordar com Salviati.

Esta obra foi fulcral no processo da Inquisição contra Galileu. O Papa tinha sugerido a Galileu que escrevesse um livro em que os dois pontos de vista, o heliocentrimo e o geocentrismo fossem defendidos em igualdade de condições e onde desenvolveria as suas opiniões pessoais, aceitando por principio imprimi-lo.

Em 1630 terminada a obra, Galileu viaja a Roma para apresentá-la pessoalmente ao Papa. Este estava muito ocupado com a reforma protestante, o clima internacional era muito bravio e contrário à unidade da igreja, fez uma leitura breve e entrega o livro aos censores do Vaticano para avaliarem se não violava o decreto de 1616.

Os censores eram criaturas ignorantes sobre o tema, bisonhas e enfeudadas a catecismos, incapazes de produzir qualquer opinião crítica pelo que foram adiando a apreciação.

Galileu aproveitando a confusão e ignorância do colégio censório, conseguiu a “concessão do Imprimitur”, e publicou a obra em 1632, com pequenas alterações do texto, onde acentuava ser a teoria coperniana uma hipótese matemática.

O Processo final

Quando Urbano VIII fez uma leitura cuidada concluiu que a teoria coperniana não era apresentada como uma hipótese, mas pelo contrário toda a obra tratava de demonstrar a sua efectiva realidade. Para cúmulo, Galileu punha na boca do tolo Simplício palavras do próprio Papa, apresentando-as como a opinião de uma “pessoa erudita e eminentíssima”. O Papa logo suspeitou que a personagem do pacóvio era uma caricatura dele próprio, e sentiu-se traído.

Galileu perdeu assim o mais poderoso dos seus aliados. Galileu era um cristão fervoroso, mas e como já se referiu tinha um temperamento conflituoso e viveu numa época atribulada na qual a Igreja Católica endurecia a sua doutrina para fazer frente à reforma protestante.

O Papa sentiu que a aceitação do modelo Heliocêntrico como mera ferramenta tinha sido ultrapassada e convocou Galileu com quase 70 anos a Roma, para ser julgado, apesar de este se encontrar bastante doente.

Disseram ao papa que Galileu se encontrava em grandes dificuldades físicas ao que este respondeu “que viesse de liteira com toda a comodidade”.

Mudaram-se os tempos e o Grão-Duque de Florença protector de Galileu nada pode fazer para impedir a sua presença em Roma.

Galileu consegue ainda autorização do inquisidor de Florença para várias prorrogações mediante a apresentação de inúmeros atestados médicos, mas a pressão do papado é muito forte e é obrigado a partir para Roma a 20 de Janeiro de 1633.

Galileu chegou a Roma a 13 de Fevereiro de 1633 após uma atribulada viagem devido à peste que grassava na região.

Conseguiu subtrair-se às celas da inquisição e fica instalado na casa do embaixador de Florença, o que demonstra o temor que a própria Igreja tinha do processo considerando o seu enorme prestígio académico em todo o mundo dito civilizado.

Quando em 12 de Abril de 1633 se apresenta ao tribunal do santo ofício fica alojado nos aposentos do Ministério Público, na altura designado por fiscal.

Em julgamento Galileu é confrontado com o decreto proibicionista de 1616 que lhe foi notificado e determinava que as opiniões de Copérnico não se podiam sustentar ou defender.

O julgamento foi longo e atribulado, Galileu defendeu-se de forma sagaz argumentando que a teoria de Copérnico servia apenas para explicar o inexplicável na teoria geocêntrica, funcionando como mera hipótese matemática, mas a cáfila dominicana e jesuítica exigiu uma condenação, um exemplo.

Os historiadores afirmam contudo que a igreja receosa negociou com o Grão-Ducado da Toscânia a sentença, uma sentença branda e a sequência dos acontecimentos parecem dar razão a esta tese.

No dia 22 de Junho de 1633 um homem de 70 anos, um cientista genial e universalmente conhecido, é conduzido para a leitura da sentença, em cima da mula da inquisição com as vestes brancas de penitente, até ao grupo de carcomidos cardeais, que na grande sala do convento dominicano de Santa Maria no centro de Roma, formam o tribunal do Santo Ofício.

No abstruso julgamento, é ditada a sentença. Sendo que tu Galileu, filho de Vincenzo Galilei, florentino, da idade de 70 anos, foste denunciado neste Santo Ofício, por teres como verdadeira a falsa doutrina, ensinada por alguns, de que o sol é o centro do mundo e está imóvel, e que a terra se move. Tens disciplos aos quais ensinavas a mesma doutrina, tiveste correspondência com matemáticos da Germânia e destes à estampa algumas cartas intituladas “as manchas solares” nas quais apresentavas a mesma doutrina como verdadeira; às objecções que então te foram feitas, tiradas das Sagradas Escrituras respondeste glosando à tua maneira.

Por fim, no ano findo, lançaste um livro “diálogo dos sistemas Ptolemaico e Coperniano” e com a impressão de tal livro mais se espalhou a falsa opinião “do movimento da Terra e da estabilidade do Sol.

Galileu envergando a humilhante camisa branca dos penitentes teve de escutar imóvel, ajoelhado, a longa sentença. Considerando que Galileu não foi completamente sincero ao abjurar das falsas doutrinas, o tribunal invocando o Santíssimo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua glorissima Mãe sempre Virgem Maria, sentenciou-o: a cárcere formal no Santo Ofício, a arbítrio da congregação, e como sentença salutar, dizer durante três anos uma vez por semana os sete Salmos da penitência.

Por édito público foi ordenado a proibição do livro dos “diálogos”. Em 22 de Junho de 1633 o Sacro Tribunal da Inquisição havia portanto decidido que a terra estava imóvel, que era o centro do universo, a igreja de Roma o centro da terra e o Vaticano o centro da igreja. Estava assim decidido e firmado por sentença teológica a verdade astronómica e sociológica.

A prisão de Galileu tornou-se o grande exemplo da “luta entre fé e ciência”. Os livros de Galileu foram incluídos no Índex, censurados e proibidos, mas foram publicados nos Países Baixos, onde o protestantismo tinha já substituído o catolicismo.

Reza a lenda que, ao sair do tribunal após sua condenação, disse uma frase célebre: “Eppur si muove!”, ou seja, “contudo, ela se move”, referindo-se à Terra.

Antecipando as consequências o Papa comuta-lhe dois dias depois a pena de prisão passando ao confinamento, primeiro no Palácio do Embaixador do Grão-duque da Toscana em Roma, depois na casa do arcebispo Piccolomini em Sena e mais tarde na sua própria casa de campo em Arcetri.

Em 1638 quando já estava completamente cego publicou na Holanda “Discorsi e Dimostrazioni Matematiche Intorno a Due Nuove Scienze em Leiden”, a sua obra mais importante. Nela discute as leis do movimento e a estrutura da matéria.

Galileo Galilei morre em Arcetri rodeado pela sua filha Maria Celeste e os seus descipulos. É enterrado na Basílica de Santa Croce em Florença, onde também se encontram Machiavelli e Michelangelo.

No decorrer dos séculos a Igreja vai rever as suas posições no confronto com Galileu. Em 1846 são removidas todas as obras que apoiam o sistema coperniano da versão revista do Índex. Em 1992, mais de três séculos passados da sua condenação, é iniciada a revisão do seu processo que decide pela sua absolvição em 1999.

Mas a questão não está completamente digerida, em 1990 O actual Papa, o Cardeal Ratzinger citou Feyerabend para dizer que “a igreja foi muito mais fiel à razão que o próprio Galileu”, e também considerou as consequências negativas éticas e sociais da doutrina de Galileu.

Acrescentou que o veredicto da Inquisição contra Galileu foi racional e justo. Cientificamente, Galileu devia ter esperado por mais evidências antes de defender com tanto afinco o modelo de Copérnico. Cientificamente, isso justificava que o revisor do seu primeiro trabalho lhe pedisse que apresentasse mais dados.

Diga-se porém, que não há nada de racional, científico ou sequer minimamente aceitável em torturar julgar e enclausurar Galileu pelas suas ideias.

É isto que Ratzinger e os Católicos que o defendem não referem, mas importa sublinhar, a Igreja Católica tinha o direito de discordar de Galileu mas não tinha o direito de o prender e maltratar.

Como já foi mencionado, Galileu viveu uma época atribulada. Durante a Idade Média, muitos teólogos já haviam reinterpretado as escrituras de forma relativamente livre sem que ocorresse nenhum incidente, mas depois do Concílio de Trento, o concílio da contra-reforma, iniciado por Paulo III em 1545 e que durou até 1563 a Igreja passou a considerar esse tipo de comportamento inaceitável. A tese heliocêntrica exigia, portanto, que a Igreja reinterpretasse certas passagens da bíblia exactamente no momento em que ela estava menos disposta a fazê-lo. Galileu acabou condenado e a doutrina da Igreja permaneceu por muito tempo fiel ao geocentrismo.

A importância de Galileu

Foi a persistente e corajosa cruzada de Galileu que desacreditou o sistema Aristotélico e Ptolemaico e precipitou o divórcio entre a ciência e a fé.

Seja qual for a leitura do processo, foi de facto a obsessiva e ruidosa opção de Galileu ao defender a teoria de Copérnico que fragilizou os alicerces da ciência do regime, submetido a uma exegese extremada e iniciou os alicerces da moderna ciência firmada na observação, medição e experimentação.

O grande responsável por esta “genial e corajosa rotura epistemológica” foi Galileu, inscrevendo uma linguagem eminentemente matemática em um universo que, a partir dessa época, passa a perder seus atributos míticos, mágicos, naturalistas ou teológicos.

Galileu foi o pai da ciência moderna, assim como seu grande inspirador, magistralmente uniu o raciocínio matemático à experiência.

O conhecimento antigo era elaborado através de uma abstracção teórica sobre como devia ser o mundo. As leis eram retiradas do modelo sintonizado com as elevadas exegeses teológicas, admitindo-se poderem ser discordantes das realidades observadas, considerando que o mundo é imperfeito.

Com Galileu o conhecimento começou a ser construído ao contrário, com base na observação e na experimentação.

O método científico moderno nasceu basicamente com Galileu e ajustou-se com as contribuições de Bacon e Descartes, e não esquecendo um vasto corpo de pensadores manteve-se até finais do século XIX. Einstein declarou Galileu como o pai da física moderna.

Galileu estabelece o diálogo experimental como o diálogo da razão com a realidade, do homem com a natureza e tomou como pressuposto que os fenómenos da natureza se comportavam segundo princípios que estabeleciam relações quantitativas entre eles. Os movimentos dos corpos eram determinados por relações quantitativas numericamente determinadas.

Galileu foi assim um marco não só pelas suas descobertas mas pelo processo para a construção do conhecimento científico. Se quisermos adoptar um novo conceito diria que instituiu um novo paradigma.

Notas sobre modernas concepções: Só nos finais do século XIX se começou a esboçar novas e mais arrojadas explicações da evolução da ciência negando as continuidades do processo de conhecimento, aliás o entendimento destas modernas concepções iluminam o que foi a difícil e corajosa acção dos pensadores que entraram em rotura com os conhecimentos oficiais.

No século XX, com o advento da mecânica quântica, da teoria da relatividade de Einstein e outras descobertas importantes da física, a característica mecanicista e determinista começa a ceder a uma visão mais livre e criativa.

Einstein, contrariando a objectividade pura, empregou sensibilidade e imaginação para construir as suas teorias:

Mais que uma simples descrição, a ciência deve ser a proposta de interpretação da realidade.
O método científico não deve ser dogmático, mas compreendido como a descrição e a discussão dos critérios básicos utilizados no processo de investigação científica.

Com base nessas premissas, é proposto o método hipotético-dedutivo. Enquanto o método indutivista identificava factos a serem investigados, o novo procedimento busca problemas de investigação que surgem da dúvida; uma questão que não encontra resposta no conhecimento disponível. As soluções elaboradas representam um modelo hipotético ideal, e jamais um espelho fiel da realidade.

Embora não haja lógica para o contexto de descoberta, deve haver para a validação. Popper (1975) colocou a importância de submeter as hipóteses a condições de falseabilidade através do método crítico. É imprescindível, dessa forma, à pesquisa possuir um conteúdo directamente empírico que possibilite a observação e a testagem. E, ainda, dentro da comunidade científica, a hipótese deve ser submetida a uma discussão intersubjectiva.

Na concepção contemporânea, em suma, o dogmatismo e o cientifismo da ciência moderna foram substituídos pela tentativa de se construir uma representação consciente e não-arbitrária da realidade. A produção de conhecimento passa obrigatoriamente pela investigação constante.

A única verdade absoluta oferecida pela ciência é a de que os seus produtos são passíveis de alteração.

Gaston Bachelard, que viveu entre 1884 e 1962, foi um pensador original, foi funcionário dos correios e professor de física antes de obter uma cátedra na universidade e exerceu uma enorme influência sobre os pensadores contemporâneos através do ensino na Faculdade de Letras de Dijon, de 1930 a 1940 e depois na Sorbonne.

A revolução que se produziu nas ciências fundamentais no fim do século XIX e princípios do século XX conduziu segundo Bachelard, a repensar as relações entre a razão e a experiência.

A experiência já não pode ser considerada como uma simples verificação da hipótese observada como queria o empirismo. O caminho da ciência moderna vai do racional ao real. Começa pela construção teórica abstracta e produz racionalmente uns processos experimentais.

Tal reflexão esclarece também o passado da ciência. A ciência sempre tem procedido por descontinuidades. Cada progresso é um «corte» em relação a um saber anterior que se pode revelar inteiramente ultrapassado.

Mas a herança científica é um importante legado da inovação, porque e como Gaston Bachelard preconiza, a verdadeira estratégia do corte epistemológico é a filosofia do não. O investigador é o que trabalha na rectificação do saber.

Thomas Samuel Kuhn foi um físico americano nascido em Ohio no ano de 1922 falecendo em 1996.

O seu primeiro livro foi A Revolução Coperniana, publicado em 1957. Mas foi em 1962, com a publicação do livro “Estrutura das Revoluções Científicas” que Kuhn tornou-se conhecido não mais como um intelectual voltado para a história e a filosofia da ciência.

O discurso de Kuhn é inovador, na medida em que, desvalorizando os aspectos lógico-positivistas, lógico-empiricistas, lógico-formais e racionais, que claramente encontramos no discurso popperiano, e que permitem que a ciência se explique exaustivamente pela sua lógica interna, traz para o debate, uma base sociológica até então desvalorizada e esquecida, que poderá explicar, “por que razão se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem mais interessados em impedir o progresso científico do que em promovê-lo; porque é que certas teorias não são aceites ao tempo da sua descoberta e só o são muito mais tarde, dando-se como que a sua redescoberta; porque razão são aceites teorias cuja obediência aos padrões estabelecidos está longe de ser evidente; porque são negadas ou rejeitadas teorias assentes em experimentação que satisfaz plenamente esses padrões”

A noção de paradigma resulta fundamental neste enfoque historicista e não é mais que uma macro teoria, um marco ou perspectiva que se aceita de forma geral por toda a comunidade científica (conjunto de cientistas que compartilham um mesmo paradigma e realizam a mesma actividade científica) e a partir do qual se realiza a actividade científica, cujo objectivo é esclarecer as possíveis falhas do paradigma ou extrair todas as suas consequências.

A ciência normal é o período durante o qual se desenvolve uma actividade científica baseada num paradigma. Esta fase ocupa a maior parte da comunidade científica, consistindo em trabalhar para mostrar ou pôr a prova a solidez do paradigma no qual se baseia.

Porém, em determinadas ocasiões, o paradigma não é capaz de resolver todos os problemas, que podem persistir ao longo de anos ou séculos inclusive, e neste caso o paradigma gradualmente é posto em cheque, e começa-se a considerar se é o marco mais adequado para a resolução de problemas ou se deve ser abandonado. Então é quando se estabelece uma crise, que ademais supõe a proliferação de novos paradigmas que competem entre si tratando de impor-se como o enfoque mais adequado.

Finalmente se produz um revolução científica quando um dos novos paradigmas substitui ao paradigma tradicional. A cada revolução o ciclo inicia de novo e o paradigma que foi instaurado dá origem a um novo processo de ciência normal.

Fonte: http://loja.ocidente.eu/?p=80#more-80



sábado, 10 de maio de 2008

ALGEME-SE A LEI, SOLTEM-SE OS PRESOS!

Antes que alguém o diga, digo-o eu: só a pena não resolve o problema da criminalidade e da violência. Certo? Quanto a isso estamos de acordo e, portanto, quem pretendesse invocar o contraponto, fica dispensado dele. Arrume-se outro porque desse já cansamos. É evidente que a criminalidade e a violência têm muitas causas e precisam ser enfrentadas com um amplo conjunto de ações. Este artigo não tratará de todas nem de algumas. Abordará somente a questão da pena porque ela tem sido objeto de insistentes contestações.


É verdade, meu caro leitor. Tem gente querendo algemar, imobilizar, enjaular o Código Penal. No entanto, a punição, junto com o amor, é elemento fundamental da pedagogia necessária à formação das consciências. Seria total irresponsabilidade paterna, por exemplo, adotar um processo de educação dos filhos que exclua o aconselhamento, a supervisão de suas ações, a informação de que determinada atitude será punida de determinada forma, e a aplicação da punição, caso ocorra o comportamento vedado. Muitos dos problemas que hoje se observam nas escolas, nas ruas e nos estádios de futebol decorrem, em parte, dessa renúncia ao dever familiar de educar para o bem, para a verdade e para a harmonia social. A consciência bem formada convive de modo saudável com o erro (errar é humano), com o sentimento de culpa (natural a todo ser dotado de consciência), com o arrependimento (idem), com a expiação e com o perdão. Considerar tudo isso muito penoso e não sancionar a ultrapassagem dos limites é preparar gravíssimos acidentes de percurso. Com quase absoluta certeza: os beneficiários dessa tolerância farão vítimas entre pessoas que nada tem a ver com ela.



Não é diferente, aliás, o que a sociedade busca promover, mediante suas estruturas policiais e judiciais, em relação a todos os cidadãos. O guarda da rua, a sinaleira da esquina, o pardal da estrada, o delegado, o promotor e o juiz, são peças de um aparato instituído por todos como instrumento para prover justiça e segurança para todos.



É possível que o leitor esteja se indagando sobre qual a vertente filosófica de onde provêm as mencionadas idéias sobre a inutilidade das penas. Em bom português: qual a origem dessas tolices? Elas nascem de uma visão idílica a propósito da natureza humana. Segundo tal visão, o homem é um ser bom e generoso que se decompõe através da civilização e de institutos tão devassos quanto o direito de propriedade. A alegoria rousseauniana do &quotbon sauvage" levou Marx a muitos de seus delírios. Com esse ponto de partida, resulta lógico deduzir que o delinqüente e o criminoso são meros subprodutos da sociedade, destituídos de consciência e isentos de culpa. E caberia indagar: não deveríamos, nesse caso, soltar os presos e prender a sociedade? Não, porque tampouco a sociedade tem consciência, de vez que ela mesma também é vítima da enrascada em que a meteram desde que fomos arrancados do &quotestado de natureza&quot... Prenda-se a lei, então, porque, sem lei, voltamos à vida primitiva e nos tornaremos bons selvagens. Arre!



É muito engraçado saber que a primeira coisa que os defensores destas idéias fizeram, sempre que tomaram o poder, foi enviar multidões para o outro mundo e para a cadeia. Mas aí pode.



Dr. Percival Puggina - www.puggina.org


segunda-feira, 5 de maio de 2008

Dimensões da Espiritualidade


Irmãos e irmãs, gostaria de falar sobre valores espirituais definindo dois níveis de espiritualidade. Como seres humanos, nosso objetivo básico é ter uma vida feliz; todos queremos ser felizes. É natural, para nós, buscar a felicidade. Esse é nosso objetivo de vida. A razão é completamente clara: quando perdemos a esperança, o resultado é que nos tornamos deprimidos e talvez até suicidas. Portanto, nossa existência é fortemente enraizada na esperança. Embora não haja garantia de que o futuro chegará, é porque temos esperança que somos capazes de continuar vivendo. Podemos dizer que o propósito de nossa vida, nosso objetivo de vida, é a felicidade.

Seres humanos não são produzidos por máquinas. Somos mais do que apenas matéria; temos sentimento e experiência. Por essa razão, somente conforto material não é suficiente. Necessitamos algo mais profundo, o que usualmente chamo de afeição humana, ou compaixão. Com afeição humana, ou compaixão, todas as vantagens materiais que temos à nossa disposição podem ser muito construtivas e produzir bons resultados. Contudo, sem afeição humana, somente vantagens materiais não nos proporcionarão satisfação, nem produzirão qualquer medida de paz mental ou felicidade. De fato, vantagens materiais sem afeição humana podem até mesmo criar problemas adicionais. Portanto, afeição humana, ou compaixão, é a chave para a felicidade humana.

O primeiro nível da espiritualidade, para os seres humanos de todos os lugares, é a fé em uma das muitas religiões do mundo. Penso que há um importante papel para cada uma das principais religiões mundiais, mas para que elas façam uma contribuição efetiva em benefício da humanidade do lado religioso, há dois fatores importantes a serem considerados. O primeiro é que praticantes individuais das várias religiões — isto é, nós mesmos — devem praticar sinceramente. Ensinamentos religiosos devem ser uma parte integral de nossas vidas; eles não deveriam estar separados de nossas vidas. Algumas vezes, vamos a uma igreja ou um templo e rezamos uma prece, ou geramos algum tipo de sentimento espiritual e, quando saímos, nada daquele sentimento religioso permanece. Essa não é a forma adequada de praticar. A mensagem religiosa deve estar conosco onde quer que estejamos. Os ensinamentos da nossa religião devem estar presentes em nossas vidas de forma que, quando realmente precisamos ou pedimos bençãos ou força interior, mesmo nessas horas esses ensinamentos estarão lá; eles estarão lá quando passarmos por dificuldades porque estão constantemente presentes. Somente quando a religião torna-se uma parte integral de nossas vidas é que ela pode ser realmente efetiva.

Também precisamos experienciar mais profundamente os significados e valores espirituais de nossa própria tradição religiosa — precisamos conhecer esses ensinamentos não só a nível intelectual, mas também, de forma cada vez mais profunda, através de nossa própria experiência. Algumas vezes entendemos diferentes idéias religiosas num nível muito superficial ou intelectual. Sem um sentimento profundo, a eficácia da religião torna-se limitada. Portanto, devemos praticar sinceramente, e a religião deve tornar-se parte de nossas vidas.

O segundo fator refere-se mais à interação entre as várias religiões mundiais. Hoje, por causa da crescente mudança tecnológica e a natureza da economia mundial, estamos muito mais dependentes uns dos outros do que antes. Diferentes países e continentes tornaram-se mais intimamente associados uns com os outros. Na realidade, a sobrevivência de uma região do mundo depende da de outras. Portanto, o mundo tornou-se mais próximo, muito mais interdependente. Como conseqüência, há mais interação humana. Sob tais circunstâncias, a idéia de pluralismo entre as religiões mundiais é muito importante. Em tempos passados, quando as comunidades viviam separadas uma das outras e as religiões surgiam num relativo isolamento, a idéia que havia só uma religião era muito útil. Mas agora a situação mudou, e as circunstâncias são inteiramente diferentes. Agora é crucial aceitar o fato de que existem diferentes religiões, e a fim de desenvolver verdadeiro respeito mútuo entre elas é essencial aproximar o contato entre as várias religiões. Esse é o segundo fator que possibilitará as religiões mundiais serem mais eficazes em beneficiar a humanidade.

Quando estava no Tibete, eu não tinha contato com pessoas de diferentes crenças religiosas. Assim, minha atitude em relação às outras religiões não era muito positiva. Mas, quando tive a oportunidade de encontrar pessoas de diferentes crenças e aprender com essa experiência e o contato pessoal, minha atitude para com as outras religiões mudou. Compreendi como são úteis para a humanidade e o potencial contributivo de cada uma para um mundo melhor. Há séculos, as religiões vêm dando contribuições maravilhosas para o aprimoramento dos seres humanos, e ainda hoje há um grande número de seguidores do cristianismo, islamismo, judaísmo, budismo, hinduísmo e assim por diante. Milhões de pessoas estão se beneficiando de todas essas religiões.

Para dar um exemplo do valor do encontro de diferentes crenças, meus encontros com o falecido Thomas Merton fizeram-me perceber que bonita, maravilhosa pessoa ele era. Noutra ocasião, encontrei-me com um monge católico que viveu vários anos como eremita numa montanha bem atrás do mosteiro de Montserrat, na Espanha. Quando visitei o mosteiro, ele desceu de sua ermida especialmente para falar comigo. O fato de o inglês dele estar pior do que o meu me deu mais coragem de falar com ele! Ficamos cara a cara e perguntei, "Nesses poucos anos, o que você estava fazendo naquela montanha?" Ele olhou-me e respondeu, "Meditação na compaixão, no amor". Quando ele disse estas poucas palavras, entendi a mensagem através dos seus olhos. Realmente desenvolvi verdadeira admiração por ele e por outros como ele. Tais experiências ajudaram a confirmar na minha mente que todas as religiões do mundo têm o potencial para produzir boas pessoas, a despeito das suas diferenças de filosofia e doutrina. Cada tradição religiosa tem sua própria maravilhosa mensagem a transmitir.

Do ponto de vista do budismo, por exemplo, o conceito de um criador é ilógico. É difícil para os budistas entenderem esse conceito por causa do modo que eles analisam a causalidade. Contudo, este não é o lugar para discutir questões filosóficas. O ponto importante aqui é que para as pessoas que seguem esses ensinamentos nos quais a crença básica está num criador, esta abordagem é eficaz. De acordo com essas tradições, o ser humano individual é criado por Deus. Além disso, como recentemente aprendi de um dos meus amigos cristãos, eles não aceitam a teoria do renascimento, e assim, não aceitam vidas passadas ou futuras. Acreditam somente nesta vida. Contudo, eles mantêm que esta vida é criada por Deus, pelo criador, e esta idéia desenvolve neles um sentimento de intimidade com Deus. Seu ensinamento mais importante é que, como estamos aqui por desejo de Deus, nosso futuro depende do criador, e porque o criador é considerado supremo e sagrado, devemos amar a Deus, o criador.

O que segue-se a isso é o ensinamento que deveríamos amar nossos semelhantes — esta é a mensagem principal aqui. O raciocínio é que se amamos a Deus, devemos amar nossos semelhantes porque eles, como nós, foram criados por Deus. O futuro deles, como o nosso, depende do criador, portanto, sua situação é igual a nossa. Logo, a crença das pessoas que dizem "Ame a Deus" mas não mostram amor verdadeiro para seus semelhantes é questionável. A pessoa que acredita em Deus e no amor a Deus, deve demonstrar a sinceridade de seu amor a Deus através do amor dirigido aos semelhantes. Essa abordagem é muito poderosa, não é?

Assim, se examinarmos cada religião por vários ângulos e da mesma maneira — não apenas da nossa posição filosófica mas de vários pontos de vista — não pode haver dúvida de que todas as grandes religiões têm o potencial para melhorar os seres humanos. Isto é óbvio. Através de um contato próximo com pessoas de outras fés, é possível desenvolver uma atitude aberta e de respeito mútuo em relação a outras religiões. Proximidade com diferentes religiões ajuda-me a aprender novas idéias, novas práticas, e novos métodos ou técnicas que posso incorporar à minha própria prática. Da mesma forma, alguns de meus irmãos e irmãs cristãos adotaram certos métodos budistas, como a prática da mente unifocada e as técnicas de desenvolvimento da tolerância, da compaixão e do amor. O benefício é enorme quando praticantes de diferentes religiões se unem para esse tipo de intercâmbio. Além de desenvolverem a harmonia entre si, ganham outras benesses.

Políticos e líderes de nações falam com freqüência em "coexistência" e "ação conjunta". Por que não nós, religiosos, também? Acho que é chegada a hora. Em Assis, em 1987, por exemplo, líderes e representantes de várias religiões mundiais se encontraram para orar juntos, embora eu não saiba ao certo se orar é a palavra exata para descrever com acuidade a prática de todas aquelas religiões. Em todo caso, o que importa é que os representantes de várias religiões se reuniram e, conforme suas próprias crenças, rezaram. Isso já está acontecendo e é, creio eu, muito positivo. No entanto, ainda precisamos fazer mais esforços para aumentar a harmonia e a proximidade entre as religiões mundiais, pois sem um tal esforço continuaremos a vivenciar todos esses problemas que dividem a humanidade. Se a religião fosse o único remédio para reduzir o conflito humano, mas se este mesmo remédio se tornasse outra forma de conflito, seria um desastre. Hoje, como no passado, ocorrem conflitos em nome da religião por causa de diferenças religiosas, e acho isso muito triste. Mas, como disse antes, se pensarmos aberta e profundamente compreenderemos que a situação atual é inteiramente diferente do passado. Não estamos mais isolados, mas somos interdependentes. Hoje, portanto, é muito importante entender que um relacionamento íntimo entre as várias religiões é essencial, para que diferentes grupos religiosos possam trabalhar juntos e realizar um esforço comum para o benefício da humanidade. Assim, sinceridade e fé na prática religiosa por um lado, e tolerância e cooperação religiosa por outro, formam este primeiro nível do valor da prática espiritual para a humanidade.

O segundo nível da espiritualidade — a compaixão como religião universal — é mais importante que o primeiro porque, não importa quão maravilhosa uma religião possa ser, ainda assim ela é aceita somente por um número limitado de pessoas. A maioria dos cinco ou seis bilhões de seres humanos em nosso planeta provavelmente não pratica religião alguma. De acordo com o seu ambiente familiar, eles poderiam se identificar como pertencentes a um ou outro grupo religioso — "eu sou hindu", "eu sou budista", "eu sou cristão" —, mas realmente a maioria desses indivíduos não é necessariamente praticante de nenhuma crença religiosa. Isto está correto: seguir uma religião ou não é um direito da pessoa como indivíduo. Todos os grandes mestres, como Buda, Mahavira, Jesus Cristo e Maomé falharam em tornar toda a população humana voltada para a espiritualidade. O fato é que ninguém pode fazer iss Se esses não-crentes são chamados de ateus não importa. De fato, para alguns estudiosos ocidentais os budistas também são ateístas, pois não aceitam um criador. Por isso, às vezes, ao descrever estes não-crentes, adiciono a palavra "extremo" e os chamo de não-crentes extremos. Eles não apenas são não-crentes mas também são extremos, presos ao ponto-de-vista de que a espiritualidade não tem valor. Contudo, devemos lembrar que essas pessoas também são uma parte da humanidade e também têm, como todos os seres humanos, o desejo de viver uma vida pacífica e feliz. Este é o ponto importante.

Acredito que não há problemas em permanecer não-crente, mas enquanto você fizer parte da humanidade, enquanto você for um ser humano, você precisa de afeição humana, compaixão humana. Este é realmente o ensinamento essencial de todas as tradições religiosas: o ponto crucial é a compaixão ou afeição humana. Sem afeição humana, mesmo crenças religiosas podem tornar-se destrutivas. Assim, a essência, mesmo na religião, é um bom coração. Considero que a afeição humana, ou compaixão, é a religião universal. Crente ou não-crente, todos necessitam de afeição humana e compaixão, porque compaixão nos dá força interior, esperança e paz mental. Assim, ela é indispensável para todos.

Examinemos, por exemplo, a utilidade de um bom coração na vida cotidiana. Se estamos de bom humor quando nos levantamos de manhã, com um sentimento caloroso no coração, automaticamente está aberta a nossa porta interior para aquele dia. Mesmo se uma pessoa pouco amistosa aparece, não nos perturbamos, e podemos até dizer a ela alguma coisa simpática. Mas num dia de humor menos positivo, quando nos sentimos irritados, nossa porta interior se fecha automaticamente. O resultado é que, mesmo se encontramos nosso melhor amigo, ficamos pouco à vontade e tensos. Tais situações mostram a diferença que nossa atitude interior faz nas experiências do dia-a-dia. Precisamos, pois, a fim de criar uma atmosfera agradável em nós mesmos, nas nossas famílias e nossas comunidades, compreender que a fonte desse bem-estar está dentro do indivíduo, dentro de cada um de nós — um bom coração, compaixão humana, amor.

Uma vez criada uma atmosfera positiva e amistosa, o medo e a insegurança automaticamente diminuem. Assim, podemos facilmente fazer mais amigos e criar mais sorrisos. Afinal de contas, somos animais sociais. Sem amizade humana, sem o sorriso humano, nossa vida torna-se miserável. O sentimento de solidão fica insuportável. É a lei natural, isto é, pela lei natural dependemos dos outros para viver. Se, sob certas circunstâncias, por algo estar errado dentro de nós, nossa atitude para com nossos semelhantes, de quem dependemos, se tornar hostil, como poderemos esperar paz de espírito e uma vida feliz? De acordo com a natureza humana básica, ou lei natural, a afeição — compaixão — é a chave da felicidade. Segundo a medicina contemporânea, um estado mental positivo, ou paz mental, também é benéfico para a saúde física. Logo, mesmo do ponto de vista de nossa saúde, paz e calma mental são cada vez mais importantes. Isso mostra que o próprio corpo físico aprecia e responde à afeição humana, à humana paz de espírito.

Se olharmos para a natureza humana básica, veremos que nossa natureza é mais dócil do que agressiva. Se examinarmos vários animais, notaremos que aqueles de natureza mais pacífica têm uma estrutura corporal correspondente, enquanto os predadores têm uma estrutura corporal desenvolvida de acordo com a natureza deles. Compare um tigre com um veado. Há uma grande diferença de estrutura física entre eles. Quando comparamos o nosso próprio corpo com os deles, vemos que somos mais parecidos com os veados e coelhos do que com os tigres. Até os nossos dentes são mais parecidos com os deles, não são? Bem diferentes dos do tigre. Nossas unhas são outro bom exemplo — eu não sou capaz de pegar nem um rato, só com as minhas unhas humanas. Claro, a inteligência humana nos habilita a criar ferramentas e métodos sem os quais seria difícil fazer muito do que fazemos. Como vêem, devido ao nosso estado físico, pertencemos à categoria dos animais dóceis. Acho que é nossa natureza humana fundamental que se mostra em nossa estrutura física básica.

Diante da situação global atual, a cooperação é essencial, especialmente em campos como economia e educação. O conceito de que diferenças são importantes está agora mais ou menos ultrapassado, como demonstra o movimento por uma Europa Ocidental unificada. Acho que esse movimento é verdadeiramente maravilhoso e chega em boa hora. Ainda assim, esse trabalho entre as nações não aconteceu por causa de compaixão ou fé religiosa, mas por necessidade. Há uma tendência crescente em direção da conscientização global. Nas atuais circunstâncias, um relacionamento mais íntimo com os outros tornou-se um elemento da nossa própria sobrevivência. Portanto, o conceito de responsabilidade universal baseado na compaixão e num senso de irmandade é essencial. O mundo está cheio de conflitos — por causa de ideologia, de religião ou até entre famílias — baseados em alguém querendo uma coisa e outra pessoa querendo outra coisa. Assim, se examinarmos as fontes de todos esses conflitos, descobriremos muitas fontes, muitas causas, até dentro de nós mesmos.

Nesse meio tempo, todavia, temos o potencial e a capacidade de unirmo-nos harmoniosamente. Tudo mais é relativo. Embora haja várias causas de conflito, existem ao mesmo tempo muitas causas para união e harmonia. Chegou a hora de pôr mais ênfase na união. Também aqui, há que haver afeição humana. Por exemplo, você pode ter uma opinião ideológica ou religiosa diferente da de outra pessoa. Se você respeitar o direito da outra pessoa e mostrar sinceramente uma atitude compassiva para com ela, então não importa se a idéia dela lhe serve, isso é secundário. Enquanto a outra pessoa acreditar, enquanto puder se beneficiar de tal ponto de vista, ela estará em seu absoluto direito. Então, precisamos respeitar e aceitar o fato de que existem diferentes pontos de vista. No campo da economia dá-se o mesmo: nossos competidores devem obter algum lucro, pois eles também precisam sobreviver. Quando temos uma visão mais ampla baseada na compaixão, creio que tudo se torna mais fácil. Compaixão, mais uma vez, é o fator-chave.

Os conflitos mundiais estão hoje consideravelmente menos tensos. Felizmente, agora podemos pensar e falar seriamente sobre desmilitarização. Cinco anos atrás isso seria difícil, mas hoje a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética acabou. Aos meus amigos americanos eu sempre digo: A força de vocês não vem das armas nucleares, mas dos nobres ideais de democracia e liberdade dos seus antepassados. Quando estive nos Estados Unidos em 1991, pude encontrar o ex-presidente George Bush. Na ocasião, falávamos sobre a nova ordem mundial e eu lhe disse: Uma nova ordem mundial com compaixão é ótimo. Sem compaixão, não tenho certeza.

Creio que é um bom momento para pensarmos e falarmos sobre desmilitarização. Já há sinais de redução armamentícia e, pela primeira vez, de desnuclearização. Passo a passo, vamos vendo uma diminuição de armas. Penso que nossa meta deveria ser a de livrar o mundo — nosso pequeno planeta s das armas. Isso não quer dizer, porém, que devamos abolir todo tipo de armas. Talvez seja preciso guardar algumas, pois há sempre algumas pessoas e grupos criando confusão entre nós. Por precaução, e para nos resguardarmos desses focos, poderíamos criar um sistema internacional de forças policiais monitoradas regionalmente, que não pertençam a nenhum país mas sejam controladas coletivamente e supervisionadas por uma organização internacional, como as Nações Unidas. Sem armas disponíveis, não haveria perigo de conflito militar entre as nações, nem haveria guerras civis.

A guerra continua sendo, para nossa tristeza, parte da história humana, mas acho que chegou a hora de mudar os conceitos que levam à guerra. Certas pessoas acham gloriosa a guerra, e que através dela podem se tornar heróis. Essa atitude comum em relação à guerra é muito errada. Um entrevistador me disse, um desses dias, que os ocidentais têm muito medo da morte, mas que os orientais a temem pouco. Eu lhe respondi, em tom de brincadeira, que para a mentalidade ocidental, a guerra e a instituição militar parecem extremamente importantes. Guerra significa morte — provocada, e não por causas naturais. Assim, são vocês, ocidentais, que não temem a morte, porque gostam tanto da guerra. Nós, orientais, principalmente nós, tibetanos, não podemos nem pensar em guerra; lutar, para nós, está fora de cogitação porque o resultado inevitável da guerra é o desastre: morte, ferimentos e miséria. Portanto, o conceito de guerra para nós é extremamente negativo. Isso quer dizer que, na realidade, temos mais medo da morte do que vocês, você não acha?

Infelizmente, alguns fatores fazem que nossas idéias sobre a guerra sejam muito incorretas. É hora, portanto, de pensar seriamente sobre desmilitarização. Eu senti isso profundamente, durante e depois da crise do Golfo Pérsico. Claro, todos culparam Sadam Hussein, e não há dúvida de que Sadam Hussein é negativo — ele errou de muitas maneiras. Afinal, ele é um ditador, e ditadores são obviamente negativos. No entanto, sem sua organização militar, sem suas armas, Hussein não seria aquele tipo de ditador. Quem lhe forneceu as armas? Os fornecedores também têm responsabilidade. Alguns países ocidentais lhe forneceram armas sem medir as conseqüências.

Pensar apenas em dinheiro, em lucrar vendendo armas, é realmente horrível. Certa vez, encontrei uma francesa que passara muitos anos em Beirute, no Líbano. Ela me disse, com grande tristeza, que durante a crise em Beirute havia gente de um lado da cidade ganhando dinheiro com a venda de armas, enquanto do outro lado, no mesmo dia, havia gente inocente sendo morta pelas mesmas armas. Da mesma forma, de um lado do planeta há pessoas vivendo suntuosamente com o lucro auferido da venda de armas, enquanto pessoas inocentes morrem do outro lado do planeta, vítimas daquelas balas sofisticadas. O primeiro passo, portanto, é parar a venda de armas. às vezes eu brinco com meus amigos suecos: Vocês são mesmo maravilhosos. Mantiveram a neutralidade durante o último conflito e sempre consideram a importância dos direitos humanos e da paz mundial. ótimo. Mas, nesse meio tempo, estão vendendo muitas armas. Há uma pequena contradição aí, não há?

Assim, desde a crise do Golfo Pérsico, prometi a mim mesmo que pelo resto da minha vida contribuirei para avançar a idéia da desmilitarização. No que diz respeito ao meu país, já resolvi que, futuramente, o Tibete deverá ser uma zona totalmente desmilitarizada. Mais uma vez, para tornar a desmilitarização uma realidade, o fator chave é a compaixão.

Gostaria de concluir explicando melhor o significado de compaixão, que freqüentemente é mal entendido. Compaixão verdadeira não está baseada em nossas próprias projeções e expectativas, mas sim nos direitos do outro: independentemente da outra pessoa ser um amigo íntimo ou um inimigo, contanto que ela deseje paz e felicidade e deseje superar o sofrimento, então, baseado nisso, desenvolvemos respeito verdadeiro para com seus problemas. Isso é compaixão verdadeira.

Em geral, chamamos qualquer preocupação com um amigo próximo de compaixão. Isso não é compaixão, é apego. Nem casamentos duram por apego, embora o apego geralmente esteja presente. Eles duram porque também há compaixão. Se os casamentos duram pouco, é por perda de compaixão; só há apego emocional baseado em projeção e expectativa. Quando o único vínculo entre amigos íntimos é o apego, mesmo uma questão menor pode causar uma mudança nas projeções. Assim que nossa projeção muda, o apego desaparece — porque o apego estava baseado unicamente na projeção e expectativa.

É possível ter compaixão sem apego — e similarmente, ter cólera sem ódio. Portanto, precisamos esclarecer as diferenças entre compaixão e apego, e entre cólera e ódio. Tal clareza é útil em nossa vida diária e em nossos esforços para a paz mundial. Considero esses valores espirituais como básicos para a felicidade de todos os seres humanos, tanto do crente quanto do não crente.

Ensinamento dado em Melbourne, Austrália, no National Tennis Centre, em 4 de maio de 1992 e publicado em Dimensions of Spirituality, Wisdom Publicaions, 1995. Tradução de Bruno D'Avanzo do Centro de Estudos Budistas Paramitta (Curitiba - PR), em sua visita ao CEBB em julho 1996, e de José Fonseca do CEB-Bodisatva (Porto Alegre - RS)