Paradoxo: hinduísmo, budismo e taoísmo seduzem um número crescente de Ocidentais, mas permanecem mal conhecidos e mal compreendidos. Nem sabedorias, nem filosofias, nem terapias, em uma palavra, imperceptíveis, essas espiritualidades resistem às nossas categorias e nos fascinam.
"Encontros do terceiro tipo"
Objetos espirituais mal identificados
Nós gostamos das delimitações, das classificações, das hierarquias, das identidades claras. O essencial do esforço ocidental é afinal de contas nos traçados de fronteiras. Trata-se sempre, para nós, de esclarecer os contornos de uma idéia, de um objeto, de um projeto, de uma ato. Nós nos esforçamos de estabilizar esses contornos e de operar escolhas. Por exemplo: entre o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o homem e a natureza, os fiéis e os infiéis.
O movimento profundo, na Ásia, é exatamente o contrário: trata-se de apagar as barreiras, as distinções, de dissolver ou de afastar o sujeito fechado, o conceito que resiste, as aparentes contradições que bloqueiam o movimento. Último objetivo: a fusão com o Todo, a inserção imediata em um real fluido e movediço. Chegar a esse estado onde todas as fronteiras param ou se apagam, viver nessa indistinção suprema, tal seria a sabedoria.
Para não permanecer crispado em nossas classificações, nós evitaremos perguntar, sobre as escolas de vida asiáticas: trata-se realmente de religiões? Ou de filosofias? Ou ainda de espiritualidades, de vias de salvação, de terapias, de doutrinas-medicinais? È melhor imaginar um misto de tudo isso, segundo proporções variáveis e configurações distintas. Sem esquecer de acrescentar a essa mistura, finalmente "impura": magia e superstições, cultos locais, hibridações, encontros, fusões parciais, sincretismos, mestiçagens. Eis a realidade multiforme, assaz desconcertante, que nós chamamos, falta de uma denominação melhor, "grandes religiões da Ásia". Nossas categorias habituais conseguem mal considerar esse oceano de textos, de praticas, de crenças. Hinduísmo, budismo e taoísmo ultrapassam nossas classificações, e as reconsideram.
È preciso tempo para conscientizar-se. Ora a descoberta no Ocidente das religiões da Ásia é recente. Esse encontro não tem mais de dois séculos. No nível da história universal ela está começando....[.....]
Uma descoberta recente
O que significa então, uma descoberta recente? Simplesmente isso: é recente o conhecimento erudito, exato, fundado sobre a decifração das línguas, a tradução dos textos fundamentais, a reconstituição da história das escolas e das filiações. Para o hinduísmo, foi preciso esperar 1784 para ver se fundar, em Calcutá, a primeira sociedade científica capaz de produzir um dicionário do sanskrit, uma tradução das Leis de Manu, código jurídico-ético-religioso dos brâmanes, ou da Bhagavad-Gita, poema filosófico místico e especulativo, inserido na epopéia do Mahabharata. Alguns anos antes, o naturalista Pierre Sonnerat ainda afirmava que o conhecimento do sanskrit, a língua sagrada da Índia, estava definitivamente perdido ! Só é então no fim do século XVIII que começa a emergir, na consciência da Europa, um continente de literatura, de textos, de poesia, de filosofia e de espiritualidade.
Para o budismo, será preciso esperar ainda duas gerações mais ou menos antes de conseguir a denomina-lo, a vislumbra-lo na sua unidade e na sua diversidade. Na Europa dos anos 1830, ninguém, conhece o conteúdo da pregação do Boudha, nem o que distingue especificadamente sua doutrina.
O imenso quebra-cabeça lingüístico e cultural da diáspora budista é reconstituído passo a passo, da Mongólia até o Japão, durante o século XIX. Para conhecer os mestres taoístas, é preciso esperar igualmente o século XIX e sobretudo o século XX. Durante o mesmo tempo, várias ciências nasceram, física atômica ou biologia molecular. Elas conquistaram o planeta, dos ensinamentos elementares até as instituições de pesquisa. [.....].
Aspectos desconcertantes
Apesar de tudo, esse argumento da complexidade é bem fraco. A mínima disciplina científica ou técnica não exigiria também um aprendizado exigente? Os obstáculos residem de preferência nos aspectos desconcertantes, para um espírito do Ocidente, dessas religiões. Esse termo, aliás, não é conveniente para elas. Para nós, "religião" e "revelação" se conjugam. A família dos monoteísmos é unida pela idéia que o Deus único, criador do mundo, se dirige à humanidade, seja pela Lei, o Filho ou o Profeta. Na Índia ou na China, não existe isso. Os Veda têm a reputação de existir de toda eternidade são supostos ter sido "ouvidos" pelos primeiros sábios, mas não formam uma mensagem de Deus. Nada corresponde com efeito, na Ásia, ao conceito de puro espírito criador, eterno e todo poderoso, exterior ao mundo e lhe ditando sua vontade.
O Atman-Brahman, no hinduísmo, é um Absoluto que engloba tudo, que forma a substância mesmo de nossa consciência como de toda vida e de todas as coisas, mas ele permanece fundamentalmente desprovido de intenção, estrangeiro a todo plano e a todo projeto. Não é de maneira alguma uma "pessoa" no sentido ocidental do termo. O budismo é mais ainda radicalmente estrangeiro à idéia de Deus, totalmente ausente de seu horizonte. Mas não é por essa razão um "ateísmo" no sentido ocidental do termo, que significa a negação explicita do Deus dos monoteísmos. Esse Deus simplesmente não é concebido.
Quanto ao Tao, esse "grande quadrado que não tem ângulo" e que pode evocar o infinito e o absoluto, ele não é distinto do mundo natural, e ele é igualmente desprovido de toda intenção que seria a realizar. Nós o compreendemos então: se a transcendência existe nesses lugares ela é diferente da nossa. isso não significa evidentemente que a categoria "religião" no sentido antropológico do termo, seja ineficaz. Nós encontramos, efetivamente, os rituais de passagem, as conciliações das forças humanas e super-humanas e, como em todas, votos para que as recoltas sejam boas, as crianças sadias ou os doentes curados.
Apesar de tudo, assim que nós olhamos de mais perto, ainda existem razões para ficar desconcertado. Com efeito, uma das funções principais da religião é, para nós, de conduzir a uma imortalidade no além. Hinduísmo e budismo se esforçam ao contrario de se liberar da existência. Uma vida eterna, no ponto de vista deles, seria a pior das torturas. O taoísmo segue um esquema contrarie, mas muito distante igualmente de nossas religiões, procurando o caminho de uma vida sem fim na perpetuação de nosso corpo.
Preconceitos e mal entendidos
Por outro lado, nós estamos acostumados ao fato que as religiões dêem nascimento à especulações filosóficas. Na Ásia, é de preferência o contrario. O budismo tornou-se uma religião, o taoísmo também, quando na origem eles não eram religiões. Também foi dito que o budismo como religião havia começado como um protestantismo, prática rígida e sóbria, e tinha acabado como um catolicismo, multiplicando intercessores locais, orações específicas e imagens piedosas.
Afinal, como fazer? Como sair dessas idéias repletas de ignorância e preconceitos? Não existem receitas milagres, e ninguém pula fora de sua própria cabeça. Mas seria conveniente, nisso como em muitas coisas, de botar entre parênteses, na medida do possível, julgamentos e atitudes passionais. Preferir a vontade de compreender ao invés das reações efetivas, fascinação ou repulsão. Nós deixaremos então de lado o entusiasmo ou o desprezo, o temor ou a esperança, para começar a se informar e a refletir.
- Roger-Pol Droit, pesquisador no CNRS, autor, entre outros, de L'Oubli de l'Inde (PUF, 1989), do Culte du Néant. Les Philosophes et le Boudha (Le Seuil, 1997) e de 101 expériences quotidienne ( Odile Jacon, 2001)
"Encontros do terceiro tipo"
Objetos espirituais mal identificados
Nós gostamos das delimitações, das classificações, das hierarquias, das identidades claras. O essencial do esforço ocidental é afinal de contas nos traçados de fronteiras. Trata-se sempre, para nós, de esclarecer os contornos de uma idéia, de um objeto, de um projeto, de uma ato. Nós nos esforçamos de estabilizar esses contornos e de operar escolhas. Por exemplo: entre o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o homem e a natureza, os fiéis e os infiéis.
O movimento profundo, na Ásia, é exatamente o contrário: trata-se de apagar as barreiras, as distinções, de dissolver ou de afastar o sujeito fechado, o conceito que resiste, as aparentes contradições que bloqueiam o movimento. Último objetivo: a fusão com o Todo, a inserção imediata em um real fluido e movediço. Chegar a esse estado onde todas as fronteiras param ou se apagam, viver nessa indistinção suprema, tal seria a sabedoria.
Para não permanecer crispado em nossas classificações, nós evitaremos perguntar, sobre as escolas de vida asiáticas: trata-se realmente de religiões? Ou de filosofias? Ou ainda de espiritualidades, de vias de salvação, de terapias, de doutrinas-medicinais? È melhor imaginar um misto de tudo isso, segundo proporções variáveis e configurações distintas. Sem esquecer de acrescentar a essa mistura, finalmente "impura": magia e superstições, cultos locais, hibridações, encontros, fusões parciais, sincretismos, mestiçagens. Eis a realidade multiforme, assaz desconcertante, que nós chamamos, falta de uma denominação melhor, "grandes religiões da Ásia". Nossas categorias habituais conseguem mal considerar esse oceano de textos, de praticas, de crenças. Hinduísmo, budismo e taoísmo ultrapassam nossas classificações, e as reconsideram.
È preciso tempo para conscientizar-se. Ora a descoberta no Ocidente das religiões da Ásia é recente. Esse encontro não tem mais de dois séculos. No nível da história universal ela está começando....[.....]
Uma descoberta recente
O que significa então, uma descoberta recente? Simplesmente isso: é recente o conhecimento erudito, exato, fundado sobre a decifração das línguas, a tradução dos textos fundamentais, a reconstituição da história das escolas e das filiações. Para o hinduísmo, foi preciso esperar 1784 para ver se fundar, em Calcutá, a primeira sociedade científica capaz de produzir um dicionário do sanskrit, uma tradução das Leis de Manu, código jurídico-ético-religioso dos brâmanes, ou da Bhagavad-Gita, poema filosófico místico e especulativo, inserido na epopéia do Mahabharata. Alguns anos antes, o naturalista Pierre Sonnerat ainda afirmava que o conhecimento do sanskrit, a língua sagrada da Índia, estava definitivamente perdido ! Só é então no fim do século XVIII que começa a emergir, na consciência da Europa, um continente de literatura, de textos, de poesia, de filosofia e de espiritualidade.
Para o budismo, será preciso esperar ainda duas gerações mais ou menos antes de conseguir a denomina-lo, a vislumbra-lo na sua unidade e na sua diversidade. Na Europa dos anos 1830, ninguém, conhece o conteúdo da pregação do Boudha, nem o que distingue especificadamente sua doutrina.
O imenso quebra-cabeça lingüístico e cultural da diáspora budista é reconstituído passo a passo, da Mongólia até o Japão, durante o século XIX. Para conhecer os mestres taoístas, é preciso esperar igualmente o século XIX e sobretudo o século XX. Durante o mesmo tempo, várias ciências nasceram, física atômica ou biologia molecular. Elas conquistaram o planeta, dos ensinamentos elementares até as instituições de pesquisa. [.....].
Aspectos desconcertantes
Apesar de tudo, esse argumento da complexidade é bem fraco. A mínima disciplina científica ou técnica não exigiria também um aprendizado exigente? Os obstáculos residem de preferência nos aspectos desconcertantes, para um espírito do Ocidente, dessas religiões. Esse termo, aliás, não é conveniente para elas. Para nós, "religião" e "revelação" se conjugam. A família dos monoteísmos é unida pela idéia que o Deus único, criador do mundo, se dirige à humanidade, seja pela Lei, o Filho ou o Profeta. Na Índia ou na China, não existe isso. Os Veda têm a reputação de existir de toda eternidade são supostos ter sido "ouvidos" pelos primeiros sábios, mas não formam uma mensagem de Deus. Nada corresponde com efeito, na Ásia, ao conceito de puro espírito criador, eterno e todo poderoso, exterior ao mundo e lhe ditando sua vontade.
O Atman-Brahman, no hinduísmo, é um Absoluto que engloba tudo, que forma a substância mesmo de nossa consciência como de toda vida e de todas as coisas, mas ele permanece fundamentalmente desprovido de intenção, estrangeiro a todo plano e a todo projeto. Não é de maneira alguma uma "pessoa" no sentido ocidental do termo. O budismo é mais ainda radicalmente estrangeiro à idéia de Deus, totalmente ausente de seu horizonte. Mas não é por essa razão um "ateísmo" no sentido ocidental do termo, que significa a negação explicita do Deus dos monoteísmos. Esse Deus simplesmente não é concebido.
Quanto ao Tao, esse "grande quadrado que não tem ângulo" e que pode evocar o infinito e o absoluto, ele não é distinto do mundo natural, e ele é igualmente desprovido de toda intenção que seria a realizar. Nós o compreendemos então: se a transcendência existe nesses lugares ela é diferente da nossa. isso não significa evidentemente que a categoria "religião" no sentido antropológico do termo, seja ineficaz. Nós encontramos, efetivamente, os rituais de passagem, as conciliações das forças humanas e super-humanas e, como em todas, votos para que as recoltas sejam boas, as crianças sadias ou os doentes curados.
Apesar de tudo, assim que nós olhamos de mais perto, ainda existem razões para ficar desconcertado. Com efeito, uma das funções principais da religião é, para nós, de conduzir a uma imortalidade no além. Hinduísmo e budismo se esforçam ao contrario de se liberar da existência. Uma vida eterna, no ponto de vista deles, seria a pior das torturas. O taoísmo segue um esquema contrarie, mas muito distante igualmente de nossas religiões, procurando o caminho de uma vida sem fim na perpetuação de nosso corpo.
Preconceitos e mal entendidos
Por outro lado, nós estamos acostumados ao fato que as religiões dêem nascimento à especulações filosóficas. Na Ásia, é de preferência o contrario. O budismo tornou-se uma religião, o taoísmo também, quando na origem eles não eram religiões. Também foi dito que o budismo como religião havia começado como um protestantismo, prática rígida e sóbria, e tinha acabado como um catolicismo, multiplicando intercessores locais, orações específicas e imagens piedosas.
Afinal, como fazer? Como sair dessas idéias repletas de ignorância e preconceitos? Não existem receitas milagres, e ninguém pula fora de sua própria cabeça. Mas seria conveniente, nisso como em muitas coisas, de botar entre parênteses, na medida do possível, julgamentos e atitudes passionais. Preferir a vontade de compreender ao invés das reações efetivas, fascinação ou repulsão. Nós deixaremos então de lado o entusiasmo ou o desprezo, o temor ou a esperança, para começar a se informar e a refletir.
- Roger-Pol Droit, pesquisador no CNRS, autor, entre outros, de L'Oubli de l'Inde (PUF, 1989), do Culte du Néant. Les Philosophes et le Boudha (Le Seuil, 1997) e de 101 expériences quotidienne ( Odile Jacon, 2001)
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