sábado, 21 de julho de 2007

V. A Razão dos Ateus

"Qual é a razão que faz tantos ateus? É a contemplação de nossas infelicidades e de nossos crimes.
Lucrèce era mais desculpável que nenhuma outra pessoa: ele só viu em torno dele e só experimentou calamidades. Roma, desde Sylla, deve excitar a piedade da terra de qual ela foi o flagelo. Nós nadamos em nosso sangue. Eu julgo por tudo que eu vejo, por tudo que eu escuto, que César será logo assassinado. Vocês pensam a mesma coisa. Mas após ele eu prevejo guerras civis mais horrendas do que as em que eu estive envolvido. César ele mesmo, durante toda a sua vida, o que ele viu, o que ele fez? Infelizes. Ele exterminou os pobres Gaulois que se exterminavam eles mesmos nas suas contínuas facções. Esses bárbaros eram governados por druidas que sacrificavam as filhas dos cidadãos após ter abusado delas. Velhas feiticeiras sanguinárias estavam no comando dos bandos germânicos que destruíam a Gaulle e que, não tendo casa, iam pilhar os que tinham. Arioviste era o chefe desses selvagens, e suas feiticeiras tinham um poder absoluto sobre Arioviste. Elas o proibiram de ir em uma batalha antes da lua nova. Essas fúrias iam sacrificar a seus deuses Procilius e Titius, dois embaixadores enviados por César a esse pérfido Arioviste, quando nós chegamos e que nós liberamos esses dois cidadãos que nós encontramos carregados de correntes. A natureza humana, nessas regiões, era a natureza dos bichos ferozes, e na verdade nós não éramos melhores.
Joguem os olhos sobre todas as outras nações conhecidas: vocês só vêem tiranos e escravos, devastações, conspirações e suplícios.
Os animais são mais ainda miseráveis que nós: sujeitos às mesmas doenças, eles são sem nenhum socorro; todos nascidos sensíveis, eles são devorados uns pelos outros. Não existe nenhuma espécie que não tenha seu carrasco. A terra, de um pólo ao outro, é um campo de massacre, e a natureza sanguinária está sentada entre o nascimento e a morte.
Alguns poetas, para remediar a tantos horrores, imaginaram os Infernos. Estranha consolação, estranha quimera! Os infernos estão em nossas terras. O cachorro de três cabeças, e as Três Parques - (Deusas infernais que teciam, desmanchavam e cortavam o fio da vida dos homens), e as Três Fúrias - (As Èrinyes, deusas da vingança), são ovelhas em comparação aos nossos Sylla e nossos Marius.
Como Deus poderia ter formado esse lugar sujo e estarrecedor de misérias e crimes? Nós supomos um Deus poderoso, sábio, justo e bom; e nós vemos de todos os lados loucura, injustiça e malevolência. Nós preferimos então negar Deus do que blasfemá-lo. Assim nós temos cem epicurianos contra um platônico. Eis as verdadeiras razões do ateísmo; o resto é disputa de escola.

- Voltaire, Últimos escritos sobre Deus, Lettres de Memmius à Cicéron -

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