sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Estoicismo - Èpictète

"O que não depende de nós mesmos é inconsistente, escravo."


1. Das coisas que existem algumas dependem de nós mesmos, outras não dependem de nós mesmos. O que depende de nós mesmos, são nossos julgamentos, nossas tendências, nossos desejos, nossas aversões, em uma palavra tudo o que é operação de nossa alma; o que não depende de nós mesmos, é o corpo, a fortuna, os depoimentos de consideração, as obrigações pùblicas, em uma palavra tudo o que não é operação de nossa alma.
2. O que depende de nòs mesmos é, por sua natureza, livre, sem impedimento, sem contrariedade; o que não depende de nòs mesmos é inconsistente, escravo, sujeito a impedimento, estrangeiro.
3. Então lembre-se que se você olha como livre o que por sua natureza é escravo, e como sendo seu o que pertence a outrem, você serà contrariado, você estarà de luto, você serà perturbado; você vai brigar com os deuses e com os homens; mas se você sò olha como sendo seu o que pertence a você e se você olha como sendo de outrem o que, com efeito, é de outrem, ninguém vai te contrariar nunca, ninguém te impedirà, você não vai brigar com ninguém, você não acusarà ninguém, você não farà absolutamente nada contra sua vontade, ninguém te incomodarà; você não terà inimigos, pois você não sofrerà nada de nocivo.
4. Aspirando a esses bens tão grandiosos, pense que você não deve procura-los sem fazer esforços, que é preciso renunciar inteiramente a certas coisas e adiar outras no tempo presente. Mas se além desses bens você ainda quer o poder e a riqueza, talvez você não obtenha nem mesmo essas avantagens porque você aspira ao mesmo tempo aos outros bens, e, em todo caso, o que é uma certeza, é que você não terà os ùnicos bens que podem nos procurar a liberdade e a felicidade.
5. Dessa maneira, para toda idéia rude, se exerça a dizer imediatamente: " Você é uma idéia, e você não é exatamente o que você representa". Depois examine-a, aplique as regras que você sabe, e primeiro e antes de todas as outras regras aquela que faz reconhecer se alguma coisa depende ou não depende de nòs mesmos, e se a idéia é relativa a alguma coisa que não depende de nòs mesmos, esteja pronto para dizer: "Isso não me interessa."

V

O que perturba os homens, não são as coisas, são os julgamentos que eles têm sobre as coisas. Assim a morte nada tem de temìvel, senão ela teria parecido assim a Sòcrates; mas o julgamento que a morte é temìvel, eis o que é temìvel. Então dessa maneira quando nòs somos contrariados, perturbados ou aflitos, nòs não devemos jamais acusar os outros e sim a nòs mesmos, quer dizer nossos pròprios julgamentos. È um ignorante que briga com os outros por causa de suas infelicidades; é um homem que começa a se instruir que briga consigo mesmo; é um homem completamente instruìdo que não briga nem com os outros nem consigo mesmo.

VI

Não te sinta orgulhoso de nenhuma avantagem que pertença a outrem. Se um cavalo dissesse com orgulho: " Eu sou bonito ", seria suportàvel; mas você, quando você diz com orgulho: " Eu tenho um cavalo bonito", aprenda que você tem orgulho de uma avantagem que pertence ao cavalo. Então o que é que pertence a você ? A utilização de suas idéias. Quando você as utiliza conforme a natureza, então tenha orgulho; pois você se orgulharà de uma avantagem que pertence a você.

VII

Não peça que o que acontece aconteça como você o deseja; mas deseje que as coisas aconteçam como elas acontecem, e você serà feliz.

IX

A doença é uma contrariedade para o corpo, mas não para a vontade, se ela não o quiser. Ser aleijado é uma contrariedade para a perna, mas não para a vontade. Diga a você mesmo a mesma coisa a cada incidente; você acharà que é uma contrariedade para outra coisa, mas não para você.


X

A cada ocasião que se apresente, volte-se para você mesmo e procure qual é a faculdade que você tem em você mesmo para te conduzir: se você vê uma mulher bonita, você encontrarà em você mesmo a faculdade da continência; se apresenta-se uma fadiga a suportar; você encontrarà a capacidade de resistência; uma injùria, você encontrarà a paciência. Se você adquire esse hàbito, suas idéias não te vencerão.

- Èpictète, Manuel, 1 1-5, V-VI, VIII - X, Trad. F.Thurot, Hachette, 1889.


Èpictète


O Manual d'Èpictète é um conjunto de pensamentos recolhidos por um de seus alunos, Arrien, futuro historiador e alto funcionàrio do Império romano no governo de Hadrien ( 76-138). Como Sòcrates com efeito, Èpictète não escrevia e, sem a intervenção de seu discìpulo, seu ensinamento teria sem dùvida caìdo no esquecimento.


Exercícios espirituais

O Manual consiste essencialmente em exercìcios espirituais (meletai); os filòsofos estòicos tinham exercido essa pràtica desde o fim do século iv av.J.-C. Os exercìcios eram praticados apois o aprendizado de princìpios mais " metafìsicos" (lògica, gnoséologie, etc.) e preparavam o espìrito para a ascese, terceira e ùltima parte do ensinamento estòico. Os meletai compreendiam métodos para facilitar a reflexão moral e as regras de conduta.O princìpio do pensamento moral de Èpictète é enunciado desde o começo do Manual: entre as coisas, algumas dependem de nòs mesmos, outras não. A fortuna, a glòria, o poder, as riquezas não dependem de nòs mesmos - essas possessões "inconsistentes" podem desaparecer no caso de uma penùria, de um incêndio ou de um golpe de Estado. Nosso corpo também não depende de nòs mesmos. Um acidente ou uma doença podem nos privar do uso de nossos membros. O corpo pertence então ao conjunto desses "bens" que nos possuem bem mais do que nòs os possuìmos. Nòs nos acreditamos ser os mestres deles, mas nòs somos seus escravos.



Desejar o necessàrio

Os meletai visam a libertar os discìpulos dessa escravidão. A liberdade, assimilada a felicidade (eudémonia), consiste a desejar "o que acontece" ou mais precisamente, o que deve acontecer conforme a ordem natural. Nisso reside para ele a ataraxie que procuram igualmente os epicurianos e os céticos. Isto supõe que o homem, fazendo ato de vontade, possa afirmar sua liberdade diante as circunstâncias da vida mais igualmente diante seus pròprios julgamentos, desejos e aversões. Para aqueles que duvidam que o homem possa alcançar com tanto sucesso o domìnio de si mesmo, Èpictète respondia pelo exemplo, o que demonstra a seguinte anedota:
Antes de ser libertado e de fundar sua escola estòica, Èpictète era o escravo de Èpaphrodite, um mestre algumas vezes cruel. Existe a anedota que narra que um dia, para castigar seu escravo, ele deu a ordem para torcerem sua perna. Èpictète teria então lhe dito: " Se você continuar, ela vai quebrar." A perna quebrou. Então o sàbio teria acrescentado: " Bem que eu te disse que ela iria quebrar". Voilà o exemplo bem demonstrado de uma "contrariedade" para o corpo de quem a alma, pela força da vontade, deve se despegar e dessa maneira ficar livre.Èpictète é consciente que nossos desejos e nossas aversões podem muito bem, como gênios maléficos, se introduzir em nossos pensamentos. Mas é necessàrio que a alma resista para afirmar sua liberdade.
Como? Graças a reflexão e aos diferentes métodos dos exercìcios espirituais. Essa disciplina não é sempre fàcil de aplicar. O filòsofo fala de "idéias duras", idéias que se misturam a alma e a conduzem além do que depende dela. Para lutar contra elas, é preciso encara-las como elas são: simples idéias. Os fantasmas e os temores não são a realidade que eles representam.
Cabe a nòs mesmos, então, de domina-los, pois disso depende a nossa liberdade.


O Manual d'Èpictète é uma referência absoluta da filosofia moral. Ele exerceu uma influência em Marc Aurèle, outro grande estòico. Mas os néoplatoniciens como Simplicius de Sicile também foram influenciados por esse ensinamento. Vàrios elementos de sua moral influenciaram igualmente a moral cristã. O jesuìta Ricci ( 1552-1610) não utilizou o Manuel para demonstrar aos letrados chineses que o cristianismo e o confucionismo compartilhavam pontos de vistas similares ?-

S.-J.A-

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