quinta-feira, 27 de março de 2008

OS DIREITOS DO HOMEM NO AMANHECER DO SÉCULO XXI

(Discurso de Sua Santidade o Dalai Lama na Reunião de Paris da UNESCO - Comemoração do 50º Aniversário da Declaração Universal dos direitos do Homem)


O aumento da preocupação a respeito das violações dos direitos humanos é muito encorajadora. Não só nos dá uma perspectiva de alívio a muitos sofrimentos individuais, como é uma indicação do desenvolvimento e do progresso da humanidade. A preocupação pelas violações dos direitos humanos e o esforço para proteger os direitos do homem representam um grande serviço aos povos quer do presente quer das futuras gerações. Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, há cinqüenta anos, por todo o lado as pessoas começaram a compreender a grande importância e o valor dos direitos do homem.


A perspectiva de um Monge Budista

Não sou um perito no domínio dos direitos do homem. Contudo, para um monge Budista, como eu, os direitos de cada ser humano são muito preciosos e importantes. Segundo a crença budista, cada ser sensível tem um espírito cuja natureza fundamental é essencialmente pura e não poluída pelas distorções mentais. Referimo-nos a essa natureza como sendo a semente da Iluminação. Desse ponto de vista, todos os seres podem eventualmente alcançar a perfeição. Também acreditamos que todos os aspectos negativos podem ser removidos do espírito, dado que a sua natureza é pura. Quando a nossa atitude mental é positiva, as ações negativas do corpo, da palavra e do espírito automaticamente cessam. Como todos os seres sensíveis têm semelhante potencial, todos são iguais. Cada um tem o direito de ser feliz e de vencer o sofrimento. O próprio Buda disse que na sua Ordem, nem a raça nem a classe social são importantes. O que é importante é a prática verdadeira de se viver a vida de uma maneira ética.

Enquanto praticantes Budistas, tentamos antes de mais melhorar a nossa conduta do dia a dia. Só sobre essa base podemos começar a desenvolver as práticas do treino mental e da sabedoria. Na minha prática diária de monge Budista tenho de observar muitas regras, mas o tema fundamental de todas elas é o profundo respeito e preocupação pelos direitos dos outros. Os principais votos observados pelos monges e monjas plenamente ordenados incluem não tirar a vida de outros seres, não roubar as suas posses e por aí adiante. Estas regras estão explicitamente relacionadas com o profundo respeito pelos direitos dos outros. É por esta razão que freqüentemente descrevo a essência do Budismo com sendo algo como isto: se puderem, ajudem os outros seres sentientes; se não puderem, pelos menos abstenham-se de lhes fazer mal. Isto revela um profundo respeito pelos outros, pela própria vida e uma preocupação pelo bem estar dos outros.

Apesar de ser muito importante respeitar os direitos naturais dos outros, tendemos a conduzir a nossa vida ao contrário. A razão é que nos falta amor e compaixão. Por conseguinte, mesmo em relação à questão das violações dos direitos humanos e à preocupação pelos direitos do homem, o ponto fulcral é a prática da compaixão, do amor e do perdão. Muito freqüentemente, quando as pessoas ouvem falar de amor e de compaixão, têm o sentimento que isso se relaciona com práticas religiosas. Mas não é necessariamente o caso. Em vez disso, é muito importante reconhecermos que a compaixão e o amor são fundamentais nas relações entre os seres sentientes em geral e os seres humanos em particular.

No início da nossa vida e de novo quando envelhecemos, apreciamos a ajuda e a afeição dos outros. Infelizmente, entre estes dois períodos da nossa vida, quando somos fortes e capazes de cuidar de nós, negligenciamos o valor da afeição e da compaixão. Como a nossa própria vida começa e acaba com a necessidade da afeição, não seria melhor praticarmos a compaixão e o amor pelos outros enquanto somos fortes e capazes?

Apenas ganhamos amigos genuínos quando exprimimos sentimentos humanos sinceros, quando exprimimos respeito pelos outros e preocupação pelos seus direitos. Isto é o que experimentamos claramente na nossa vida quotidiana. Não é necessário ler complicados tratados filosóficos nesse sentido. Na nossa vida de todos os dias, estas coisas são uma realidade. Por conseguinte, a prática da compaixão, a prática da sinceridade e do amor, são fontes essenciais para a nossa própria felicidade e satisfação. Assim que desenvolvemos semelhante atitude altruísta, desenvolvemos automaticamente a preocupação pelo sofrimento dos demais e simultaneamente desenvolvemos a determinação de fazer algo para proteger os direitos dos outros e para nos interessarmos pela sua sorte.


A Universalidade dos Direitos do Homem

Os Direitos do Homem são de interesse universal porque é inerente à natureza humana ansiar pela liberdade, igualdade e dignidade e porque há o direito de as efetivar. Quer queiramos ou não, todos nós nascemos neste mundo como parte de uma grande família humana. Ricos ou pobres, educados ou não, pertencentes a uma nação ou a outra, a uma ou a outra religião, aderindo a esta ou aquela ideologia, em última análise cada um de nós é apenas um ser humano como qualquer outro. Todos desejamos a felicidade e nenhum de nós quer sofrer.

Se aceitarmos que os outros têm o mesmo direito que nós à paz e à felicidade, não teremos a responsabilidade de ajudar os mais necessitados? A aspiração pela democracia e pelo respeito dos direitos humanos fundamentais é tão importante para os povos da África e da Ásia como para os da Europa ou das Américas. Freqüentemente, contudo, são justamente os povos onde os direitos humanos foram suprimidos que estão menos capacitados para falarem de si. A responsabilidade cabe àqueles de nós que usufruem de tais liberdades. Os abusos dos Direitos do Homem tomam muitas vezes por alvo os membros mais dotados, dedicados e criativos da sociedade. Como resultado, o desenvolvimento político, social, cultural e econômico de uma sociedade são obstruídos pelas violações dos direitos humanos. Por conseguinte, a proteção desses direitos e liberdades são imensamente importantes quer para os indivíduos afetados, quer para o desenvolvimento da sociedade no seu todo.

Alguns governos entenderam que os padrões dos direitos humanos descritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem são os advogados pelo Ocidente e não se aplicam à Ásia ou a outras partes do Terceiro Mundo, em função das diferenças de cultura e de desenvolvimento social e econômico. Não partilho deste ponto de vista e estou convencido de que a maioria das pessoas comuns tão pouco o apoia. Creio que os princípios descritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem constituem como que uma lei natural que deveria ser seguida por todos os povos e governos.

Além do mais não vejo qualquer contradição entre a necessidade de desenvolvimento econômico e a necessidade de respeitar os direitos do homem. O direito à liberdade de expressão e de associação são vitais para promover o desenvolvimento econômico de um país. No Tibete, por exemplo, há inúmeros exemplos de políticas econômicas inadequadas que foram implantadas e que continuaram muito após terem demonstrado não produzirem benefícios, porque os cidadãos e os agentes governamentais não puderam pronunciar-se contra elas.

Internacionalmente, a nossa rica diversidade de culturas e religiões deveria ajudar a fortalecer os direitos humanos fundamentais em todas as comunidades. A sublinhar esta diversidade estão princípios humanos básicos que nos interligam a todos nós como membros da mesma família humana. No entanto, a mera manutenção das tradições nunca deveria justificar as violações dos direitos humanos. Portanto, a discriminação contra pessoas de raças diferentes, contra as mulheres ou contra os elos mais fracos da sociedade podem ser tradicionais nalguns lugares, mas caso sejam incongruentes com direitos humanos universalmente reconhecidos, essas formas de comportamento devem mudar. O princípio universal da igualdade de todos os seres humanos tem de ser precedente.


A necessidade da Responsabilidade Universal

O mundo está se tornando crescentemente interdependente e é por isso que acredito firmemente na necessidade de se desenvolver um sentido de responsabilidade universal. Precisamos pensar em termos globais, pois o efeito das ações de uma nação são sentidos para muito além das suas fronteiras. A aceitação de padrões de direitos humanos que nos obriguem universalmente, tais como os da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Internacional dos Direitos do Homem, é essencial no mundo de hoje, cada vez mais pequeno. O respeito pelos direitos humanos fundamentais não deve permanecer um ideal a ser realizado; antes, deve constituir a fundação indispensável de todas as sociedades humanas.

Barreiras artificiais que dividiam nações e povos caíram nos últimos tempos. O sucesso dos movimentos populares no desmantelar da divisão Leste-Oeste, que polarizou o mundo inteiro durante décadas, foi fonte de grandes esperanças e expectativas. Todavia, ainda permanece um enorme abismo no coração da família humana. Com isto refiro-me à divisão Norte-Sul. Se formos sérios no nosso comprometimento aos princípios fundamentais da igualdade, princípios que, creio, estão no âmago do conceito dos direitos humanos, a disparidade econômica atual não pode continuar a ser ignorada. Não basta meramente afirmar que todos os seres humanos devem usufruir de igual dignidade. Isso tem de se traduzir em ações. Temos a responsabilidade de encontrar vias para conseguir uma distribuição mais eqüitativa dos recursos mundiais.

Estamos sendo testemunhas de um vibrante movimento popular para o avanço dos direitos humanos e das liberdades democráticas no mundo. Este movimento tem de tornar-se uma força moral ainda mais poderosa, de modo que mesmo os governos e os exércitos mais obstaculares, sejam incapazes de suprimir. É justo e natural que as nações, povos e indivíduos peçam o respeito dos seus direitos e liberdades e que lutem para acabar com a repressão, o racismo, a exploração econômica, a ocupação militar e as várias formas de colonialismo e dominação estrangeira. Os governos deviam apoiar ativamente tais pedidos, em vez de apenas os apoiarem verbalmente.

Acredito que a falta de compreensão daquilo que é a verdadeira causa da felicidade é a principal razão pela qual as pessoas infligem sofrimento aos outros. Algumas pessoas pensam que causando sofrimento aos outros podem conseguir a sua própria felicidade ou que a sua felicidade própria é de tal modo importante que a dor causada aos outros não tem significado. Contudo esta visão é claramente redutora. Ninguém consegue realmente se beneficiar do mal causado a um outro ser. Seja qual for o benefício imediato ganho às custas de outros, ele é de pouca duração. A longo prazo, causar miséria aos outros e usurpar a sua paz e felicidade, cria ao próprio ansiedade, medo e uma atitude desconfiada. O desenvolvimento do amor e da compaixão pelos outros é essencial para criarmos um mundo melhor e mais pacífico. Isto significa, naturalmente, que temos de desenvolver um interesse pelos nossos pares, irmãos e irmãs, que são menos afortunados do que nós. Por conseguinte, temos o dever moral de ajudar e suportar todos aqueles que presentemente estão privados do exercício dos direitos e liberdades que muitos de nós têm por garantidos.

Enquanto nos aproximamos do fim do século XX, parece-nos que o mundo está se tornando uma comunidade. Juntos, temos sido confrontados com os graves problemas da superpopulação, do declínio dos recursos naturais e da crise ambiental que ameaçam a própria fundação da nossa existência neste planeta. Os direitos do homem, a proteção do meio ambiente e uma maior igualdade social e econômica, estão todos interligados. Acredito que para enfrentar os desafios do nosso tempo, os seres humanos terão de desenvolver um maior sentido de responsabilidade universal. Cada um de nós tem de aprender a trabalhar não só para si, para a sua família ou nação, mas para o benefício de toda a humanidade.

A responsabilidade universal é a chave para a sobrevivência humana. É a melhor garantia para os direitos do homem e para a paz mundial.

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