segunda-feira, 21 de abril de 2008

Dante, poète ésotériste?



"Meu ver foi mais longe que nosso falar"


49. Bernard sorria e me fazia um sinal para olhar para o alto, mas eu jà estava por mim mesmo da maneira que ele queria: como minha vista, tornando-se lìmpida, entrava cada vez mais no raio da alta luz que por si mesma é verdadeira. 55 A partir desse ponto meu ver foi mais longe que nosso falar, que cede a visão, e a memòria cede a esse excesso. Assim é aquele que vê sonhando, e, quando o sonho acaba, a paixão imprimida permanece, 60 e ele não tem mais lembrança de outra coisa, assim eu estou agora, pois quase tudo cessa minha visão, e dentro de meu coração escorre ainda a doçura que nasceu dela. Assim a neve se destaca do sol; 65 assim ao vento nas folhas leves se perdia a sentença de Sibylle (1): Ô luz soberana que tanto te elevas acima dos pensamentos mortais, dê novamente um pouco a meu espìrito daquilo que você parecia, 70 e torne minha lìngua tão potente que uma centelha de tua glòria possa chegar às pessoas futuras; se ela volta um pouco à minha memòria e ressoa suavemente nos meus versos, 75 nòs conceberemos melhor tua vitòria. Eu creio, pela acuidade que eu senti no momento, do raio vivo, que se meus olhos estivessem se desviado dele, eu teria me perdido. E eu me lembro que eu fui mais ousado 80 por isso mesmo a resistir, até unir meu olhar com o valor infinito. Ô graça muito abundante que me fez presumir de plantar meus olhos no fogo eterno, tanto que eu consumia nele a vista ! 85 Na sua profundeza eu vi que se recolhe, ligado com amor em um volume, o que no universo dissemina-se: acidentes e substâncias e suas modalidades como derretidos juntos, de maneira 90 que o que eu digo é simples clarão.
Eu creio que eu vi a forma universal desse nò, pois dizendo isso eu sinto em mim aumentar o prazer. [...] 97 Assim minha alma, em suspenso, olhava fixamente, imòvel, atentiva, e se inflamava de sem cessar a olhar ainda. 100 Nessa luz nòs nos tornamos de tal maneira que se desviar dela para uma outra visão é impossìvel para nunca consentir pois o bem, que é ùnico objeto de querer, se acolhe todo nela, e fora dela 105 està com defeito o que là é perfeito.
Minha palavra doravante serà mais curta, mesmo com relação com o que eu tenho na memòria, e de uma criança que banha ainda a lìngua no seio. Não mais do que uma ùnica aparência 110 fosse murada na luz que eu via, pois ela é sempre como ela jà foi antes; mais pela vista que ganhava em valor em mim que olhava, uma ùnica aparência, enquanto que eu mudava, para mim se transmutava. 115 Na profunda e clara substância da alta luz três cìrculos me apareceram, de três cores e de tamanho ùnico; e um pelo outro, como iris em iris, parecia refletido, e o terceiro parecia um fogo, 120 que daqui e dali igualmente respira. Ô como o dizer é fraco e que ele corre a meu pensamento ! Tão curto, diante o que eu escrevo, que dizer "pouco" não é suficiente. Ô luz eterna que apenas em você reside, 125 sozinha te pensa, e por você escutada e te escutando, ri a você mesma, e te ama ! Esse cìrculo assim concebido parece em você luz refletida longamente contemplada por meus olhos 130 no interior de si mesmo, de sua mesma cor, me parecia pintado de nossa imagem; tanto que meu olhar estava todo nele. Tal é o geométrico apegado todo inteiro a medir o cìrculo e que não pode encontrar 135 pensando, o princìpio que falta, assim estava eu mesmo nessa vista nova : eu queria ver como se junta a imagem ao cìrculo, como ele se liga; mas para esse vôo minha asa estava muito fraca: 140 senão que então meu espìrito foi surpreendido por um brilho que vinha a seu desejo. Aqui a alta fantasia perdeu sua potência, mas jà ele girava meu desejo e querer assim como roda igualmente empurrada, 145 o amor que move o sol e as outras estrelas.


La Divine Comédie, Le Paradis, Chant XXXIII, 49-145, Trad. Jacqueline Risset, Garnier- Flammarion, 2004.

Nota: 1. Sibylle de Cumes: adivinha da Itàlia do Sul, figura do esoterismo antigo e medieval, imortalizada por Virgile. Ela escrevia suas sentenças sobre folhas que um sopro do vento, penetrando na sua caverna, dispersava.


Chaves de leitura

Considerado como o criador da lìngua italiana, Dante (1265-1321) é um dos maiores genios da literatura. E sua obra prima - La Comédie, dita divine a partir de 1555 - é também a obra prima da Idade Media literària. Mas ele também seria aquele do esoterismo medieval cristão ?Neglicenciada até mesmo atacada pela maioria dos analistas "oficiais" da obra, essa chave de leitura pareceu capital para alguns esoteristas dos séculos XIX e XX, entre eles brilha René Guénon com seu estudo lapidàrio e enigmàtico, O Esoterismo de Dante (1925). Uma interpretação rica em questões difìceis: as do esoterismo cristão em geral, redubladas das que teem relações entre o esoterismo e a literatura. Por sua inevitàvel dialética entre o "dizer" e o "falar", por seu necessàrio uso da alegoria e sua profundeza de vista, toda grande obra poética não poderia com efeito ser qualificada de "esotérica" ? A fortiori no contexto da cultura medieval cristã, atravessada pela temàticas espirituais e simbòlicas por causa da sua pròpria relação com a Escritura santa, com a natureza, com a ciência, etc ?O que nòs chamamos hoje "esoterismo" para designar um campo especìfico da esperiência e da cultura humana, tinha então todo seu lugar na visão do mundo global das elites do tempo. Dizendo de outra maneira, a obra de Dante é intrìnsecamente esotérica e leva a um conhecimento "reservado" - eventualmente transmitido por uma sociedade "secreta" ? Ou então ela tornou-se esotérica através um olhar sobre ela a posteriori ?


Sob o sinal de "três"

Fechando o trinta e três e ùltimo canto do Paradis, esse texto contem indìcios que permitem de se forjar uma opinião. Mas antes de mostrar os detalhes, vamos voltar à estrutura global da La Divine Comédie, ela mesma rica de ensinamentos, particularmente numerològicos. Colocada sob o sinal de três, ela é formada de três partes - O Inferno, O Purgatòrio e O Paraìso - divididas em 33 cantos, aos quais se acrescenta um Prologue, ou seja 100 cantos no total; esse nùmero sendo um sìmbolo da união perfeita entre a unidade e a totalidade, quando "3" leva à Trinidade. Inventado por Dante para o ocasião o rìtmo poético aqui presente é o tercet: um conjunto de 3 versos que possuem cada um 11 sìlabas, ou seja 33 sìlabas por um tercet.... La Divine Comédie possue então claramente uma arquitetura "geométrica"onde o todo e a parte se respondem segundo regras harmoniosas de acordo com o propòsito: descrever a totalidade do universo a partir de princìpios metafìsicos e das leis analogiques que o constituem (verso 85-93).


Uma viagem iniciàtica

Sobretudo a obra inteira é uma viagem iniciàtica - alguns até evocaram um "vol chamanique" - que revela ao poeta os arcanes da Verdade. Descida mortìfera no Inferno depois subida progressiva e purificadora através do Purgatòrio em direção da apothéose do Paraiso, esse caminho espiritual também é uma transmutação, que leva Dante através os diferentes "estados" da realidade, até a visão direta de Deus. Seguindo nessa ascensão o poeta latino Virgile - referência a toda herança antiga - depois Béatrice, a mulher amada, o vidente exalta uma espiritualidade da procura e da união, onde o desejo e o amor ocupam o primeiro lugar. Sinal de uma filiação chevaleresque assim como alguns supõem lembrando as relações de Dante com grupos misteriosos, os "Fidèles d'Amour" e a "Fede Santa " ?Essa passagem capital da La Divine Comédie é colocada sob a autoridade de um guia singular: saint Bernard de Clairvaux (1090-1153), o protetor da ordem des Templiers, reprimida no sangue por Philipe le Bel, entre 1307 e 1314, quando Dante escrevia seu poema....

- E.V. -

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