sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O que é a liberdade?

Considerar a questão, o que é a liberdade ? parece um empreendimento desesperado. Tudo acontece como se as contradições e as antinomias sem idade alcançassem aqui o espìrito para joga-lo em dilemas logicamente insolùveis, de maneira que, segundo o partido adotado, torna-se tão impossìvel de conceber a liberdade ou seu contràrio que formar a noção de um cìrculo quadrado. Na sua forma mais simples, a dificuldade pode ser resumida como a contradição entre nossa consciência que nos diz que nòs somos livres e por conseguinte responsàveis, e nossa experiência cotidiana no mundo exterior onde nòs nos orientamos segundo o princìpio de causalidade. Em todas as coisas pràticas e especialmente nas coisas polìticas, nòs consideramos a liberdade humana como uma verdade evidente, e é nesse axioma que as leis repousam nas comunidades humanas, que as decisões são tomadas, que os julgamentos são atribuìdos. Em todos os campos de trabalho cientìfico e teòrico, ao contràrio, nòs procedemos segundo a não menos evidente verdade do nihil ex nihilo, de nihil sine causa, quer dizer supondo que "mesmo nossas pròprias vidas são, em ùltima anàlise, submetidas a causas" e que, se deve existir em nòs mesmos um eu real livre, ele, em todo caso, não aparece jamais sem equìvoco no mundo fenomenal, e não pode então jamais se tornar o objeto de uma asserção teòrica. Por isso o fato que a liberdade vira miragem no momento em que a psicologia penetra no seu domìnio reputado mais ìntimo; pois " a função que a força tem na natureza, como causa do movimento, tem como contrapartida na esfera mental o motivo como causa da conduta".
È verdade que a prova de causalidade - a previsibilidade do efeito, se todas as causas são conhecidas - não pode ser aplicada no domìnio dos affaires humanos; mas essa imprevisibilidade pràtica não é uma prova da liberdade, ela significa simplesmente que nòs não estamos jamais em posição de conhecer todas as causas que entram em jogo, isso, de um lado, simplesmente por causa do grande nùmero dos fatores, mas também porque os motivos humanos, ao contràrio das forças naturais, permanecem escondidos a todos os olhares, à obsevação dos outros homens como à introspecção.
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Para a questão da polìtica, o problema da liberdade é crucial, e nenhuma teoria polìtica pode permanecer indiferente ao fato que esse problema conduziu ao coração "da floresta obscura onde a filosofia se perdeu". [....]
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O domìnio onde a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, mas como um fato da vida cotidiana, é o domìnio polìtico. E mesmo hoje, que nòs o saibamos ou não, a questão da polìtica e o fato que o homem possui o dom da ação deve sempre estar presente em nosso espìrito quando nòs falamos do problema da liberdade, pois a ação e a polìtica, entre todas as capacidades e possibilidades da vida humana, são as ùnicas coisas que nòs não poderìamos ter a mìnima idéia sem presumir pelo menos que a liberdade existe, e nòs não podemos tocar nenhuma questão polìtica sem botar o dedo sobre uma questão em que a liberdade humana não esteja em jogo. A liberdade, entretanto, não é apenas um dos numerosos problemas e fenômenos do domìnio polìtico propriamente dito, como a justiça, o poder, ou a igualdade; a liberdade, que sò torna-se raramente - nos perìodos de crise ou de revolução - o objetivo direto da ação polìtica - é realmente a condição que faz com que os homens vivam juntos em uma organização polìtica. Sem ela a vida polìtica como tal seria desprovida de senso. A raison d'être - razão de ser - da polìtica é a liberdade, e seu campo de experiência é a ação.
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Sem uma vida pùblica politicamente garantida, falta para a liberdade o espaço mundano onde ela pode aparecer. Certo, ela pode ainda habitar no coração dos homens como desejo, vontade, ou aspiração; mas o coração humano, nòs todos sabemos, é um lugar demasiadamente obscuro, e tudo o que acontece na sua obscuridade não pode ser designado como um fato demonstràvel. A liberdade como fato demonstràvel e a polìtica coincidem e são relativas uma a outra como dois lados de uma mesma coisa.
Todavia, é precisamente essa coincidência da polìtica e da liberdade que não é mais evidente na luz da experiência polìtica que é hoje a nossa. O aumento do totalitarismo, sua reinvindicação de ter subornado todas as esferas da vida às exigências da polìtica e seu não-reconhecimento lògico dos direitos civis, sobretudo os direitos da vida privada e do direito a ser liberado da polìtica, nos fazem duvidar não somente da coincidência da polìtica e da liberdade, mas ainda da compatibilidade delas. [....]
[....] A ascendência filosòfica de nossa noção polìtica comum da liberdade é ainda totalmente presente nos escritores polìticos do século XVIII, por exemplo quando Thomas Paine afirma com insistência que " para ser livre basta [ao homem] que ele queira", palavra que Lafayette aplicou à nação: "Para que uma nação seja livre, basta que ela queira ser livre".
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Não existe nenhuma dùvida que a vida humana, colocada na terra, seja envolta de processos automàticos - os processos naturais da terra que também são envoltos de processos còsmicos; e nòs mesmos somos empurrados por forças semelhantes na medida em que nòs também somos uma parte da natureza orgânica.
Nossa vida polìtica, além disso, mesmo se ela é o domìnio da ação, tem igualmente um lugar no coração dos processos que nòs chamamos històricos e que tendem a tornar-se tão automàticos quanto os processos naturais ou còsmicos, se bem que eles tenham sido provocados pelos homens. A verdade é que o automatismo é inerente a todos os processos seja qual for a origem deles - o que, explica que nenhum ato ùnico e nenhum evento ùnico possam jamais, de uma vez por todas, libertar e salvar um homem, uma nação ou a humanidade. [.....]
As ciências històricas conhecem muito bem esses casos de civilizações petrificadas declinando sem esperança, e que a condenação parece determinada antecipadamente, como uma necessidade biològica; e como esses processos històricos de estagnação podem durar e caminhar durante séculos inteiros, eles ocupam, de maneira evidente, o maior espaço na història escrita; os perìodos de liberdade sempre foram relativamente curtos na història do gênero humano.
O que geralmente permanece intacto nas épocas de petrificação e de fatal predestinação é a faculdade de começar que anima e inspira todas as atividades humanas e que é a fonte oculta da produção de todas as coisas grandes e belas.
Mas durante todo o tempo que essa fonte permanece oculta, a liberdade não é uma realidade do mundo, tangìvel; quer dizer que ela não é polìtica.
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Todo ato, encarado não do ponto de vista de agente, mas na perspectiva do processo no contexto em que ele se produz e de qual ele interrompe o automatismo, é um "milagre" - quer dizer alguma coisa que nòs não podìamos esperar. Se é verdade que a ação e o começo são essencialmente a mesma coisa, é preciso concluir que uma capacidade de realizar milagres também està presente no nùmero das faculdades humanas. Isso pode parecer mais estranho do que a realidade.
È da pròpria natureza de todo novo começo que ele faça irrupção no mundo como uma "improbabilidade infinita", mas é precisamente esse infinito improvàvel que constitue na realidade a textura pròpria de tudo o que nòs dizemos real. Toda nossa existência repousa, apesar de tudo, de uma certa maneira em uma corrente de milagres; o nascimento da terra, o desenvolvimento da vida orgânica na sua superfìcie; a evolução do gênero humano a partir de espécies animais. Pois do ponto de vista dos processos do universo e da natureza, e de suas possibilidades estatìsticas esmagadoras, o nascimento da terra a partir de processos còsmicos, a formação da vida orgânica a partir de processos inorgânicos, enfim a evolução do homem a partir dos processos da vida orgânica são todos considerados como "improbabilidades infinitas", o que nòs chamamos geralmente de "milagres". È por causa desse elemento do "milagroso" presente em toda realidade que os eventos, tão precisamente que nos façam prever o temor ou a esperança, nos deixam sob o impacto da surpresa quando eles acontecem. O pròprio impacto de um evento não é jamais totalmente explicàvel; sua realidade transcende no seu princìpio toda previsão.
A experiência que nos ensina que os acontecimentos são milagres não é nem arbitrària nem falaciosa; ela é ao contràrio uma das mais naturais e mesmo quase banal na vida ordinària. Sem essa experiência banal, a importância dada pela religião aos milagres sobrenaturais seria quase incompreensìvel.
Eu escolhi o exemplo de processos naturais que são interrompidos pelo acontecimento de alguma "improbabilidade infinita" para ressaltar o fato que o que nòs chamamos real na experiência ordinària surgiu frequentemente graças coincidências mais estranhas do que a ficção. È claro que esse exemplo tem seus limites e ele não pode ser aplicado puramente e simplesmente ao domìnio dos affaires humanos. Seria pura superstição de operar milagres, de esperar o "infinitamente improvàvel", no contexto dos processos històricos e politicamente automàticos, se bem que mesmo isso não possa jamais ser completamente excluìdo. A història, em oposição à natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da improbabilidade infinita se produz tão frequentemente que pode parecer estranho de falar de milagre. Mas a razão dessa frequência é simplesmente que os processos històricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pela "initium" que o homem é na medida em que ele é um ser que age. Por conseguinte, não é de maneira alguma uma superstição, é mesmo uma atitude realista de esperar o que não pode ser previsto e predito, de se preparar a milagres no domìnio polìtico. E quanto mais a balança pesa muito em favor do desastre, mais milagroso serà o fato realizado livremente; pois é o desastre, e não a salvação, que se produz sempre automaticamente e deve por conseguinte, sempre parecer inelutàvel.
Objetivamente, quer dizer de um ponto de vista exterior, e sem levar em conta o fato que o homem é um começo e que ele é um ser que começa , as chances que amanhã seja como ontem são sempre mais fortes. Talvez nem tanto, é verdade, mas quase tão fortes que eram as chances para que nenhuma terra possa surgir jamais dos eventos còsmicos, que nenhuma vida se desenvolva a partir dos processos inorgânicos e que nenhum homem apareça da evolução da vida animal. A diferença decisiva entre as "improbabilidades infinitas" sobre as quais repousa a realidade de nossa vida terrestre, e o caràter milagroso inerente aos eventos que estabelecem a realidade històrica, é que, no domìnio dos affaires humanos, nòs conhecemos o autor dos "milagres". São os homens que os realizam, os homens que, porque eles receberam o duplo dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade pròpria à vida deles.


- Hannah Arendt - La crise de la culture - Qu'est-ce que la liberté ? - pg. 186 - 222 - Folio essais.

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