Entre os cerúleos pilares de lápis- lazuli do enleante templo dos céus, o Sol, sedutor feiticeiro do Infinito, transfigurava, através da mística alquimia da luz, a noite da inexistência, perpétuo algoz da alma humana, no resplandecente dia da vida eterna. E seus lábios luzentes, pétalas de luz da fragrante rosa de fogo que a aurora desfolhava sobre o leito do horizonte, na ânsia de perfumar as núpcias do céu e da terra, albergavam o berço da humanidade e a matriz da perfeição universal. No Antigo Egito, Ámon- Ré, imanente encarnação do astro- rei, era soberano do sublime éden de fruição espiritual, de cujo seio de apoteoses divinas brotava o fruto da harmonia cósmica que deuses e homens cobiçavam. Ávidos de saciar a sua sede no néctar de paz intemporal dele resvalado, estes coroavam os céus com arco –íris talhados em hinos esplendorosos que exaltavam a magnificência do excelso regente dos deuses: “Único é o oculto que permanece velado para os deuses, sem que a sua verdadeira forma seja conhecida. Nenhum deles conhece a sua verdadeira natureza que não é revelada em nenhum escrito. Ninguém o pode descrever, é demasiado vasto para ser apreendido, demasiado misterioso para ser conhecido. Quem pronunciasse o seu nome secreto seria fulminado.” (Hino a Ámon).
Todavia, oráculo algum preconizara que tal deidade, quase escrava do anonimato total no Antigo Império, viria a coroar-se “rei dos deuses” (nesu- netjeru) e incontestável soberano do vasto reino dos céus. Com efeito, é apenas no decorrer do Médio Império, que Ámon, efígie do Sol criador, após haver vagueado, enquanto peregrino de luz, pelos ignotos céus do desconhecimento, alcança por fim o santuário de magia imarcescível, erguido no horizonte da fé em honra do panteão egípcio, onde, volvida uma viagem mágica, que lhe permitiu a absorção de diversas outras deidades, o deus solar renasce, cantando a Aurora do seu poder como divindade nacional, dinástica, universal e criadora. Os jardins onde a mitologia egípcia semeou as origens de Ámon constituem ainda um paraíso proibido, cujos encantos florescentes se oferecem somente à nossa Imaginação nômada. Porém, alguns egiptólogos crêem que originalmente Ámon não era senão uma deidade do ar, que no Infinito nas crenças egípcias, partilhava as características de Chu, estatuto do qual não jamais viu-se privado, mesmo após a sua meteórica ascensão até ao trono celeste. É, de fato, como rosa de vento, orvalhada de doces brisas, que Ámon desabrocha para a Primavera da popularidade na região tebana de Ermant. Esta teoria é, contudo, contestada por uma fração oponente, a qual defende que Ámon, na realidade, floresceu na mitologia egípcia enquanto um dos membros da Ogdóade de Hermopólis, formando assim com Amonet, sua parceira feminina, um dos quatros casais que a constituíam. Nesta representação, Ámon e a sua esposa encarnam os princípios primordiais, suspensos nos braços da escuridão, que se transfiguravam num hipotético dinamismo criador. A introdução de Ámon na região tebana ofereceu-lhe uma inaudita ascensão no seio da Ogdoáde, ao indigitá-lo líder dos deuses que a formavam.
Contemplando a surpreendente ascensão ao trono dos céus do agora prestigiado deus criador, o clero abraça a resolução de talhar na sua coroa de luz a jóia rara de uma teologia apta a exaltar o fastígio da sua soberania, fato facilmente constatável através da leitura e análise do seguinte mito. Canta a lenda que a serpente Kematef, ou seja, “a que cumpre o seu tempo”, emergiu de Nun, o excelso oceano de energia primordial, no local exato da cidade de Tebas, brindando os céus com o nascimento de Irta, isto é, “aquele que fez a terra”, para de seguida desbravar o paraíso indômito dos sonhos.
Por seu turno, Irta, sublime ourives da Criação, converteu as trevas do nada no suntuoso tesouro do Universo, principiando por esculpir a terra, eterna barca de rubis navegando nos mares de pérolas negras do Infinito e, ato contínuo, os já citados oito deuses primordiais que se dirigiram a Hermopólis, a Mênfis e a Heliópolis para sonharem o esplendor da luz divina que do áureo corpo do Sol se desprendia (Ptah e Atum). Traídos pela sua obra colossal, que no decorrer da sua concepção todas as suas forças havia furtado, as oito deidades retornaram a Tebas, onde, à semelhança de Kematef e Irta, saborearam as nascentes de fruição espiritual que brotavam do éden das quimeras. No cosmos deste mito, a constelação de Ámon brilhou enquanto ba (poder criador) de Kematef, o que cimentou a sua posição fautor das maravilhas da Criação. Gradualmente, Ámon fundiu a sua identidade com a de Ré, senhor de Heliópolis, concebendo assim a deidade Ámon- Ré, suprema encarnação do astro- rei. Esta conotação solar do deus tebano é enfatizada pelos seus adoradores: “Tu és Ámon, tu és Atum, tu és Khepri”, numa clara oblação às inúmeras metamorfoses vividas pela deidade solar, principiando pelo seu derradeiro mergulho no oceano do horizonte, enquanto Sol poente (Atum), até à sua ressurreição sob a forma de Sol nascente (khepri).
Conquistando igualmente aparência e funções de Min, deus da fertilidade, Ámon, agora, Ámon- Min, encarna os elementos primordiais da Criação. De facto, algumas das primeiras representações de Ámon em Karnak, datadas do início da XII dinastia, representam o deus tebano, enquanto fruto da sua fusão com Min. Através da associação ecléctica às mais proeminentes deidades do panteão egípcio (Ré, Ptah e Min), Ámon conquista a dádiva do poder, inevitavelmente depositada no suntuoso altar de sua alma iluminada, bordando nas sedas consteladas que velam a etérea silhueta do Universo a poesia da sua sublimação, enquanto divindade nacional, primordial e demiúrgica. Durante o reinado de Akhenaton, em meados do séc. XIV, o deus tebano é alvo da perseguição do regente, quiçá numa represália contra o intimidatório poder do clero amoniano, que aumentara proporcionalmente ao prestígio da deidade em questão. Após uma noite de cerca de quinze anos, uma aurora adornada de paradoxos e controvérsias canta a ressurreição do Sol, que uma vez mais se apodera do trono dos céus, sob a forma de Ámon. Este converter das trevas na luz deve-se à alquimia secreta de um único faraó: Tutankhámon (reinado: 1337- 1348 a . C.).
Um orvalho cristalino, eivado de mil enigmas, perla a rosa da fortuna, em cujas pétalas repousa o simulacro incerto do príncipe Tutankháton, espírito isento de origens concretas. Teria o futuro faraó despontado dos braços de Akhenaton ou do seio de uma família nobre? Um vórtice de conjecturas enlaça igualmente o significado do seu nome, sendo “ imagem viva de Áton” ou “poderosa é a vida de Áton” as traduções mais credíveis. Após a extinção de Akhenaton, o trono do Egipto oferece-se ao olhar hesitante de Tutankháton, uma criança de apenas nove anos, que, contudo, havia já desposado a terceira filha do faraó falecido. Inebriado pelo fausto de jogos e festas, enclausurado num débil esboço de uma personalidade esbatida, Tutankháton prostra-se diante dos conselhos de um preceptor, possivelmente, o alto- dignitário Ay, ignorando as ferozes querelas entre os partidários de Ámon e de Áton, cujo fulgor torna-se num sorriso da heresia. Gradualmente, a influência do clero enleia, irreversivelmente, o ingénuo jovem, depositando na sua alma ainda perfumada pela infância, o desejo de retornar ao seio da primordial religião, tecida em torno de Ámon. Por conseguinte, o jovem altera o seu nome para Tutankhámon, entregando cada suspiro do seu império aos lábios de nácar do politeísmo. Desta forma, no regaço de seu reinado o compasso do tempo esculpiu o sepulcro da excelsa “Cidade do Sol”, cujo fulgor foi extinto com o fito de restituir a soberania à olvidada cidade de Tebas, no seio da qual o faraó se reinstalou, concedendo, uma vez mais, imensuráveis poderes aos sacerdotes que se prostravam diante do divino simulacro de Ámon. Submissamente, todos aqueles que haviam ornado de vida a quimérica cidade de Akhenaton seguiram a família real, entregando Armana aos nefastos braços da decadência. As carícias letais do vento árido arrebatou o fastígio dos templos e palácios, resumindo-os a lúgubres escombros, no coração da areia enclausurados. Somente após 3000 anos, a alma desta cidade foi enfim libertado do seu lúrido cárcere.
Intoxicado pelo incenso celestial queimado sobre a cidade de Tebas, Tutankhámon não empreendeu qualquer campanha militar, impedindo assim uma ascensão do Egito no plano internacional. Privado do seu antigo poder, o exército egípcio entrega-se aos braços da decadência. Na realidade, somente a contínua vigília de Horemheb, a quem Tutankhámon havia entregue plenos poderes, impediu toda e qualquer invasão do território egípcio. Este general encontrava-se deveras distante da imagem de soldado grosseiro e rude que inúmeras vezes lhe é atribuída na atualidade. Trata-se, na verdade, de um escriba, um letrado, cuja alma se encontra escravizada pelo amor ao direito e à justiça. Ao completar quinze anos, no ano 6 do seu reinado, a consciência dos seus deveres fende as pálpebras outrora cerradas de Tutankhámon, Desprendendo-se do torpor da infância, o jovem faraó principia a mergulhar nos seus ofícios de soberano, recorrendo ao pronto auxílio de seus mentores Ay e Horemheb, detentores de um poder imensurável, concedido pelo próprio regente. Surpreendentemente, Tutankhámon lida, habilmente, com a política externa, solucionando diversas questões pendentes. Simultaneamente, almeja restituir ao Egito o seu esplendor estonteante, pelo que ordena a restauração e construção de monumentos e o levantamento de ruínas. De seu espírito resvalaram rasgos de luz, orvalhados pelo gotejar da independência, que fenderam enfim a sufocante influência que Ay e Horemheb possuíam sobre o faraó e sobre o destino do Egito. Porém, quando Tutankhámon completou dezoito anos, a auspiciosa melodia entoada pela sua fortuna extinguiu-se nas trevas de uma sinfonia de silêncio, concebida pelas lúgubres carícias da morte...
Intrigados com tão suspicaz falecimento, os egiptólogos lançaram-se numa desesperada procura pela verdade, já sepultada entre as valsas do tempo. Por fim, após um inexaurível rol de pesquisas e investigações, uma autópsia realizada à múmia do faraó concedeu-lhes o fulgor da solução que tanto haviam cobiçado: uma fratura na base do crânio de Tutankhámon comprovava que este havia sido, brutalmente, assassinado. Porém, que mãos cruéis e isentas de compaixão haviam desferido o golpe fatal que oferecera aos lábios sequiosos da morte o travo da vida de Tutankhámon? Os sacerdotes tebanos, movidos pelo temor de que o regente, agora livre igualmente da sua influência, abraçasse os devaneios de Akhenaton? Ou aquele que queimara o incenso da sua vontade sobre o débil altar da alma de Tutankhámon, submetendo-a aos seus caprichos e alentos: o divino- sacerdote Ay, tornado mais tarde em sucessor do faraó falecido? A verdade oferece-se ao olhar daqueles que pressentem os silvos das conjecturas, em cujo regaço quase sentimos o toque do sangue do jovem faraó tingir as mãos do ambicioso Ay. Na realidade, sobre a imagem de Tutankhámon baila um inexorável paradoxo, delineado pela imensurável fama que este insignificante faraó alcançou na atualidade. Inderme à ação dos inúmeros saqueadores, o seu túmulo, descoberto em 1822 por Howard Carter, derramou sobre a alma perplexa da humanidade a fragrância do fausto e fastígio do Antigo Egito. Jamais houve uma descoberta mais preciosa do que a do túmulo de Tutankhámon. A grácil beleza dos móveis e as suas obras de arte ultrapassaram tudo o que até então fora encontrado no Egito. Graças ao túmulo do jovem faraó, o único encontrado intacto, a cultura egípcia atraiu muitos mais admiradores do que no passado; admitiu-se que esta cultura havia exercido sobre os povos vizinhos uma influência muito mais profunda do que então se cogitara. Ao contemplarem-se as excelsas riquezas que um faraó considerado verdadeiramente irrelevante, cujo reinado prolongou-se por um escasso período de tempo, levava para a sua derradeira morada, calcula-se o esplendor que brincaria nos túmulos de poderosos faraós como Tutmés III, Amenófis II, Seti I e Ramsés II.
No paraíso de seu reinado, brotou a cobiçada fonte da ressurreição, onde Ámon, outrora cativo do sepulcro do esquecimento, saciou a sua sede de vida. Durante cerca de meio século, mais precisamente de 1000 a.C. até 525 a.C., data da invasão persa, a soberania da sumptuosa cidade de Tebas não foi senão dança ritmada da melodia de luz reflectida pelos cristais de Sol, que no olhar de uma magnificente dinastia de mulheres haviam esculpidos pela benção do astro- rei. A estas mulheres, intituladas “Adoradoras Divinas” ou, em egípcio, duat- netjer, o faraó havia concedido, sem hesitar, um poder espiritual e régio sobre a principal cidade santa do Alto Egipto.
Sacerdotisas iniciadas nos mistérios de Ámon, a quem se uniam em esponsais divinos, com o fito de lhes prestarem um culto ornado de um certo erotismo, as Adoradoras Divinas eram regra geral provenientes de famílias nobres. Em diversas representações, contemplamos o rito que permitia à dama despertar na carne e espírito do deus tebano os ardores da paixão. Sob a liderança desta casta de mulheres viviam sacerdotisas, contempladas como o “harém de Ámon”, a quem era também confiada a incumbência de semear o desejo no peito do rei dos deuses e preservar a harmonia entre os céus e a terra. Enquanto esposas de Ámon, as Adoradoras divinas, não obstante não serem coagidas a celebrar votos de castidade, eram privadas não de vincular um casamento humano, mas também de ter filhos. De fato, a herdeira do seu cargo era a sua filha espiritual, elevada a este estatuto através da adoção.
Consagrando-se exclusivamente ao culto da deidade, as Adoradoras Divinas, excelsas instrumentistas que na harpa do cosmos fazem vibrar a energia celestial, garante da vida terrena, embora não fossem reclusas, usufruíam da maior parte do seu tempo no interior do templo de Ámon em Karnak, onde todos os dias persuadiam o deus a exprimir de forma benéfica o seu poder criador.
Personalidades proeminentes no seio da cidade tebana, as Adoradoras Divinas eram incontestáveis proprietárias de casas, terrenos, servidores e diversos outros bens que contribuíam para a sua comodidade e autonomia.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Amonet- Deusa constituinte da Ognóade de Hermopólis. É freqüente depararmo-nos em Tebas com efígies suas, enquanto versão feminina do deus Ámon, papel geralmente concedido a Mut. Diversos textos da dinastia ptolomaica apresentam-nos Amonet ou Amaunet como encarnação do vento do Norte, a mãe primordial que “é pai”, isto é, aquele que sem intervenção masculina se encontra apta a conceber os seus filhos. Algumas fontes revelam que Amonet deu à luz Ré, ou, segundo outras vozes, Ámon, enquanto personificação de Ré. É exequível aventurar que o culto dedicado à deusa ultrapassa o da sua versão masculina em antiguidade.
Identificamos Ámon nas diversas representações que o honram, como um homem ostentando sobre a sua cabeça uma coroa com duas plumas (kachuti) e em suas mãos (consoante as circunstâncias em que é invocado) o signo da vida (ankh), uma cimitarra (khopech) ou o cetro uase, entre outros. O seu trono assenta sobre uma esteira que, por seu turno, se encontra sobre um pedestal dotado dos símbolos da deusa Maet.
Ámon, “aquele cuja natureza escapa ao entendimento”, é representado por um carneiro de chifres curvos ou, pontualmente por um ganso. Com freqüência, as díspares formas de animais adoptadas por um deus confere-lhe o poder para se tornar irreconhecível ou apto a ser confundido com outra deidade. A imagem do carneiro simboliza o conjunto das forças criadoras, quer aquelas encarnadas pelo Sol, quer aquelas que permitam garantir a reprodução dos seres vivos.
“Tu és o deus oculto (Ámon), Senhor do silencioso, que acorre ao apelo do humilde, tu que dás alento a quem dele é privado” (Estela de Berlim).
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