sábado, 26 de abril de 2008

Sufismo - Doutrina da unidade

"O ser de Deus e o ser do Universo são um"

A Essência de Deus e seu ser são Um; seu Ser e o ser do universo são um; o ser do universo e o universo são um. [....] Assim é o ser do universo, em relação com o ser de Deus - ele é um -, pois o universo considerado independentemente não existe. Sua existência exterior é sò aparência, e não realidade. Assim, a imagem no espelho, se bem que possuindo uma forma, não possui uma verdadeira existência.

- Hamzah Fansûri ( Indonésia, XVI Siécle.), Asrâr ul-'Arijûn, Anthologie Du Soufisme, Actes Sud, 1995.


Quando (esses pàssaros) foram totalmente purificados e desnudados de toda coisa, eles encontraram todos uma nova vida na luz do Simorgh. Eles tornaram-se assim novos servidores e foram uma segunda vez mergulhados na estupefacção. Tudo o que eles haviam podido fazer antigamente foi purificado e mesmo apagado do coração deles: o sol da proximidade jogou sobre eles seus raios, e as almas deles foram resplandecentes. Então, no reflexo do rosto deles, esses "trinta pàssaros" - "sî morgh - mundanos contemplaram a face do Simorgh espiritual. Eles se apressaram de olhar esse Simorgh, e eles se asseguraram que ele não era outro a não ser Simorgh. Todos cairam então na estupefacção; eles ignoravam se eles tinham ficado eles mesmos ou se eles tinham se tornado o Simorgh e que o Simorgh eram realmente os "trinta pàssaros" - sî morgh". Quando eles olhavam do lado de Simorgh, eles viam bem que era o Simorgh que estava nesse lugar, e, se eles voltassem seus olhares em direção deles mesmos, eles viam que eles mesmos eram o Simorgh. Enfim, se eles olhassem ao mesmo tempo dos dois lados, eles se asseguravam que eles e o Simorgh sò formavam na realidade um ùnico ser. Esse ùnico ser era Simorgh e Simorgh era esse ser. [...] Como eles não compreendiam nada a esse estado de coisas [...], eles pediram ao Simorgh de lhes revelar o grande segredo [....]. Então, o Simorgh lhes respondeu: " O sol de minha majestade é um espelho; aquele que quer se vê dentro dele; ele vê nele sua alma e seu corpo; ele se vê nele todo inteiro [....]. Se bem que vocês estejam extremamente mudados, vocês se veem vocês mesmos como vocês eram antes....

'Attâr, La Conférence Des Oiseaux, Trad. Garcin de Tassy, Èditions D'Aujourd'hui, 1975.


È o recolhimento, em seguida o silêncio; depois a afasia e o conhecimento; depois a descoberta; depois o desnudamento. E é a argila, depois o fogo; depois a claridade e o frio; depois a sombra; depois o sol. E é o jardim, depois a planìcie; o deserto, e o rio; depois a collheita; depois o ressecamento. E é a embriaguez, depois a ressaca; depois o desejo, e a aproximação; depois a junção; depois a alegria. E é o abraço, depois a descontração; depois o desaparecimento e a separação; depois a união; depois a queimação.

- Hallâj, Diwân, Trad. Louis Massignon, Le Seuil, 1981.



Irmão ! O sàbio faz o bem sem nenhum desejo e evita o mal sem nenhum julgamento. Ele frequenta todo mundo sem nenhum apego, fica separado de todos sem nenhum pensamento de fuga e vê Deus através tudo sem que exista nenhum dualismo. Sua maneira de ser é diferente de todas as outras sem que ele faça a diferença entre elas, ele adota todas as maneiras de ser sem ser tocado por nenhuma. Ele deseja Deus sem nenhuma imploração e ele O esquece as vezes sem distinguir a realidade do esquecimento da realidade da lembrança [....]. O sàbio é ao mesmo tempo Deus e criatura. Ele encontra o Senhor no estado de servidão e acha esse estado idêntico ao estado senhorial. Ele não liga para esses estados pois sua realidade ultrapassa a senhoria e a servidão. Se você pergunta ao sàbio se ele conhece alguma coisa ou se ele acha alguma coisa, ele te responderà que ele não sabe nada e que ele não acha nada. Se você lhe pergunta se alguma coisa lhe é desconhecida ou se ele procura alguma coisa, ele te responderà que nada lhe é desconhecido e que ele não procura nada pois tudo lhe é conhecido e se encontra nele. O sàbio sabe tudo e não sabe nada. Ele vai de contradição em contradição [....] e isso não lhe causa nenhuma preucupação. Ele é a ele mesmo sem ele mesmo. Tudo no mundo acontece pela vontade do sàbio e sem sua vontade: ele não procura nada nem evita nada. O sàbio é aquele que conhece, mas isso é apenas uma expressão: ele é idêntico ao objeto de seu conhecimento. [....] O sàbio està além do espaço e do tempo; esse mundo daqui e o outro lhe são indiferentes, o paraìso e o inferno lhe são indiferentes.

- Khâje Khord (Afghanistan, XVIII S.), Résâle-ye'Âref, Trad. M.A.Amir - Moezzi, In La
Sincérité, L'Insolence Du Coeur, Autrement, 1995


Chaves de leitura

Raiz do esoterismo islâmico, a "doutrina da Unidade" afirma a "unicité" do Ser: Sò existe um ùnico Ser e este Ser é Deus, como resume no texto acima o soufi indonésien Hamzah Fansûri. Sim, apenas Deus é absolutamente real, e tudo o que aparece no mundo procede Dele como o reflexo procede do espelho ou do raio, do sol. Assim é para o soufismo o senso do Tawhid, base doutrinal do Islam: "Lâ ilâha illa'L-lâh" - " não existe deus, a não ser Deus" -, afirmado de vàrias maneiras diferentes no Corão: "Ele é o Primeiro e o Ùltimo, o Exterior e o Interior" (57,3), "Qualquer lado para onde você vire, là é a face de Deus" (2,115), etc. Também, o Absoluto não é uma abstração longìqua mas o real mesmo, sempre presente, là, "à portée de main". Uma proximidade....hélas muito difìcil de "realizar", e que é preciso então conquistar através as mùltiplas provações da - "quête" - procura espiritual.


A alegoria dos trinta pàssaros

Ìcone do genio poético e simbòlico do soufismo, a fabulosa Conferência dos pàssaros do persan 'Attâr (v.1150-v.1220) é inteiramente construìda sobre esse paradoxo.
Cansados de uma existência medìocre e inùtil, os pàssaros voam a procura do rei mìtico deles chamado "Sîmorgh", ou seja "trinta pàssaros" em persan. Mas a maioria deles param no caminho, cansados, decepcionados ou seduzidos pelas surpresas da viajem. Conduzido pela "huppe", um pequeno grupo perseverante atravessa no entanto os desertos e os "sete vales de maravilhas e terror", à savoir as etapas e os obstàculos da Via. Exaustos, as asas queimadas, trinta pàssaros - "sî morgh" - alcançam enfim o Pàssaro Rei, metàfora de Deus. Cem cortinas se abrem, uma luz viva brilha, mas os viajantes sò veem um espelho....Uma voz ressoa de repente, clamando que esse espelho é a ùnica verdade, antes de acrescentar um verso que os ecos ressoarão muito tempo na cultura persane: " Vocês fizeram uma longa viagem para chegar até o viajante." Passagem do fini ao infinito, do eu ao "Soi" divino, o caminho espiritual consiste com efeito em remontar o rio da manifestação universal até a sua Fonte, onde a alma se reconhece e se esvanece. Transcendência e imanência, "Criador" e "criatura", "Aparente" (zâher ou "exoterismo") e "Escondido" (bâtin ou "esoterismo"): todos os aspectos opostos do Real se esposam na grande unidade.


A absorção em Deus

Realização ùltima do soufismo, nòs chamamos Fanâ essa "absorção" ou "aniquilamento" em Deus, tão bem demonstrada na descrição paradoxal do "sàbio" que a alcançou segundo o Afghan Khâje Khord. Experiência onde apenas Deus permanece, "Identidade Suprema" e "Não-Dualidade" que lembra o "Nirvana" - "Extinção" - cume do boudismo, ou a "Liberação", seu equivalente hindu. Mas antes de alcançar esse estado de santidade, o iniciado deve transitar por mùltiplas "estações espirituais", etapas intermediàrias descritas no seio das diferentes filiações esotéricas e que correspondem aos diferentes nìveis hieràrquicos da realidade. Evocados poeticamente por esse texto do ilustre Hallâj (v.858-922), essas estações não são estados de êxtase fugaz, mas os estados sucessivos de uma revelação definitiva. Como disse o Andalou Ibn Arabi (1165 - 1240) - chamado "o maior dos mestres" - todo homem é com efeito chamado a tornar-se "a mais perfeita imagem de Deus". "Homem perfeito", o sàbio que alcançou esse cume torna-se no senso mais pleno uma manifestação da Presença e do Amor divinos. O que explica a frase surpreendente " Glòria a mim ! " de um Bistâmi (morto mais ou menos em 875) e também a frase tão famosa quanto escandalosa " Eu sou a Verdade" - quer dizer....Deus - que custou a vida de Hallâj. " Blasfêmia ! ", dirão os rigoristas; "sublime humildade! ", responderão os soufis. Aquela dos realizados que, esvanecidos deles mesmos, deixam Deus falar através a boca deles.

Réza Moghaddassi et Èric Vinson -

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