Para Bruno Speck, combate à corrupção no Brasil continua não sendo prioridade
O financiamento público de pequenas doações de cidadãos nas eleições e o aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização do aparelho do estado, entre outras mudanças institucionais, são instrumentos que podem resultar numa abordagem mais sistêmica da corrupção. A opinião é do cientista político Bruno Speck, professor do Departamento de Ciências Política da Unicamp e pesquisador da Transparência Brasil, ONG internacional dedicada ao controle da corrupção.
Na opinião do docente, pequenas mudanças institucionais são mais eficazes do que as grandes reformas estruturais, por manterem intacto o arcabouço básico do estado democrático e por passarem longe das injunções de ordem ideológica e de orientação política, atendo-se às questões de natureza técnica. "É preciso aumentar a eficácia do estado e também a possibilidade da participação social na fiscalização".
Segundo o professor, os últimos episódios envolvendo o governo federal são benéficos porque "reafirmam e fortalecem uma nova sensibilidade na opinião pública, que não existia há 10 ou 15 anos". Speck, que defende também uma reformulação nas CPIs e na regra que pune parlamentares por quebra de decoro, diz que até agora o governo Lula tem manifestado "interesse zero" pelo combate à corrupção
JU - Em entrevista ao Jornal da Unicamp em outubro de 2002, o senhor disse que uma nova abordagem sobre a corrupção deveria priorizar a valorização e a identificação de fatores institucionais. Isso mudou ou ainda persiste à luz dos últimos acontecimentos?
Bruno Speck - O diagnóstico não mudou. O que mudou duas vezes foi a disposição dos atores políticos em aceitar este diagnóstico. A primeira virada aconteceu ainda na campanha eleitoral de 2002. Tanto o candidato José Serra como também Lula assinaram um compromisso com a Transparência Brasil a respeito da implementação de oito medidas institucionais para combater a corrupção. A idéia básica desta abordagem institucional, que estava embutida no compromisso, é que a causa da corrupção não é a fraqueza moral das pessoas, mas sim uma falha institucional. Dentro de determinados mecanismos regulatórios de fiscalização e de implementação de políticas, há maior ou menor possibilidade de o corrupto ser pego quando desvia recursos. E justamente essa probabilidade – para mais ou para menos – é o fator institucional que faz os fatos de corrupção ocorrerem com maior ou menor freqüência. Houve um compromisso dos candidatos, daí a nossa grande expectativa de que o governo implementasse essas medidas e fizesse uma abordagem mais sistêmica da corrupção.
JU - Essa expectativa foi correspondida?
Speck - A realidade foi outra. Como as prioridades de um governo obviamente são muitas, a corrupção deixou de ser um dos temas principais do governo. Ele escolheu outros, que não deixam de ter relevância, como estabilidade econômica, combate à fome etc. Mas nós imaginávamos que o combate à corrupção seria uma das prioridades. Isto não ocorreu.
JU - Qual foi a outra mudança?
Speck - Quando descobrimos que havia zero interesse. Não estou exagerando, o interesse é zero. Nunca mais fomos procurados. O governo não implementou nenhuma medida estrutural para diminuir a probabilidade de corrupção. A única talvez tenha sido um pequeno fortalecimento da Controladoria, que já havia sido instituída no governo Fernando Henrique. Ela foi levemente fortalecida com as funções exercidas pelo ministro Waldir Pires no que diz respeito ao controle interno. Mas, enfim, todas as outras medidas estruturais não foram implementadas.
JU - Que avaliação o senhor faz da postura do governo com relação aos episódios dos últimos dois meses?
Speck - Queria enfatizar essa idéia básica, muito simples: corrupção não é um problema moral, não é falha individual. A reação do governo com relação aos atuais casos é um pouco essa: "escolhemos as pessoas erradas", "trata-se de um caso isolado". Não é essa a nossa abordagem e muito menos o ponto mais importante. O prioritário é introduzir mecanismos que imunizem a parte da contratação de obras e serviços públicos, e implementar outros que evitem que assessores desse tipo assumam esse tipo de cargo. Na dúvida, a regra é sempre contra o réu. Deve-se decidir pela não-contratação de um assessor que tenha antecedente crítico.
JU - O que falta para que o tema corrupção seja absorvido pela agenda política?
Speck - O que preocupa é a tendência geral em relação ao tema. Não sou completamente pessimista, mas tenho a leve impressão de que a corrupção é um tema muito bem-explorado na oposição, seja qual for ela, e muito mal-abordado e compreendido quando tratado por quem está no poder. Acho que isso não tem só a ver com o governo no Brasil, seja ele estadual, federal ou municipal. Parece-me uma tendência em muitos países. Invariavelmente o tema é levantado como uma bandeira para se chegar ao governo, e muitas vezes, com muito sucesso, o governo eleito se baseia em programas anticorrupção. É o caso de grande parte dos eleitos recentemente no Peru, na Colômbia, na Argentina e na Venezuela. Todos candidatos vencedores tinham como principal ponto programático o combate à corrupção. Quando assumiram o governo, porém, pouca coisa foi implementada. Trata-se de um diagnóstico frustrante para quem desenvolve políticas propositivas de combate à corrupção.
JU - A que o senhor atribui esse estado de coisas?
Speck - Se isso for uma regra, vou realmente mudar de tema de pesquisa... Espero que seja conjuntural. Espero que mais políticos se convençam de que o aumento da lisura da administração pública é um atrativo quando se está no governo. É um grande ganho político hoje poder passar longas fases sem escândalos. O que pode colocar hoje em grande risco um governo no Brasil? Quais eram as grandes causas de crises na última década no país? Um é o risco externo, crise cambial etc, que são muitas vezes incalculáveis, inclusive porque estão sujeitos a fatores econômicos externos. O outro fator é o risco escândalo, causado principalmente por casos de corrupção. Essas duas são as grandes causas que podem derrubar, enfraquecer e acabar com a força política de um governo. Parece, no entanto, que nossos remédios não são ainda bem-vistos, que estamos tateando. Comparo isso muitas vezes à política ambiental e com a política de combate à pobreza. Parece que a descoberta do problema levou a uma busca de soluções que demorou décadas para tomar um rumo. Os ambientalistas demoraram muito tempo para ter um espaço próprio na política oficial. “É questão de tempo para que o controle nacorrupção tenha um espaço próprio”
JU - Essa mesma oposição mencionada pelo senhor, e que hoje acua o governo, enterrou oito CPIs quando na situação. Qual é o efeito dessa dinâmica de ataque e exploração constantes que os parlamentares fazem do tema da lisura e da eficácia administrativa?
Speck - Os critérios de avaliação da sociedade talvez não tenham sido tão rígidos porque o governo Fernando Henrique já tinha compromissos políticos com aliados que, enfim, o comprometiam desde o início. Os meios já eram questionáveis desde o começo do mandato. Paradoxalmente, o efeito é benéfico sobre o sistema político, mesmo que a oposição use isso para enfraquecer o governo e aumentar as próprias chances nas próximas eleições municipais. É benéfico porque fortalece e reafirma uma nova sensibilidade na opinião pública que não existia há 10 ou 15 anos. Ao fortalecer-se, essa sensibilidade vira uma categoria cada vez mais clara na avaliação dos governos. É uma questão de tempo para que o controle da corrupção conquiste um espaço próprio entre outros temas de políticas públicas.
JU - Como o senhor acha que a população está assimilando os últimos acontecimentos?
Speck - O episódio ainda não terminou, portanto torna-se difícil ter uma posição fechada. Mas, enfim, acho que devemos manter as proporções. As expectativas em relação ao que esse governo faria eram muito maiores. O parâmetro e o patamar da moralidade eram muito mais altos. Esse caso, que é muito peculiar, certamente teve mais repercussão em virtude desta sensibilidade aguçada. Não sei se teria causado tanta revolta se ocorresse no governo passado, quando tivemos fatos muito mais graves que foram assimilados pela sociedade civil. Acho, portanto, que é uma mudança de expectativa e não de padrões de comportamento.
JU - Qual seria a percepção do eleitorado jovem?
Speck - Devemos pensar nas alternativas. Quais seriam? Quem apostou no PT da modernidade ética, para usar uma expressão de Cristóvão Buarque, agora se vê decepcionado. Estou chutando, mas acho que ele não vai optar por um outro partido. Se ele não conseguir perdoar, vai sair da política. O cinismo é uma postura freqüentemente encontrada neste meio. Embora não tenha a ver com essa crise específica, dou um exemplo: fizemos uma pesquisa de opinião em Campinas, no final do ano passado, e perguntamos aos cidadãos se eles estariam dispostos a vender o seu voto na próxima eleição. O que surpreende, primeiramente, é a alta taxa, em termos absolutos, de pessoas que venderiam o seu voto, que chega mais ou menos a 20% do eleitorado. O que surpreende mais é que quanto mais jovem o eleitor, mais alta é sua disposição em vender o voto. Talvez não seja tão sério assim, já que em última instância uma pesquisa de opinião simula, mas não reproduz com fidelidade a situação de uma eleição. Mas o que surpreende é a disposição dos mais jovens de despolitizar o ato da eleição e de tentar tirar proveito próprio. Em última instância, é uma postura cínica.
JU - Pesquisa feita pela Transparência Brasil revela que 70% de representantes de empresas ouvidos admitem ter se sentido compelidos a contribuir com campanhas eleitorais, sendo que, deste total, 60% reconhecem que sempre há menção explícita a favores como moeda de troca no financiamento. No que a reforma política pode alterar esse quadro?
Speck - A reforma política proposta pelo atual governo prevê três modificações, sendo que duas delas têm a ver com o financiamento. Uma, que não tem nada a ver, é a introdução da lista fechada. A segunda modificação é o aumento significativo do financiamento político. Ao invés da distribuição atual de R$ 120 milhões por ano entre os partidos, o estado repartiria mais ou menos R$ 800 milhões anuais para as agremiações. A terceira modificação é a proibição completa de qualquer financiamento privado no ano eleitoral. O pacote denominado é resultante de duas comissões temporárias que trabalharam na legislatura passada e na atual.
JU - Quais são os pontos positivos e negativos do projeto?
Speck - O projeto, na verdade, propõe uma reforma sistêmica para diminuir os riscos de corrupção. Neste sentido, é um projeto interessante. Diminuem os riscos justamente porque diminui a pressão pela busca de recursos privados, que pesa sobre o candidato. Atualmente, ele gasta boa parte do tempo tentando achar financiadores. Com o financiamento público exclusivo, ele teria os recursos garantidos. O projeto, a meu ver, peca e tem aspectos problemáticos, quando proíbe completamente o financiamento privado.
JU - Onde está a distorção?
Speck - Hoje em dia, praticamente em todas as democracias representativas modernas, o financiamento privado de pequenas quantias, o dinheiro miúdo, é visto e tido como o sinal do enraizamento social, dos vínculos sociais que os partidos e os candidatos têm com o cidadão. Com isso, você cria incentivos para que o cidadão contribua, para que os partidos busquem essas pequenas contribuições do eleitor. Na Europa, por exemplo, você tem alguns países em que, para cada euro arrecadado de um cidadão, o estado paga mais um euro. A idéia básica é não proibir completamente o financiamento privado, mas incentivar o financiamento privado benéfico e coibir o financiamento privado problemático. Este último é associado basicamente a doações de grandes proporções. Mas há outro aspecto problemático, vinculado à modalidade de distribuição desses recursos públicos.
JU - Por quê?
Speck - Hoje em dia os países adotam diferentes sistemas de distribuição em relação aos recursos públicos. Um segue a lógica igualitária, no qual a idéia principal é que todos os partidos devem ter recursos iguais. A outra sistemática é a distribuição proporcional, levando em conta, de alguma forma, o histórico, o sucesso eleitoral, o enraizamento social do partido. O objetivo é atribuir os recursos proporcionalmente a um destes critérios sobre a relevância relativa do partido. Quando você introduz alguma proporcionalidade, uma modalidade é pagar conforme o sucesso eleitoral do passado, e outra é pagar conforme o sucesso eleitoral na atual eleição. O Brasil paga atualmente conforme o resultado das últimas eleições para a Câmara dos Deputados.
JU - O que acaba favorecendo o governo.
Speck - Sim, seja quem estiver no poder. A ala governista, invariavelmente majoritária, reuniu portanto a maioria dos votos no último pleito e obterá mais recursos para a próxima eleição, caso o atual projeto seja aprovado. É um projeto essencialmente governista, que sempre dará mais dinheiro àquele que ganhou as últimas eleições. Outros países distribuem recursos de uma forma mais competitiva. A Costa Rica e a Bolívia, por exemplo, reembolsam os custos da eleição proporcionalmente ao sucesso eleitoral que o partido tem neste pleito.
JU - Trata-se de um modelo mais justo?
Speck - Sem dúvida. Se a oposição, por exemplo, achar que ela tem chances de ganhar ou se tiver sucesso na eleição, receberá recursos proporcionalmente. O que critico na atual proposta do governo é que ela acaba incluindo uma tendência perigosa de sempre favorecer quem está no governo, em detrimento da oposição. Como já analisamos, existe uma estreita relação entre financiamento de campanha e sucesso eleitoral. No Brasil, o número de votos é em grande parte determinado pelo montante de recursos alocados nas eleições.
JU - Em que medida as grandes contribuições são uma ameaça ao estado democrático?
Speck - Esse é o risco estrutural de campanhas que são financiadas por poucos doadores empresariais contribuindo com valores elevados para campanhas. Se as empresas alocam mais recursos que o cidadão, isso passa a ser um problema estrutural da democracia. O dinheiro acaba valendo mais que o cidadão. O risco de corrupção do processo eleitoral deriva tanto dos montantes elevados, que colocam em xeque o princípio da igualdade dos cidadãos no processo eleitoral, como também da dependência relativa do candidato de poucos financiadores.
JU - O senhor poderia exemplificar?
Speck - Mais da metade dos candidatos em eleições no Brasil dependem de um ou poucos financiadores. Isso cria obviamente uma relação de dependência. Se o político fica refém de poucos doadores, fica também sujeito a pressões. A legislação de muitos países tenta dar conta desse problema. A reforma da legislação sobre financiamento político na Argentina, ocorrida em 2002, por exemplo, prevê que um único doador não poderá participar em mais do que 2% do financiamento total. Na Bolívia e no Equador, guardadas as diferenças percentuais, é a mesma coisa. O que é definido como risco é a dependência relativa de um candidato dos seus maiores doadores.
JU - Qual seria o modelo ideal?
Speck - Tem que dar conta desses riscos a respeito da eqüidade dos cidadãos e da integridade dos futuros representantes. A legislação precisa incentivar as pequenas doações dos cidadãos. Na hora de você declarar seu imposto de renda, por exemplo, você pode deduzir uma quantia e atribuir essa dedução a um partido político. Isso dá ao cidadão a chance de dosar a quem ele dá e de inclusive não doar para ninguém. Se os partidos políticos tiverem acesso a recursos públicos na medida que interajam com os cidadãos, eles têm um incentivo para buscar uma base eleitoral que iria além do compromisso de entregar o voto. Em resumo: há mais mecanismos para se fazer um financiamento público incentivando a ligação entre cidadãos e partidos políticos. O outro ponto é que há modelos internacionais que mais transparentemente tentam separar o joio do trigo – ou seja, identificam tipos de doadores que são de risco.
“O governo passou a dever favores dentro do seu próprio campo”
JU - Quais seriam os mais nocivos?
Speck - As empresas que têm contrato público em muitos países são proibidos de doar recursos para campanhas ou partidos. No Brasil, essas doações são permitidas. Por outro lado, alguns vetos são difíceis de entender. Por exemplo: é proibido que a empresa doe mais que 2% de seu faturamento. E o cidadão não pode doar mais que 10% de sua renda do ano anterior. São valores altos, mas mesmo assim a lógica da restrição é difícil de entender. O que diz essa lógica? Que as empresas e os cidadãos são desiguais por ordem da lei. Trocando em miúdos: o pobre tem menos direito de influir em eleições. Na maioria dos outros países, na verdade, a legislação caminha no sentido diametralmente oposto – tenta estabelecer tetos máximos para as campanhas, nos tornando mais iguais.
JU - Esse modelo atenuaria os efeitos da corrupção?
Speck - Uma legislação sobre financiamento de campanhas é sempre um compromisso entre um ideal democrático e uma demanda real de competição política. De um lado, temos os ideais bonitos. Prega-se um debate em torno de idéias, excluindo o dinheiro. Mas as coisas infelizmente não funcionam assim. Você precisa de recursos para comunicar-se com o eleitor, sobretudo num país grande como o Brasil, com enormes circunscrições eleitorais. Somente com recursos financeiros você garante que os eleitores tenham acesso a uma certa pluralidade de opiniões e propostas, podendo escolher entre vários candidatos. O ideal seria incentivar as pequenas doações, subsidiando-as com recursos públicos. É esse o primeiro ponto. Em segundo lugar, é irreal achar que poderíamos excluir todas as empresa do financiamento de campanha. Na teoria, a corporação não tem lugar na representação; esta seria assunto exclusivamente dos cidadãos. Mas, na prática, não é assim. Os recursos dos cidadãos não são suficientes para bancar as campanhas. E as empresas buscam um caminho para se aproximar dos candidatos. Por este motivo muitos países optam por permitir estas doações da iniciativa privada, colocando determinadas restrições.
JU - Qual seria a proposta mais razoável?
Speck - O modelo brasileiro de financiamento privado é muito liberal neste momento. Eu sugiro três modificações. Em primeiro lugar, acabaria com a regra que torna desiguais as empresas e os cidadãos. Não faz sentido vincular os tetos para as doações privadas ao poder econômico dos cidadãos ou das empresas. A finalidade da legislação deve ser nivelar os doadores, não torna-los desiguais por lei. Em segundo, excluiria algumas pessoas jurídicas de contribuir para campanhas – atualmente é vetada a participação de entidades públicas, sindicatos e federações empresariais, concessionárias de serviços públicos e entidades estrangeiras. Além dessas, proibiria os contratistas de serviços de obras dos estado. Na terceira modificação, introduziria um limite para a dependência dos candidatos de um único doador. Não é possível que um representante financie metade de sua campanha com recursos de uma única empresa. Como vai manter a sua independência?
JU - A reforma política sai ou não?
Speck - Acho difícil, não por conta do financiamento, mas por causa da questão polêmica da introdução da lista fechada. A lista fechada mudaria substancialmente as regras eleitorais. Os atores políticos estão muito inseguros sobre como essa mudança influiria as chances futuras da sua reeleição. Acho pouco provável que eles assumam um risco tão grande.
JU - O fracasso da reforma política não seria um efeito negativo no combate à corrupção?
Speck - Não, necessariamente. Sou contra o sonho da grande reforma política. A minha expectativa é que os reformadores na política se concentrem em mudanças institucionais num patamar inferior. As grandes mudanças sempre têm um custo alto de readaptação dos atores políticos. Melhorar gradualmente a legislação de financiamento eleitoral, a auditoria governamental realizada pelos Tribunais de Contas ou o sistema de controle interno têm menos repercussão no grande cenário político atual, mas são muito mais interessantes, já que não se questionaria o arcabouço institucional básico do estado brasileiro, como acontece nos projetos de grandes reformas estruturais. Podemos fazer pequenos ajustes que são factíveis e que não dependam tanto de questões ideológicas ou de orientação política e sim de questões mais técnicas. É preciso aumentar a eficácia do estado e também a possibilidade da participação social na fiscalização.
JU - Como aperfeiçoar, por exemplo, a fiscalização no âmbito parlamentar?
Speck - Uma reformulação das Comissões Parlamentares de Inquéritos, para torná-las realmente comissões de investigação da minoria. Esse tema está na berlinda agora, mas já era um problema recorrente no governo passado. Invariavelmente, a CPI era bloqueada pela maioria. Esse é um problema da estrutura institucional criada pelo regimento interno do Senado e da Câmara. Outro problema estrutural de pequeno porte, mas que muda significativamente o comportamento dos atores políticos, é a regra das investigações contra parlamentares por quebra de decoro parlamentar. Convivemos com casos nos quais deputados e senadores renunciam antes que o processo é encaminhado à Comissão de Ética, como ocorreu nos casos do Arruda e do ACM. Essa renúncia tem efeito suspensivo sobre um possível processo de investigação que poder resultar na cassação do mandato e na perda temporária dos direitos políticos. Trata-se de uma falha estrutural grave que alimenta o comportamento cínico dos atores políticos. ACM, por exemplo, renunciou e voltou com uma votação maciça. Isso certamente não afirma padrões de moralidade.
JU - Padrões de moralidade que hoje passam pelas alianças...
Speck - Isso terá um preço altíssimo. Na verdade todos os comentários giram em torno dos efeitos políticos colaterais desse jogo que opõe aliados e oposição. Do lado do governo vêm prevalecendo essas dinâmicas muito estranhas de se criar débitos. O governo passou a dever favores e retribuições dentro do seu próprio campo. O saldo negativo está crescendo e em algum momento será cobrado.
JU - Até que ponto isso faz parte do jogo político, como apregoam os parlamentares?
Speck - A oposição tem como uma de suas funções primordiais criticar o governo. Já o governo precisa fazer sua escolha e sua conta. Acho que teria de ter outra saída, por exemplo, com a renúncia temporária de José Dirceu, como ocorreu com o chefe da Casa Civil de Itamar Franco. Isso acabaria com os argumentos da oposição. A outra saída teria sido permitir a instalação da CPI. O desgaste seria menor. Acho que não deu certo a conta do custo-benefício que o governo fez.
Quem é Bruno Speck
Bruno Wilhelm Speck nasceu na Alemanha em 1960 e estudou Ciência Política, História e Letras na Albert-Ludwigs Universität em Freiburg, Alemanha. Foi pesquisador auxiliar durante vários anos no Departamento de Ciências Políticas daquela universidade. Em 1986 realizou um estágio na Favela Jacarezinho no Rio de Janeiro com apoio da Carl Duisberg Gesellschaft. Formou-se em 1989 e em 1995 concluiu o doutorado em Ciência Política na Universidade de Freiburg com tese sobre "Correntes do Pensamento Político-Social no Brasil no Século XX". Foi pesquisador visitante no Instituto Max Planck de Direito Penal Internacional e Comparativo e na Universidade Livre de Berlim. Atualmente é professor na Unicamp e pesquisador na Transparência Brasil. Consultor do Utstein Anti-Corruption Resource Centre no Christian Michelsen Institute (Noruega). Organizou o livro Caminhos da Transparência. Análise dos Componentes de um Sistema Nacional de Integridade (Editora Unicamp, 2002)
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/marco2004/ju245pag06.html
O financiamento público de pequenas doações de cidadãos nas eleições e o aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização do aparelho do estado, entre outras mudanças institucionais, são instrumentos que podem resultar numa abordagem mais sistêmica da corrupção. A opinião é do cientista político Bruno Speck, professor do Departamento de Ciências Política da Unicamp e pesquisador da Transparência Brasil, ONG internacional dedicada ao controle da corrupção.
Na opinião do docente, pequenas mudanças institucionais são mais eficazes do que as grandes reformas estruturais, por manterem intacto o arcabouço básico do estado democrático e por passarem longe das injunções de ordem ideológica e de orientação política, atendo-se às questões de natureza técnica. "É preciso aumentar a eficácia do estado e também a possibilidade da participação social na fiscalização".
Segundo o professor, os últimos episódios envolvendo o governo federal são benéficos porque "reafirmam e fortalecem uma nova sensibilidade na opinião pública, que não existia há 10 ou 15 anos". Speck, que defende também uma reformulação nas CPIs e na regra que pune parlamentares por quebra de decoro, diz que até agora o governo Lula tem manifestado "interesse zero" pelo combate à corrupção
JU - Em entrevista ao Jornal da Unicamp em outubro de 2002, o senhor disse que uma nova abordagem sobre a corrupção deveria priorizar a valorização e a identificação de fatores institucionais. Isso mudou ou ainda persiste à luz dos últimos acontecimentos?
Bruno Speck - O diagnóstico não mudou. O que mudou duas vezes foi a disposição dos atores políticos em aceitar este diagnóstico. A primeira virada aconteceu ainda na campanha eleitoral de 2002. Tanto o candidato José Serra como também Lula assinaram um compromisso com a Transparência Brasil a respeito da implementação de oito medidas institucionais para combater a corrupção. A idéia básica desta abordagem institucional, que estava embutida no compromisso, é que a causa da corrupção não é a fraqueza moral das pessoas, mas sim uma falha institucional. Dentro de determinados mecanismos regulatórios de fiscalização e de implementação de políticas, há maior ou menor possibilidade de o corrupto ser pego quando desvia recursos. E justamente essa probabilidade – para mais ou para menos – é o fator institucional que faz os fatos de corrupção ocorrerem com maior ou menor freqüência. Houve um compromisso dos candidatos, daí a nossa grande expectativa de que o governo implementasse essas medidas e fizesse uma abordagem mais sistêmica da corrupção.
JU - Essa expectativa foi correspondida?
Speck - A realidade foi outra. Como as prioridades de um governo obviamente são muitas, a corrupção deixou de ser um dos temas principais do governo. Ele escolheu outros, que não deixam de ter relevância, como estabilidade econômica, combate à fome etc. Mas nós imaginávamos que o combate à corrupção seria uma das prioridades. Isto não ocorreu.
JU - Qual foi a outra mudança?
Speck - Quando descobrimos que havia zero interesse. Não estou exagerando, o interesse é zero. Nunca mais fomos procurados. O governo não implementou nenhuma medida estrutural para diminuir a probabilidade de corrupção. A única talvez tenha sido um pequeno fortalecimento da Controladoria, que já havia sido instituída no governo Fernando Henrique. Ela foi levemente fortalecida com as funções exercidas pelo ministro Waldir Pires no que diz respeito ao controle interno. Mas, enfim, todas as outras medidas estruturais não foram implementadas.
JU - Que avaliação o senhor faz da postura do governo com relação aos episódios dos últimos dois meses?
Speck - Queria enfatizar essa idéia básica, muito simples: corrupção não é um problema moral, não é falha individual. A reação do governo com relação aos atuais casos é um pouco essa: "escolhemos as pessoas erradas", "trata-se de um caso isolado". Não é essa a nossa abordagem e muito menos o ponto mais importante. O prioritário é introduzir mecanismos que imunizem a parte da contratação de obras e serviços públicos, e implementar outros que evitem que assessores desse tipo assumam esse tipo de cargo. Na dúvida, a regra é sempre contra o réu. Deve-se decidir pela não-contratação de um assessor que tenha antecedente crítico.
JU - O que falta para que o tema corrupção seja absorvido pela agenda política?
Speck - O que preocupa é a tendência geral em relação ao tema. Não sou completamente pessimista, mas tenho a leve impressão de que a corrupção é um tema muito bem-explorado na oposição, seja qual for ela, e muito mal-abordado e compreendido quando tratado por quem está no poder. Acho que isso não tem só a ver com o governo no Brasil, seja ele estadual, federal ou municipal. Parece-me uma tendência em muitos países. Invariavelmente o tema é levantado como uma bandeira para se chegar ao governo, e muitas vezes, com muito sucesso, o governo eleito se baseia em programas anticorrupção. É o caso de grande parte dos eleitos recentemente no Peru, na Colômbia, na Argentina e na Venezuela. Todos candidatos vencedores tinham como principal ponto programático o combate à corrupção. Quando assumiram o governo, porém, pouca coisa foi implementada. Trata-se de um diagnóstico frustrante para quem desenvolve políticas propositivas de combate à corrupção.
JU - A que o senhor atribui esse estado de coisas?
Speck - Se isso for uma regra, vou realmente mudar de tema de pesquisa... Espero que seja conjuntural. Espero que mais políticos se convençam de que o aumento da lisura da administração pública é um atrativo quando se está no governo. É um grande ganho político hoje poder passar longas fases sem escândalos. O que pode colocar hoje em grande risco um governo no Brasil? Quais eram as grandes causas de crises na última década no país? Um é o risco externo, crise cambial etc, que são muitas vezes incalculáveis, inclusive porque estão sujeitos a fatores econômicos externos. O outro fator é o risco escândalo, causado principalmente por casos de corrupção. Essas duas são as grandes causas que podem derrubar, enfraquecer e acabar com a força política de um governo. Parece, no entanto, que nossos remédios não são ainda bem-vistos, que estamos tateando. Comparo isso muitas vezes à política ambiental e com a política de combate à pobreza. Parece que a descoberta do problema levou a uma busca de soluções que demorou décadas para tomar um rumo. Os ambientalistas demoraram muito tempo para ter um espaço próprio na política oficial. “É questão de tempo para que o controle nacorrupção tenha um espaço próprio”
JU - Essa mesma oposição mencionada pelo senhor, e que hoje acua o governo, enterrou oito CPIs quando na situação. Qual é o efeito dessa dinâmica de ataque e exploração constantes que os parlamentares fazem do tema da lisura e da eficácia administrativa?
Speck - Os critérios de avaliação da sociedade talvez não tenham sido tão rígidos porque o governo Fernando Henrique já tinha compromissos políticos com aliados que, enfim, o comprometiam desde o início. Os meios já eram questionáveis desde o começo do mandato. Paradoxalmente, o efeito é benéfico sobre o sistema político, mesmo que a oposição use isso para enfraquecer o governo e aumentar as próprias chances nas próximas eleições municipais. É benéfico porque fortalece e reafirma uma nova sensibilidade na opinião pública que não existia há 10 ou 15 anos. Ao fortalecer-se, essa sensibilidade vira uma categoria cada vez mais clara na avaliação dos governos. É uma questão de tempo para que o controle da corrupção conquiste um espaço próprio entre outros temas de políticas públicas.
JU - Como o senhor acha que a população está assimilando os últimos acontecimentos?
Speck - O episódio ainda não terminou, portanto torna-se difícil ter uma posição fechada. Mas, enfim, acho que devemos manter as proporções. As expectativas em relação ao que esse governo faria eram muito maiores. O parâmetro e o patamar da moralidade eram muito mais altos. Esse caso, que é muito peculiar, certamente teve mais repercussão em virtude desta sensibilidade aguçada. Não sei se teria causado tanta revolta se ocorresse no governo passado, quando tivemos fatos muito mais graves que foram assimilados pela sociedade civil. Acho, portanto, que é uma mudança de expectativa e não de padrões de comportamento.
JU - Qual seria a percepção do eleitorado jovem?
Speck - Devemos pensar nas alternativas. Quais seriam? Quem apostou no PT da modernidade ética, para usar uma expressão de Cristóvão Buarque, agora se vê decepcionado. Estou chutando, mas acho que ele não vai optar por um outro partido. Se ele não conseguir perdoar, vai sair da política. O cinismo é uma postura freqüentemente encontrada neste meio. Embora não tenha a ver com essa crise específica, dou um exemplo: fizemos uma pesquisa de opinião em Campinas, no final do ano passado, e perguntamos aos cidadãos se eles estariam dispostos a vender o seu voto na próxima eleição. O que surpreende, primeiramente, é a alta taxa, em termos absolutos, de pessoas que venderiam o seu voto, que chega mais ou menos a 20% do eleitorado. O que surpreende mais é que quanto mais jovem o eleitor, mais alta é sua disposição em vender o voto. Talvez não seja tão sério assim, já que em última instância uma pesquisa de opinião simula, mas não reproduz com fidelidade a situação de uma eleição. Mas o que surpreende é a disposição dos mais jovens de despolitizar o ato da eleição e de tentar tirar proveito próprio. Em última instância, é uma postura cínica.
JU - Pesquisa feita pela Transparência Brasil revela que 70% de representantes de empresas ouvidos admitem ter se sentido compelidos a contribuir com campanhas eleitorais, sendo que, deste total, 60% reconhecem que sempre há menção explícita a favores como moeda de troca no financiamento. No que a reforma política pode alterar esse quadro?
Speck - A reforma política proposta pelo atual governo prevê três modificações, sendo que duas delas têm a ver com o financiamento. Uma, que não tem nada a ver, é a introdução da lista fechada. A segunda modificação é o aumento significativo do financiamento político. Ao invés da distribuição atual de R$ 120 milhões por ano entre os partidos, o estado repartiria mais ou menos R$ 800 milhões anuais para as agremiações. A terceira modificação é a proibição completa de qualquer financiamento privado no ano eleitoral. O pacote denominado é resultante de duas comissões temporárias que trabalharam na legislatura passada e na atual.
JU - Quais são os pontos positivos e negativos do projeto?
Speck - O projeto, na verdade, propõe uma reforma sistêmica para diminuir os riscos de corrupção. Neste sentido, é um projeto interessante. Diminuem os riscos justamente porque diminui a pressão pela busca de recursos privados, que pesa sobre o candidato. Atualmente, ele gasta boa parte do tempo tentando achar financiadores. Com o financiamento público exclusivo, ele teria os recursos garantidos. O projeto, a meu ver, peca e tem aspectos problemáticos, quando proíbe completamente o financiamento privado.
JU - Onde está a distorção?
Speck - Hoje em dia, praticamente em todas as democracias representativas modernas, o financiamento privado de pequenas quantias, o dinheiro miúdo, é visto e tido como o sinal do enraizamento social, dos vínculos sociais que os partidos e os candidatos têm com o cidadão. Com isso, você cria incentivos para que o cidadão contribua, para que os partidos busquem essas pequenas contribuições do eleitor. Na Europa, por exemplo, você tem alguns países em que, para cada euro arrecadado de um cidadão, o estado paga mais um euro. A idéia básica é não proibir completamente o financiamento privado, mas incentivar o financiamento privado benéfico e coibir o financiamento privado problemático. Este último é associado basicamente a doações de grandes proporções. Mas há outro aspecto problemático, vinculado à modalidade de distribuição desses recursos públicos.
JU - Por quê?
Speck - Hoje em dia os países adotam diferentes sistemas de distribuição em relação aos recursos públicos. Um segue a lógica igualitária, no qual a idéia principal é que todos os partidos devem ter recursos iguais. A outra sistemática é a distribuição proporcional, levando em conta, de alguma forma, o histórico, o sucesso eleitoral, o enraizamento social do partido. O objetivo é atribuir os recursos proporcionalmente a um destes critérios sobre a relevância relativa do partido. Quando você introduz alguma proporcionalidade, uma modalidade é pagar conforme o sucesso eleitoral do passado, e outra é pagar conforme o sucesso eleitoral na atual eleição. O Brasil paga atualmente conforme o resultado das últimas eleições para a Câmara dos Deputados.
JU - O que acaba favorecendo o governo.
Speck - Sim, seja quem estiver no poder. A ala governista, invariavelmente majoritária, reuniu portanto a maioria dos votos no último pleito e obterá mais recursos para a próxima eleição, caso o atual projeto seja aprovado. É um projeto essencialmente governista, que sempre dará mais dinheiro àquele que ganhou as últimas eleições. Outros países distribuem recursos de uma forma mais competitiva. A Costa Rica e a Bolívia, por exemplo, reembolsam os custos da eleição proporcionalmente ao sucesso eleitoral que o partido tem neste pleito.
JU - Trata-se de um modelo mais justo?
Speck - Sem dúvida. Se a oposição, por exemplo, achar que ela tem chances de ganhar ou se tiver sucesso na eleição, receberá recursos proporcionalmente. O que critico na atual proposta do governo é que ela acaba incluindo uma tendência perigosa de sempre favorecer quem está no governo, em detrimento da oposição. Como já analisamos, existe uma estreita relação entre financiamento de campanha e sucesso eleitoral. No Brasil, o número de votos é em grande parte determinado pelo montante de recursos alocados nas eleições.
JU - Em que medida as grandes contribuições são uma ameaça ao estado democrático?
Speck - Esse é o risco estrutural de campanhas que são financiadas por poucos doadores empresariais contribuindo com valores elevados para campanhas. Se as empresas alocam mais recursos que o cidadão, isso passa a ser um problema estrutural da democracia. O dinheiro acaba valendo mais que o cidadão. O risco de corrupção do processo eleitoral deriva tanto dos montantes elevados, que colocam em xeque o princípio da igualdade dos cidadãos no processo eleitoral, como também da dependência relativa do candidato de poucos financiadores.
JU - O senhor poderia exemplificar?
Speck - Mais da metade dos candidatos em eleições no Brasil dependem de um ou poucos financiadores. Isso cria obviamente uma relação de dependência. Se o político fica refém de poucos doadores, fica também sujeito a pressões. A legislação de muitos países tenta dar conta desse problema. A reforma da legislação sobre financiamento político na Argentina, ocorrida em 2002, por exemplo, prevê que um único doador não poderá participar em mais do que 2% do financiamento total. Na Bolívia e no Equador, guardadas as diferenças percentuais, é a mesma coisa. O que é definido como risco é a dependência relativa de um candidato dos seus maiores doadores.
JU - Qual seria o modelo ideal?
Speck - Tem que dar conta desses riscos a respeito da eqüidade dos cidadãos e da integridade dos futuros representantes. A legislação precisa incentivar as pequenas doações dos cidadãos. Na hora de você declarar seu imposto de renda, por exemplo, você pode deduzir uma quantia e atribuir essa dedução a um partido político. Isso dá ao cidadão a chance de dosar a quem ele dá e de inclusive não doar para ninguém. Se os partidos políticos tiverem acesso a recursos públicos na medida que interajam com os cidadãos, eles têm um incentivo para buscar uma base eleitoral que iria além do compromisso de entregar o voto. Em resumo: há mais mecanismos para se fazer um financiamento público incentivando a ligação entre cidadãos e partidos políticos. O outro ponto é que há modelos internacionais que mais transparentemente tentam separar o joio do trigo – ou seja, identificam tipos de doadores que são de risco.
“O governo passou a dever favores dentro do seu próprio campo”
JU - Quais seriam os mais nocivos?
Speck - As empresas que têm contrato público em muitos países são proibidos de doar recursos para campanhas ou partidos. No Brasil, essas doações são permitidas. Por outro lado, alguns vetos são difíceis de entender. Por exemplo: é proibido que a empresa doe mais que 2% de seu faturamento. E o cidadão não pode doar mais que 10% de sua renda do ano anterior. São valores altos, mas mesmo assim a lógica da restrição é difícil de entender. O que diz essa lógica? Que as empresas e os cidadãos são desiguais por ordem da lei. Trocando em miúdos: o pobre tem menos direito de influir em eleições. Na maioria dos outros países, na verdade, a legislação caminha no sentido diametralmente oposto – tenta estabelecer tetos máximos para as campanhas, nos tornando mais iguais.
JU - Esse modelo atenuaria os efeitos da corrupção?
Speck - Uma legislação sobre financiamento de campanhas é sempre um compromisso entre um ideal democrático e uma demanda real de competição política. De um lado, temos os ideais bonitos. Prega-se um debate em torno de idéias, excluindo o dinheiro. Mas as coisas infelizmente não funcionam assim. Você precisa de recursos para comunicar-se com o eleitor, sobretudo num país grande como o Brasil, com enormes circunscrições eleitorais. Somente com recursos financeiros você garante que os eleitores tenham acesso a uma certa pluralidade de opiniões e propostas, podendo escolher entre vários candidatos. O ideal seria incentivar as pequenas doações, subsidiando-as com recursos públicos. É esse o primeiro ponto. Em segundo lugar, é irreal achar que poderíamos excluir todas as empresa do financiamento de campanha. Na teoria, a corporação não tem lugar na representação; esta seria assunto exclusivamente dos cidadãos. Mas, na prática, não é assim. Os recursos dos cidadãos não são suficientes para bancar as campanhas. E as empresas buscam um caminho para se aproximar dos candidatos. Por este motivo muitos países optam por permitir estas doações da iniciativa privada, colocando determinadas restrições.
JU - Qual seria a proposta mais razoável?
Speck - O modelo brasileiro de financiamento privado é muito liberal neste momento. Eu sugiro três modificações. Em primeiro lugar, acabaria com a regra que torna desiguais as empresas e os cidadãos. Não faz sentido vincular os tetos para as doações privadas ao poder econômico dos cidadãos ou das empresas. A finalidade da legislação deve ser nivelar os doadores, não torna-los desiguais por lei. Em segundo, excluiria algumas pessoas jurídicas de contribuir para campanhas – atualmente é vetada a participação de entidades públicas, sindicatos e federações empresariais, concessionárias de serviços públicos e entidades estrangeiras. Além dessas, proibiria os contratistas de serviços de obras dos estado. Na terceira modificação, introduziria um limite para a dependência dos candidatos de um único doador. Não é possível que um representante financie metade de sua campanha com recursos de uma única empresa. Como vai manter a sua independência?
JU - A reforma política sai ou não?
Speck - Acho difícil, não por conta do financiamento, mas por causa da questão polêmica da introdução da lista fechada. A lista fechada mudaria substancialmente as regras eleitorais. Os atores políticos estão muito inseguros sobre como essa mudança influiria as chances futuras da sua reeleição. Acho pouco provável que eles assumam um risco tão grande.
JU - O fracasso da reforma política não seria um efeito negativo no combate à corrupção?
Speck - Não, necessariamente. Sou contra o sonho da grande reforma política. A minha expectativa é que os reformadores na política se concentrem em mudanças institucionais num patamar inferior. As grandes mudanças sempre têm um custo alto de readaptação dos atores políticos. Melhorar gradualmente a legislação de financiamento eleitoral, a auditoria governamental realizada pelos Tribunais de Contas ou o sistema de controle interno têm menos repercussão no grande cenário político atual, mas são muito mais interessantes, já que não se questionaria o arcabouço institucional básico do estado brasileiro, como acontece nos projetos de grandes reformas estruturais. Podemos fazer pequenos ajustes que são factíveis e que não dependam tanto de questões ideológicas ou de orientação política e sim de questões mais técnicas. É preciso aumentar a eficácia do estado e também a possibilidade da participação social na fiscalização.
JU - Como aperfeiçoar, por exemplo, a fiscalização no âmbito parlamentar?
Speck - Uma reformulação das Comissões Parlamentares de Inquéritos, para torná-las realmente comissões de investigação da minoria. Esse tema está na berlinda agora, mas já era um problema recorrente no governo passado. Invariavelmente, a CPI era bloqueada pela maioria. Esse é um problema da estrutura institucional criada pelo regimento interno do Senado e da Câmara. Outro problema estrutural de pequeno porte, mas que muda significativamente o comportamento dos atores políticos, é a regra das investigações contra parlamentares por quebra de decoro parlamentar. Convivemos com casos nos quais deputados e senadores renunciam antes que o processo é encaminhado à Comissão de Ética, como ocorreu nos casos do Arruda e do ACM. Essa renúncia tem efeito suspensivo sobre um possível processo de investigação que poder resultar na cassação do mandato e na perda temporária dos direitos políticos. Trata-se de uma falha estrutural grave que alimenta o comportamento cínico dos atores políticos. ACM, por exemplo, renunciou e voltou com uma votação maciça. Isso certamente não afirma padrões de moralidade.
JU - Padrões de moralidade que hoje passam pelas alianças...
Speck - Isso terá um preço altíssimo. Na verdade todos os comentários giram em torno dos efeitos políticos colaterais desse jogo que opõe aliados e oposição. Do lado do governo vêm prevalecendo essas dinâmicas muito estranhas de se criar débitos. O governo passou a dever favores e retribuições dentro do seu próprio campo. O saldo negativo está crescendo e em algum momento será cobrado.
JU - Até que ponto isso faz parte do jogo político, como apregoam os parlamentares?
Speck - A oposição tem como uma de suas funções primordiais criticar o governo. Já o governo precisa fazer sua escolha e sua conta. Acho que teria de ter outra saída, por exemplo, com a renúncia temporária de José Dirceu, como ocorreu com o chefe da Casa Civil de Itamar Franco. Isso acabaria com os argumentos da oposição. A outra saída teria sido permitir a instalação da CPI. O desgaste seria menor. Acho que não deu certo a conta do custo-benefício que o governo fez.
Quem é Bruno Speck
Bruno Wilhelm Speck nasceu na Alemanha em 1960 e estudou Ciência Política, História e Letras na Albert-Ludwigs Universität em Freiburg, Alemanha. Foi pesquisador auxiliar durante vários anos no Departamento de Ciências Políticas daquela universidade. Em 1986 realizou um estágio na Favela Jacarezinho no Rio de Janeiro com apoio da Carl Duisberg Gesellschaft. Formou-se em 1989 e em 1995 concluiu o doutorado em Ciência Política na Universidade de Freiburg com tese sobre "Correntes do Pensamento Político-Social no Brasil no Século XX". Foi pesquisador visitante no Instituto Max Planck de Direito Penal Internacional e Comparativo e na Universidade Livre de Berlim. Atualmente é professor na Unicamp e pesquisador na Transparência Brasil. Consultor do Utstein Anti-Corruption Resource Centre no Christian Michelsen Institute (Noruega). Organizou o livro Caminhos da Transparência. Análise dos Componentes de um Sistema Nacional de Integridade (Editora Unicamp, 2002)
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/marco2004/ju245pag06.html
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