"Você sempre pode encontrar um asilo em você mesmo"
O tempo que dura a vida do homem é apenas um ponto; sua alma está em um perpétuo movimento; suas sensações só são trevas. Seu corpo composto de tantos elementos é uma presa fácil para a corrupção; sua alma é um furacão; seu destino é um enigma obscuro; sua glória, um non-senso. Em uma palavra, tudo o que é relativo ao corpo é um rio que escorre; tudo o que é relativo a alma é apenas sonho e vaidade; a vida é um combate, e o viajante, um estrangeiro; e a única fama que nos espera após nós mesmos, é o esquecimento. Quem pode então nos dirigir no meio de tanto escolha? Existe apenas um único guia, apenas um, é a filosofia. E a filosofia, é de uma certa maneira fazer com que o gênio que está em nós mesmos fique puro de toda mancha e de todo dano, mais forte que os prazeres ou os sofrimentos, nunca agir de maneira leviana seja no que for, nem com falsidade ou dissimulação, sem nenhuma necessidade de saber o que uma outra pessoa faz ou não faz, aceitando os acontecimentos de toda natureza e a sorte que lhes é destinada, como uma emanação da fonte de onde ele vem ele mesmo, e acima de tudo, esperando, com um humor doce e sereno, a morte, que ele considera como a simples dissolução dos elementos de quais todo ser é composto. Ora se, para os próprios elementos, não é de maneira alguma um mal de mudar perpetuamente uns nos outros, porquê olhar de maneira negativa a mudança e a dissolução de todas as coisas? Essa mudança é conforme as leis da natureza: e no que a natureza faz, não existe jamais nada de mal.
Livro IV, & 3
Nós vamos procurar longínquos retiros nos campos, na beira-mar, nas montanhas, e você mesmo gostaria de satisfazer esses mesmos desejos. Mas como todo esse cuidado é singular, pois você pode sempre, quando você quer, na sua hora, encontrar um asilo em você mesmo! Em nenhum lugar, com efeito, o homem pode experimentar o prazer de um retiro mais sereno nem menos perturbado do que aquele que ele tem dentro da alma dele, sobretudo quando nós encontramos em nós mesmos esses recursos sobre os quais basta se apoiar um instante, para que logo a gente se sinta na perfeita quietude. E por "Quietude", eu não entendo outra coisa do que uma inteira submissão a regra e a lei. Então cuide de te assegurar esse refúgio constante, e renova-te nele você mesmo perpetuamente. Conserva em teu coração as breves e inelutáveis máximas que você só terá que meditar durante um momento, para que no mesmo instante sua alma inteira reencontre sua serenidade, e para que você volte desse momento, isento de toda amargura, retomando o comércio de todas essas coisas de quais você se ocupa. A quem, eu te pergunto, eu poderia acusar? Seria a perversidade dos humanos? Mas se você lembra à sua memória esse axioma que todos os seres dotados de razão são feitos uns para os outros, que se suportar reciprocamente é uma parte da justiça, e que tantas pessoas que se detestaram, desconfiaram, odiaram, brigaram, estão estendidas na poeira e são apenas cinzas, você talvez se sentirá em paz facilmente.
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Ou então, lembre-se, todas essas máximas que te foram ensinadas e que você aceitou na dor e no sofrimento. Seria por acaso a vã opinião dos homens que te agita e te dilacera? Então olhe um pouco o rápido esquecimento de todas as coisas, o abismo do tempo perdido entre os dois sentidos, a inanidade desse barulho e desse eco, a mobilidade e a incompetência dos juízes, que parecem te aplaudir, e a exigüidade do lugar onde a fama se encerra. A terra inteira é apenas um ponto, e a parte onde nós habitamos é apenas o ponto mais estreito. Nele mesmo, aqueles que aclamarão teus louvores, quantos eles são e quantos deles ainda existem?
- Marc Aurèle, Pensées Pour Moi-Même, Livre II, & 17, et Livre IV, &3, Trad.J.Barthélemy Saint-Hilare, Èd. Germer- Baillière, 1876.
Marc Aurèle
Marc Aurèle parece encarnar o ideal antigo do filósofo rei. Chefe de um Império ameaçado por todos os lados, através de expedições punitivas e viagens iniciáticas, ele escreve suas reflexões em uma antologia que tem por título original À soi-même (A si mesmo) o que é relativo à pratica dos exercícios espirituais recomendados pelos estóicos. Como eles, Marc Aurèle está convencido que o objetivo da existência consiste no acordo da razão com as leis do universo. Suas reflexões se inspiram de maneira evidente do Manuel d'Èpictète, que ele segue na exploração dos três princípios da moral estóica: a crítica de nossas representações sob a égide da razão, a ação justa e conforme a razão social e a aceitação serena dos acontecimentos.
Para o imperador filósofo, o comportamento público depende da necessidade: inútil, então, de partir longe para se escapar dele, a prática da filosofia é suficiente. Ela é impermeável aos fracassos e as gratificações, que não nos preocupam durante muito tempo, considerando que o corpo e a alma estão destinados a se dissolver. Os louvores e as condenações pronunciados pela posteridade são dirigidos apenas a uma idéia oca, aos átomos espalhados, a uma coisa sem nenhuma substância.
Os Pensamentos de Marc Aurèle foram as vezes considerados como uma obra pessimista. È verdade que Marc Aurèle insiste na futilidade da existência, na inconstância das sensações e das idéias.
Portanto, ele afirma com a mesma força sua fé na razão que dirige a alma e a natureza, e que une os homens. Ele não os encoraja a encarar as coisas com "um coração enérgico"? Esse apelo vigoroso dirigido a si mesmo e jogado por escrito o distingue dos outros estóicos e jà anuncia, pelo seu gênero, Les Confessions, d'Augustin, les Essais, de Montaigne, ou ainda Les Confessions, de Rousseau.
O pessimismo de Marc Aurèle
O "pessimismo" suposto dos Pensamentos de Marc Aurèle responde na realidade a uma exigência de escritura. Nós não devemos esquecer que são exercícios espirituais, os meletai no sentido estóico, destinados a experimentar a alma, a força-la a enfrentar seus últimos recursos. O princípio mesmo do livro supõe que nós não devemos esperar dele elogios sobre a beleza da existência e seus prazeres.
Trata-se ao contrario de mostrar que a vida, quando ela se afasta da razão, se expõe a tudo menos a felicidade. O imperador filósofo não tem piedade das infelicidades da existência. Ele presta contas delas a ele mesmo para melhor afirmar sua liberdade interior.
Segundo a opinião geral dos historiadores antigos, sua honestidade moral e seu senso do dever foram exemplares. Atualmente, portanto os historiadores se mostram céticos: sob seu reino, o Império romano começava a se enfraquecer sob o efeito de uma sucessão de calamidades: tentativas de invasões em todas as zonas de combate, um golpe de Estado, uma epidemia devastadora em Roma. Marc Aurèle ele mesmo tinha uma saúde frágil. A prática da filosofia não representa finalmente apenas uma fuga diante uma realidade demasiadamente cruel?
E portanto! O Livro Os Pensamentos formam um verdadeiro monumento do pensamento ocidental, tanto pela sua qualidade de estilo quanto pela universalidade de seus temas. Ele lembra que a filosofia não é um abismo conceitual. Ela oferece um refúgio interior diante as tribulações da vida.
Dito isso, jamais Marc Aurèle encoraja a fugir da realidade, por mais que ela seja cruel, e de suas obrigações. Muito pelo contrario. Como Sêneca ou Lucrèce, ele critica a tentação de se abster do corpo social e de seus tormentos contínuos para se refugiar no campo ou a beira-mar.
A analise não deixa de ser atual. Nesse momento em que a política decepciona, a tentação de fugir é grande. Por esta razão, as viagens e o tourismo ganham sempre novos adeptos. Mas se retirar para escrever a si mesmo e sobre si mesmo, eis a verdadeira viagem que nos convida a fazer o imperador filósofo.
- A.-S.J. -
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