terça-feira, 10 de julho de 2007

Spinoza, Èthique, 1 ("De Dieu")

"Nosso bem soberano depende únicamente do conhecimento de Deus"



Eu expliquei pelo que precede a natureza de Deus e suas propriedades, "á savoir": que ele existe necessariamente; que ele é único: que ele é e age pela única necessidade de sua natureza; que ele é de todas as coisas causa livre, e como ele é causa livre; que todas as coisas estão nele e dependem dele de tal maneira que elas não podem sem ele nem ser nem serem concebidas; e enfim que todas as coisas foram predeterminadas por Deus, não por uma liberdade da vontade, quer dizer por um " bom prazer" absoluto, mas pela natureza absoluta de Deus, quer dizer por um infinito poder.

- Spinoza, Èthique, 1 (" De Dieu "), Appendice, Trad. Originale de Pascal Séverac -


Proposição 3:

As coisas não puderam ser produzidas por Deus de nenhuma maneira nem em nenhuma outra ordem do que da maneira e da ordem em que elas foram produzidas. [...]

Scolie 2: [....] Eu confesso que a opinião que submete tudo a uma certa vontade indiferente de Deus, e afirma que tudo depende de seu "bom prazer", se afasta menos do verdadeiro do que aqueles que afirmam que Deus faz tudo em razão do bem. Pois estes parecem colocar fora de Deus alguma coisa que não depende de Deus, sobre a qual Deus coloca sua atenção nessas operações como em um modelo, ou na qual ele a considera como um certo objetivo. O que não é nada mais que submeter Deus ao destino, e nós não podemos afirmar nada de mais absurdo ao sujeito de Deus, de quem nós mostramos que ele é a primeira e única causa livre tanto da essência que da existência de todas as coisas.É por essa razão que eu não tenho que perder meu tempo a refutar esse absurdo.

- Idem, I, Prop. 33


Traité Théologico - Politique (1670)

Como a melhor parte do nosso ser é o entendimento, se nós queremos verdadeiramente procurar nosso próprio útil, nós devemos certamente, antes de todas as coisas, nos esforçar- mos de aprimorar o entendimento na medida do possível, pois é na sua perfeição que deve consistir nosso bem soberano. Ora, como todo o nosso conhecimento e nossa certeza, aquela que elimina verdadeiramente toda dúvida, dependem unicamente do conhecimento de Deus, de um lado porque sem Deus nada pode nem ser nem ser concebido, de outro lado porque nós podemos duvidar de tudo enquanto nós não tivermos uma idéia clara e distinta de Deus, podemos deduzir que nosso bem soberano e nossa perfeição dependem unicamente do conhecimento de Deus, etc. Em seguida, como, sem Deus, nada pode ser nem ser concebido, é uma certeza que tudo que está na natureza envolve e exprime o conceito de Deus na proporção de sua essência e de sua perfeição; então, quanto mais nós conhecemos as coisas naturais, mais nosso conhecimento de Deus aumenta e torna-se mais perfeito. Ou ainda : porque conhecer um efeito por sua causa, não é nada mais que conhecer alguma propriedade da causa, quanto mais nós conhecemos as coisas naturais, mais perfeitamente nós conhecemos a essência de Deus (que é a causa de todas as coisas).
E por conseguinte, todo o nosso conhecimento, quer dizer nosso bem soberano, não somente depende do conhecimento de Deus, mas consiste inteiramente nele. Disso ainda resulta que o homem aumenta sua perfeição em razão da natureza e da perfeição da coisa que ele ama mais do que todas as outras, e reciprocamente. Então este homem é necessariamente o mais perfeito e participa bem mais da suprema beatitude que ama mais do que tudo o conhecimento intelectual de Deus, o ser mais perfeito, e se regozija nesse conhecimento da maneira mais elevada. Então é nisso, no amor e no conhecimento de Deus, que reside nosso bem soberano e nossa beatitude. [....].
Então como o amor de Deus é a felicidade suprema do homem, sua beatitude e seu último fim e o objetivo de todas as ações humanas, podemos deduzir que só segue a lei divina aquele que se preocupa de amar Deus não pelo temor do suplício, nem pelo amor de outra coisa como os prazeres, a celebridade, etc..., mas pela única razão que ele conhece Deus e que ele sabe que o conhecimento e o amor de Deus são o bem soberano.

- Spinoza, Traité Théologico - Politique (1670), IV, 4 - 5 , Trad. J.Lagré et P. - F. Moreau, PUF, 1999


Deus como Natureza

Se Spinoza utiliza novamente por uma grande parte a terminologia da teologia cristã clássica e do cartesianismo, ele promove todavia, certas noções e abandona outras: assim, ele não utiliza mais, na "Èthique" (1677), o vocabulário da "criação", mas ele utiliza o vocabulário da "produção"; os seres produzidos por Deus, inclusive os homens, Spinoza os chama "modes" (1). esse termo serve a distinguí-los de Deus, ele mesmo, que é a única "substância" (2), que se produz ela mesma; ele permite também de indicar que essas coisas não saberiam existir fora da substância, quer dizer de Deus: elas não podem ser separadas dele (pelo pecado, por exemplo), e não podem existir sem ele.

Nota, 1 e 2


1 - "Mode"

Por “mode”, eu compreendo as “afecções de uma substância, quer dizer o que é em outra coisa, pela qual ele foi concebido", escreve Spinoza na Èthique (I, def. 5). O “mode” constitui então, uma das duas alternativas da ontologia espinozista: uma coisa é em si (e é a substância absoluta e única), ou então ela é em outra coisa (e é o “mode”). Mas o “mode” não é, e a substância também não, uma abstração ou uma ficção da razão: os “modes” são a infinidade das coisas concretas que Deus produz necessariamente, ou seja uma infinidade de seres reais (inclusive os homens) dotados de uma existência e de uma essência singulares.


2 – Substância

Se Aristóteles, no primeiro livro de Física, definia a substância (ousia em grego) como o substrato subjacente a todas as mudanças, matéria informada pela alma como princípio de vida, Spinoza dá a essa palavra um sentido inédito na história da filosofia: a substância, de qual a definição inaugura o sistema da Èthique ("o que é em si e concebido por si", def. 3), é também "o que a essência envolve na existência ".
A substância, então é Deus, um ser único - não pode existir pluralidade de substâncias -, eterno e dotado de uma infinidade de atributos infinitos. È também a Natureza nos seus dois aspectos: Natureza "naturante" (a substância como causa de todas as coisas) e Natureza "naturée" (os "modes" como afecções da substância ).


Deus sive Natura

A filosofia de Spinoza é com efeito uma filosofia da necessidade absoluta: Deus não pôde fazer as coisas de outra maneira que ele as fez; ele produz todas as coisas necessariamente, mas ele não obedece a outra necessidade que a de sua própria natureza (ver o texto acima). Uma tal definição implica que a potência infinita de Deus não se distingue da produção infinita de seus efeitos: ele é imanente a suas produções; ele não produz nada saindo dele mesmo; ele não conserva nenhuma potência em reserva. Sua potência não é "em potência". Ela não é um potencial, mas sua própria atividade, e esta é plenamente atual: dizendo de outra maneira, Deus é a Natureza ("Deus sive Natura") .


Contra Descartes

Dois erros então devem ser evitados. Primeiro, estimar que Deus age em função de uma norma: isso significaria submetê-lo a um outro princípio que ele mesmo, e negar sua infinidade. Esse erro, como explica Spinoza no segundo texto acima, é mais grosseiro que o que consiste a assimilar sua potência produtiva a uma vontade criativa absolutamente livre. Ao menos essa última concepção, que é a de Descartes, deixa a iniciativa da criação unicamente a Deus.
Segundo o filósofo francês com efeito, Deus criou a Natureza com leis precisas, mas ele poderia muito bem tê-la criado com outras leis (ou não tê-la criado) se ele assim o quisesse: tal é a significação da "indiferença de sua vontade", determinada por nenhuma necessidade, nem mesmo interior. Segundo Descartes, Deus não quer uma coisa porque ela é boa, mas uma coisa é boa porque ele quer. A natureza divina é então, para ele, fundamentalmente incompreensível.
Para Spinoza, existe nisso uma contradição que consiste a estipular que Deus poderia não existir : se ele tivesse tido a possibilidade de produzir as coisas de outra maneira, ele seria diferente do que ele é, e então poderia não existir. Deus na verdade "é necessariamente", e por conseguinte produz as coisas em virtude dessa mesma necessidade pela qual ele não pode não existir. Deus é na realidade "causa livre"; todavia, sua liberdade não é arbitrária, mas necessária.


Amor de Deus e beatitude

Ora, essa necessidade implica à inteligibilidade integral do real: como todas as coisas existem nele e por ele, Deus torna-se o princípio de inteligibilidade de tudo o que existe. E essa compreensão do real oferece uma alegria intelectual que deve ser relacionada à Deus como a sua causa: dizendo de outra maneira, do conhecimento de Deus e de todas as coisas singulares nasce um amor intelectual de Deus: amor que, para Spinoza, é a salvação mesma (ver o terceiro texto acima). Essa concepção de Deus será utilizada novamente por certos filósofos materialistas do século XVIII, como La Mettrie ou Maupertuis.

Na Alemanha, a briga do panteísmo será em torno da filosofia de Spinoza, de qual no século XIX, Nietzsche se reclamará. Algumas pessoas aproximarão então seu "amor fati" do "amor Dei" espinozista.

- P.S -


Nietzsche, Friedrich (1844 - 1900).

Escritor e filósofo alemão com um estilo flamejante e iconoclasta (Par - delá le bien et le mal, Le Gai Savoir, Humain trop humain, La Généalogie de la morale, Ecce homo, Ainsi parlait Zarathoustra...), ele desenvolveu uma filosofia da vida fundada sobre "o tornar-se" do homem e a vontade de potência. Para ele, a história do pensamento e da moral mostra como a vida se refugiou no erro e em um estado de servidão (principalmente por causa do cristianismo). Por isso sua vontade de "transvaluer" todos os valores "nocivos". Seu "surhomme" anunciado por Zarathoustra é um indivíduo do futuro, após um período de niilismo, em um mundo enfim libertado de tudo o que prejudica a vontade de potência. Como conseqüência da falsificação de seus textos por sua irmã, nazista determinada, esse conceito do "surhomme" foi utilizado pelos ideólogos do III Reich.

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