terça-feira, 16 de outubro de 2007

John Stuart Mill

"As virtudes privadas só aparecem após as virtudes sociais"

Qual é então o justo limite da soberania do indivíduo sobre ele mesmo? Onde começa a autoridade da sociedade? Qual a parte da vida humana que pertence a individualidade, qual parte á sociedade? Cada uma das duas receberá o que lhe pertence se cada uma se preocupa do que lhe é próprio e mais particular. Á individualidade deveria pertencer essa parte da vida que interessa primeiramente o indivíduo; á sociedade, aquela que interessa primeiro a sociedade.

Se bem que a sociedade não seja fundada sobre um contrato, e se bem que não adianta inventa-lo para deduzir dele as obrigações sociais, todos aqueles que recebem proteção da sociedade lhe são, todavia obrigados dessa ação generosa. O único fato de viver em sociedade impõe a cada pessoa uma certa linha de conduta para com outrem. Essa conduta consiste primeiramente a não prejudicar os interesses de outrem, ou mais precisamente á alguns desses interesses que, seja por disposição expressa legal, seja por um acordo tácito, devem ser considerados como direitos; em segundo lugar, a assumir sua própria parte (a fixar segundo um princípio equitável) de trabalho e de sacrifícios necessários para defender a sociedade ou seus membros contra os prejudícios e as vexações. Mas isso não é tudo o que a sociedade pode fazer. Os atos de um indivíduo podem ser prejudiciais aos outros, ou não levar suficientemente em conta o bem estar deles, sem por isso violar qualquer um de seus direitos constituídos. O culpado pode então ser justificadamente punido pela opinião, mas não pela lei.

Desde que a conduta de uma pessoa torna-se prejudicial aos interesses de outrem, a sociedade tem o direito de julgar, e a questão de saber se essa intervenção favorizará ou não o bem estar geral é então aberta á discussão. Mas essa questão não tem razão para ser discutida enquanto a conduta de alguém só afeta os seus próprios interesses, ou na medida em que ela só afeta os outros se eles assim querem, se essas pessoas atingidas são adultas e em possessão de todas as suas faculdades. Em todos os casos, nós devemos ter liberdade completa, legal e social - de empreender qualquer ação e de suportar as conseqüências.
Seria demasiadamente enganar-se sobre essa doutrina vendo nela uma defesa da indiferença egoísta, segundo a qual um homem não se interessaria de maneira alguma na conduta dos outros, e que ele só deveria se preocupar do "bem-agir" e do bem estar deles que na medida em que seu próprio interesse está em jogo. Não é preciso fazer menos, mas fazer muito mais esforços desinteressados para promover o bem de outrem. Mas a benevolência desinteressada pode encontrar outros instrumentos de persuasão que o chicote e a palmatória, no sentido próprio e no figurativo. Eu sou o último a subestimar as virtudes privadas; mas elas só aparecem após as virtudes sociais.
È a tarefa da educação de cultiva-las igualmente ao mesmo tempo. Mas a educação ela mesma age por convicção e persuasão, da mesma maneira que pela obrigação, e é apenas pela primeira medida que a educação estando terminada, as virtudes privadas deveriam ser estabelecidas. Os homens devem se ajudar uns aos outros a distinguir o melhor do pior, e a se encorajar a preferir um e a evitar o outro. Eles só deveriam ter incessantemente o desejo de se estimular mutuamente a exercer suas mais nobres faculdades e a orientar mais ainda seus sentimentos e seus projetos em direção da sabedoria, e não da loucura, em direção dos objetos de contemplação edificantes, e não degradantes.
Mas ninguém é autorizado a dizer a um homem de idade madura que, no seu interesse, ele só deve fazer de sua vida o que ele escolheu de fazer. Ele é aquele que seu bem estar preocupa mais : o interesse que pode ter um estrangeiro nesse bem estar lhe é insignificante - ao menos que ele tenha por ele um vivo apego pessoal - comparado a seu próprio interesse.


- De la liberté (1859), John Stuart Mill, Trad. M. Dupont - White, revue par L. Lenglet, Gallimard, coll. " Folio ", 1990.


A liberdade e o altruísmo

Nós compreendemos facilmente, ao ler esse extrato de John Stuart Mill ( 1806 - 1873 ), que o livro De la liberté ( 1859 ) tenha podido tornar-se um dos breviários do liberalismo. Não existe nenhum expositivo mais claro e mais forte da problemática fundamental dessa escola.
Estando estabelecido que a liberdade individual constitui um valor supremo, onde traçar a fronteira entre a esfera de intervenção legítima da sociedade na vida do cidadão e a esfera intangível da autonomia do indivíduo ? Essa interrogação se situa no centro da filosofia política moderna. Assim não é necessário de se surpreender que Mill se refira nesse extrato ás teorias do contrato social e que, se diferenciando deste, ele ressalta a temática: desfrutando da proteção da sociedade, qual é o preço que eu estou pronto a pagar para conservar essa inestimável ação generosa? È o primat atribuído á liberdade individual que conduz a modificar a questão e a faze-la nesses termos: como preservar minha autonomia em uma estrutura social de qual a própria existência é sinônimo de obrigações e de disciplinas impostas aos cidadãos em troca da segurança deles ?


A procura da felicidade

Nascido em Londres em 1806, Mill é o filho do filósofo e economista James Mill, discípulo e amigo de Jeremy Benthan, o pai do utilitarismo. De sua obra abundante, nós podemos ressaltar Systéme de logique inductive et déductive ( 1843 ), Principes d'économie politique ( 1848 ), Du gouvernement représentatif ( 1861 ), De l'assujettissement des femmes (1869), Autobiographie ( 1873 ) et De la liberté ( 1859 ), texto fundamental ( extrato acima).
Fiel ás lições de Benthan, Mill está convencido que a procura da felicidade é a motivação humana mais fundamental. Assim um governo esclarecido não saberia ter como outro objetivo que o de realizar a maior felicidade para o maior número de pessoas . Disso resulta a necessidade de reformas profundas. A intervenção do Estado é legitimada em inúmeros domínios: educação ( que ele deseja universal e obrigatória), legislação do trabalho, economia libre-échangiste ( mas ele preconiza todavia algumas nacionalizações). O objetivo deve ser de democratizar o ambiente no qual vivem os indivíduos, de maneira a que cada um tenha acesso aos meios necessários do desenvolvimento positivo de sua personalidade.
Mas dois pontos essenciais devem permanecer adquiridos: nós não faremos jamais a felicidade de alguém contra a sua vontade; uma sociedade racionalmente organizada, na qual prevalecem o espírito cívico e o altruísmo, só precisa de um Estado minimal. Entram dessa maneira em tensão um reformismo que fará de Mill um mestre do pensamento dos radicais de seu tempo e dos futuros fundadores do partido trabalhista, e um individualismo feroz que o tornará caro aos liberais.


Terceira via

Esse individualismo é mais visível no livro De la liberté, que denuncia todas as formas confessadas ou escondidas da opressão dos indivíduos e das minoridades. Mas a tensão evocada é percebida. Ela encontra nisso uma tentativa de resolução na afirmação segundo a qual o individualismo deve permanecer soberano em tudo o que não coloca em jogo sua relação com o resto da sociedade. Esse princípio abre a porta para muitos debates. O importante está na clareza inigualável de sua formulação, e na procura de um equilíbrio entre as exigências de uma vida social que não saberia se reduzir á competição entre os indivíduos, e a necessidade sauvegarde das liberdades. È na obra de Mill que os teóricos do social-liberalismo e de uma terceira via entre o liberalismo e o socialismo encontram uma parte da inspiração deles.

F.L.

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