Belo, Beleza
Perguntem a um sapo o que é a beleza, o grande belo, o to kalon. Ele responderà que é a fêmea com dois grandes olhos redondos saindo de sua pequena cabeça, uma cara larga e plana, uma barriga amarela, as costas morenas.
Interroguem um negro de Guinée; o belo é para ele uma pele negra, oleosa, os olhos afundados, um nariz achatado.
Interroguem o diabo; ele vos dirà que o belo é um par de chifres, quatro garras, e um rabo. Consultem enfim os filòsofos, eles vos responderão por uma algaravia; é preciso para eles alguma coisa que seja conforme ao arquetìpo do belo em essência, ao to kalon.
Eu assistia um dia a um tragédia junto com um filòsofo. " Como isso é bonito ! dizia ele. - O que o senhor vê de bonito nisso ? eu lhe disse. - È, disse ele, que o autor atingiu seu objetivo." No outro dia ele tomou uma medicina que lhe fez bem. " Ela atingiu seu objetivo, eu lhe disse; voilà uma bela medicina !
"Ele compreendeu que nòs não podemos dizer que uma medicina é bela, é que para dar a alguma coisa o nome de beleza, é preciso que ela vos cause admiração e prazer. Ele concordou que essa tragédia tinha-lhe inspirado esses sentimentos, e que era isso o to kalon, o belo.
Nòs fizemos uma viagem na Inglaterra; eles representaram a mesma peça, perfeitamente traduzida; ela fez bocejar todos os espectadores. " Oh ! oh, ele disse, o to kalon não é o mesmo para os Ingleses e para os Franceses." Ele concluiu, apòs muitas reflexões, que o belo é muito relativo, como o que é decente no Japão é indecente em Roma, e o que é da moda em Paris não o é em Pékin; e ele não se incomodou para compor um longo tratado sobre o belo.
- Dictionnaire Philosophique - Voltaire -
Certo, Certeza
" Que idade tem vosso amigo Christophe ? - Vinte e oito anos; eu vi seu contrato de casamento, seu extrato batismal; eu o conheço desde sua infância; ele tem vinte e oito anos, eu tenho certeza, eu estou certo disso."Apenas eu escutei a resposta desse homem tão certo do que ele diz, e de vinte outros que confirmam a mesma coisa, que eu soube que o extrato batismal de Christophe, foi antedatado, por razões secretas e por uma manobra singular. Aqueles com quem eu tinha falado ainda não sabem nada; todavia eles têm sempre a certeza do que não é.
Se vòs tivesses perguntado a terra inteira antes do tempo de Copernic: " O sol se levantou ? ele se deitou hoje ? " todos os homens vos teriam respondido: " Nòs temos uma certeza inteira disso." Eles estavam certos, e eles estavam no erro.
Os sortilégios, as adivinhações, as obsessões, foram durante muito tempo a coisa mais certa do mundo aos olhos de todos os povos. Que multidão imensa de pessoas que viram todas essas belas coisas, que estavam certos delas ! Hoje essa certeza caiu um pouco.
Um jovem que começa a estudar a geometria vem me ver; ele sò sabe nesse momento a definição dos triângulos. " Vòs não estais certo, eu lhe disse, que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois direitos ? " Ele me responde que não somente ele não està de maneira alguma certo, mas que ele não tem a mìnima idéia clara dessa proposição: eu faço uma demonstração; ele torna-se então muito certo dela, e ele o serà por toda sua vida.Voilà uma certeza bem diferente das outras: elas sò eram probalidades, e essas probalidades examinadas tornaram-se erros; mas a certeza matemàtica é imutàvel e eterna.
Eu existo, eu penso, eu sinto a dor; tudo isso é tão certo quanto uma verdade geométrica ? Sim. Porquê ? È que essas verdades são provadas pelo mesmo princìpio que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
Eu não posso ao mesmo tempo existir e não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode ao mesmo tempo ter cento e oitenta graus, que são a soma de dois ângulos direitos, e não tê-los.
A certeza fìsica da minha existência, do meu sentimento, e a certeza matemàtica são então do mesmo valor, se bem que elas sejam de um gênero diferente.
Não é a mesma coisa da certeza fundada nas aparências, ou nas relações unânimes que nos fazem os homens.
" Mas como ! vòs dizeis não ter certeza que Pékin existe ? Vòs não tendes tecidos de Pékin ? pessoas de diferentes paìses, de diferentes opiniões, e que escreveram violentamente umas contra as outras, todas pregando a verdade em Pékin, elas não vos asseguraram da existência dessa cidade ?" Eu respondo que para mim é extrêmamente provàvel que exista então uma cidade de Pékin, mas eu não queria apostar minha vida que essa cidade existe, e eu apostarei quando quiserem minha vida, que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois direitos.
Foi imprimido no Dictionnaire encyclopédique uma coisa muito agradàvel; nele se afirma que um homem deveria estar tão certo, que o marechal de Saxe ressuscitou, se Paris inteira lhe dissesse, quanto é certo que o marechal de Saxe ganhou a batalha de Fontenoy, quando Paris inteira lhe diz. Vedes, por favor, como esse raciocinio é admiràvel:" Eu acredito na cidade inteira de Paris quando ela me diz uma coisa moralmente e fisicamente impossìvel."
Aparentemente o autor desse artigo queria rir, e que o outro autor que se extasia no fim desse artigo, e escreve contra ele mesmo, queria também rir".
- Idem -
Igualdade
O que deve um cachorro a um cachorro, e um cavalo a um cavalo ? Nada, nenhum animal depende de seu semelhante; mas, o homem tendo recebido o raio da Divinidade que nòs chamamos a razão, qual é o fruto dele ? È de ser escravo em quase toda a terra.
Se essa terra fosse o que ela parece dever sido, quer dizer se o homem encontrasse nela em todo lugar uma subsistência fàcil e segura, e um clima conveniente a sua natureza, està claro que teria sido impossìvel para um homem de escravizar outro.
Que esse globo seja coberto de frutos salutares; que o ar que deve contribuir na nossa vida não nos dê de maneira alguma as doenças e a morte; que o homem não tenha necessidade de outra casa e de outra cama que a das camurças e madresilvas: enquanto que os Gengis-Khan e os Tamerlan sò terão como domésticos os seus filhos, que serão bastante honestas pessoas para ajuda-los na sua velhice.
Nesse estado tão natural de qual regozijam todos os quadrùpedes, os pàssaros e os répteis, o homem seria tão feliz quanto eles, a dominação seria então uma quimera, um absurdo que ninguém pensaria; pois porquê procurar servidores quando vòs não precisais de nenhum serviço ?
Se passasse pelo espìrito de algum indivìduo de cabeça tirânica e braço nervoso de escravizar seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossìvel: o oprimido estaria a cem léguas antes que o opressor tivesse tomado suas medidas.
Todos os homens seriam então necessariamente iguais se eles fossem sem necessidades. A miséria relacionada a nossa espécie subordina um homem a um outro homem; não é a desigualdade que é uma infelicidade real, é a dependência.
Pouco importa que tal homem se chame Sua Alteza, tal outro Sua Santidade; mas é duro de servir um ou outro.Uma familia numerosa cultivou uma boa terra; duas pequenas familias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: é preciso que as duas pobres familias sirvam a familia opulenta, ou que elas a degolem, isso acontece sem dificuldade.
Uma das duas familias indigentes vai oferecer seus braços à rica para ter pão; a outra vai ataca-la e serà batida. A familia servidora é a origem dos domésticos e das manobras; a familia batida é a origem dos escravos.
È impossìvel, em nosso globo infeliz, que os homens vivendo em sociedade não sejam divididos em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos; e essas duas se sudividem em mil, e essas mil ainda têm nuanças diferentes.
Todos os oprimidos não são absolutamente infelizes. A maioria nasceu nesse estado, e o trabalho contìnuo deles os impede de sentir muito a situação; mas, quando eles a sentem, então nòs vemos as guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma; a dos agricultores na Alemanha, na Inglaterra, na França. Todas essas guerras acabam cedo ou tarde pela escravidão do povo, porque os poderosos têm o dinheiro, e que o dinheiro é o mestre de tudo em um Estado: eu digo em um Estado, pois não é a mesma coisa de nação à nação. A nação que se servirà melhor do ferro subjulgarà sempre aquela que tem mais ouro e menos coragem.
Todo homem nasce com uma tendência assaz violenta para a dominação, a riqueza e os prazeres, e com muito gosto para a preguiça; por conseguinte, todo homem gostaria de ter o dinheiro e as mulheres ou as filhas dos outros, ser o mestre deles, escraviza-los para satisfazer todos seus caprichos, e não fazer nada, ou pelo menos sò fazer coisas agradàveis. Vòs bem veis que com essas belas disposições é tão impossìvel que dois pregadores ou dois professores de teologia não sejam ciumentos um do outro.
O gênero humano, como ele é, não pode subsistir, ao menos que exista uma infinidade de homens ùteis que não possuam nada; pois, certamente, um homem pròspero não deixarà sua terra para vir laborar a vossa; e, se vòs precisais de um par de sapatos, não serà um mestre de requerimentos que farà eles. A igualdade é então ao mesmo tempo a coisa mais natural e a mais quimérica.
Como os homens são excessivos em tudo quando eles podem, essa desigualdade foi exagerada; foi pretendido em vàrios paìses que não era permitido a um cidadão de sair do lugar onde o acaso o fez nascer; o sentido dessa lei é visivelmente: Esse paìs é tão ruim e tão mal governado que nòs proibimos a cada indivìduo de sair dele, de medo que todo mundo saia.
Façam melhor: dêem a todos vossos sujeitos a vontade de permanecer em vossa terra, e aos estrangeiros vontade de vir nela.
Cada homem, no fundo de seu coração, tem o direito de se acreditar inteiramente igual aos outros homens; isso não quer dizer que o cozinheiro de um cardinal deva ordenar a seu mestre de lhe fazer o jantar; mas o cozinheiro pode dizer: " Eu sou homem como meu mestre, eu nasci chorando como ele; ele morrerà como eu nas mesmas angùstias e com as mesmas cerimônias. Nòs fazemos todos dois as mesmas funções animais. Se os Turcos se apoderam de Roma, e se então eu sou cardinal e meu mestre cozinheiro, eu o pegarei a meu serviço."
Todo esse discurso é razoàvel e justo; mas, esperando que o Grande Turco se apodere de Roma, o cozinheiro deve fazer seu dever, ou toda sociedade humana seria pervertida.
Para um homem que não é nem cozinheiro de um cardinal nem revestido de nenhum outro cargo no Estado; para um particular que não é apegado a nada, mas que està zangado de ser recebido em todo lugar com um ar de proteção ou de desprezo, que vê evidentemente que vàrios monsignors não têm nem mais ciência, nem mais espìrito, nem mais virtude do que ele, e que se cansou de estar algumas vezes na antichambre deles, que partido ele deve tomar ? O de partir
.- Dictionnaire Philosophique - Voltaire -