domingo, 13 de maio de 2007

O COLAPSO DO PROTESTANTISMO

Henry Louis Mencken (1880-1956) (matéria escrita em 1926)


O fato de que o protestantismo está gravemente doente nos Estados Unidos deve ser óbvio para qualquer observador de patologia espiritual. Metade dele está se mudando, lenta e progressivamente, em direção aos braços do Cortesão das Sete Colinas; a outra metade desliza para o vuduísmo. A primeira metade leva com ela a maior parte do dinheiro protestante; a segunda leva a maior parte da libido protestante. O que sobrar no meio pode ser comparado a um tronco a que faltam um cérebro pensante e pernas para dançar – em outras palavras, algo que começa a ficar profissionalmente atraente para os papa-defuntos, embora ainda rebole para continuar respirando. Não há falta de vida nos escalões superiores, onde os metodistas mais solventes gradualmente se transmutam em episcopais, e os episcopais escalam os velhos bastiões da Santa Madre; não há também falta de vida nos escalões inferiores, onde os batistas matutos da zona rural descem rapidamente, pela estrada do fundamentalismo, para os dogmas e práticas da selva africana.
Em nenhum outro lugar, o protestantismo foi tão forte como nos Estados Unidos. Aqui é a terra do americano simples e piedoso, adepto da devoção e hostil a qualquer suspeita de orgia – do sujeito honesto que cumpre obedientemente as suas funções dominicais, paga seus tributos e espera por algumas palavras de conforto do pastor quando chegar a sua hora de morrer. Hoje, infelizmente, ele tende a faltas com seus pios exercícios, há rumores de que algo errado anda acontecendo com as igrejas, os jornais mais sectários ouriçam-se para pô-las na linha, e os pastores, fartos do trabalho paroquial e de pregação, preferem trabalhar como secretários executivos desses esquemas, o que os obriga a cruzar o país, expondo-os para os fiéis.
A extensão com que o protestantismo, em seus escalões superiores, sucumbiu aos lascivos avanços de Roma, parece ter sido pouco percebida pela maioria dos connoisseurs. Eu próprio ainda não tinha me dado conta de toda a verdade até um Natal recente quando, em busca de informações sobre outro assunto, contratei agentes para presenciar todos os cultos nas principais igrejas de uma importante cidade americana e trazer também os melhores relatórios sobre o que se passava nas igrejas menores. A substância desses relatórios, no que se referia às igreja patrocinadas pelos ricos, era simples: revelava uma acentuada tendência para a direita, quase um vôo cego sobre uma montanha. Seis supostas igrejas episcopais organizaram cultos à meia-noite da véspera de Natal, numa óbvia imitação das Missas do Galo da igreja católica, e uma delas chegou a classificar o seu próprio culto de missa solene. Duas outras igrejas convidaram seus nobres e fidalgos para procissões, e uma terceira disfarçou sua procissão com o nome de cortejo. Uma igreja executou a Missa de Santa Cecília, de Gounod, na manhã de Natal, e outra a Messe Solenelle, do mesmo compositor; três outras, um pouco mais cautelosas, contentaram-se em apresentar apenas partes do ritual católico. Uma delas, despindo-se de qualquer máscara ou eufemismo, convocou os fiéis para nada menos que três missas. Todos as seis igrejas brilhavam à luz de velas e duas empregaram incenso.
Mas isto não foi o pior. Duas igrejas presbiterianas e uma igreja batista, para não citar cinco luteranas de diferentes sínodos, entoaram cantos corais na madrugada de Natal, e a única presenciada por um de meus agentes que conseguiu acordar a tempo – era uma igreja presbiteriana – exibia as mesmas velas e tinha um palpável ressaibo romano. Pior ainda: uma rica e importante igreja metodista, apadrinhada pelos principais atacadistas e agiotas da cidade, atrevidamente ofereceu um “coral medieval”. Medieval? O que significa isto? A Idade Média terminou no dia 16 de julho de 1453, às 12 horas em ponto, e a Reforma só foi lançada por Martin Lutero a 31 de outubro de 1517, às 10h15 da manhã. Se o termo medieval, no sentido em que foi usado, não significa a Igreja Católica Romana, então sem dúvida perdi meu tempo na escola. Meu agente, nascido metodista, relatou que ficou chocado com a cerimônia.
Começou com sopros de pistões da torre da igreja e terminou com uma Ave Maria entoada por um coro com vestes a caráter. De novo as velas ardiam em fileiras por trás do santuário e, sobre elas, brilhava uma estrela elétrica. Realmente, Deus nos ajude! O que falta agora? Um pastor que, em futuro próximo, desafie os ensinamentos de Jeová, apresentando-se de alva e dalmática? Virará as costas aos fiéis? Mandará instalar uma cabine telefônica para confissões auriculares? Certamente ninguém duvida de que o uso de velas para adoração pública teria a aprovação dos metodistas de Ur, ou que ele teriam consentido a apresentação de Blasmusik por um coro a caráter. Há apenas sessenta ou setenta anos, no entanto, os metodistas proibiram celebrações de Natal de qualquer espécie, por considerá-las romanas e idólatras. Hoje temos cerimônias quase operísticas. Como já disse, os episcopais – que, na maioria das cidades americanas, são quase todos ex-metodistas ou ex-presbiterianos, e, em Nova York, ex-judeus – vão ainda mais longe. Em três das igrejas visitadas por meus agentes, a Santa Comunhão era quase indistinguível da uma missa católica, e em todas a casa estava cheia, assim como a sacola de esmolas.
Até os metodistas que continuam metodistas começam a vacilar. Cansados do alarido típico da demonologia metodista, aderiram ao novo estilo que lhes parece mais imponente e voluptuoso. O sermão deixa de ser uma carga de cavalaria e torna-se suave pizzicato. O coro abandona Jogue o Salva-Vidas e Você Está Pronto para o Dia do Juízo? E brinca de cantar Handel. É uma evolução que, vista de uma árvore, tem um certo mérito. O estoque de asneiras no mundo diminui sensivelmente, enquanto aumenta o de beleza. Mas o que pensariam disto os antigos pregadores ambulantes, imaginando como tudo aquilo voltou miraculosamente do Inferno?
Bem, é o bastante para explicar a volatilização do que está acontecendo. O que estará em progresso a seguir? Só consigo antever uma bárbara temporada de caça ao diabo. Em todas as partes dos Estados Unidos onde Belzebu continua a existir – por exemplo, nas zonas rurais do Meio-Oeste e em todo o Sul, exceto por algumas cidades protegidas por muralhas --, as seitas evangélicas mergulham num abismo de imbecilidade maligna e declaram uma guerra santa contra toda a decência acalentada pelos homens civilizados. Devem ter jogado o Novo Testamento no mar e retornado ao Velho, particularmente aos seus trechos mais sangrentos. O que mais salta à visa sobre os clérigos é a sua descomunal falta de informação e bom senso. Eles constituem, talvez, a classe mais ignorante de professores já formada para guiar um povo presumivelmente civilizado; são mais ignorantes ainda do que os superintendentes das escolas.
O aprendizado, na verdade, não é tido em alta estima pelo sectarismo evangélico, e qualquer matuto que saiba ler, se inflamado pelo Espírito Santo, é declarado apto a sair pregando. Mas eles não são mandados antes para um treinamento numa universidade? Sim, mas que universidade! Aquela lá no fundo de um vale, com seu único edifício rodeado de pastagens, e um corpo docente formado por pedagogos semi-idiotas e pregadores gagás. Tais homens, numa faculdade destas, ensinam oratória, história antiga, aritmética e a exegese do Velho Testamento. O aspirante sai da estrebaria e volta à sua cidade em um ano ou dois. Sua bagagem de conhecimentos é a mesma de um chofer de ônibus ou a de um ator de circo. Mas ele aprendeu os clichês da profissão, comprou um terno preto para os domingos, escapou do batente enfrentado por seus ancestrais e agora jorra luz e aprendizado para os trouxas como se fosse um chafariz.
from: Books of Insults.

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