domingo, 20 de maio de 2007

CARÁTER


A palavra grega impressão, gravura. É o que em nós gravou a natureza. Podemos apagá-lo? Transcendental questão. Se tenho, o nariz torto e olhos de gato, posso escondê-los sob uma máscara. Poderei encobrir melhor o caráter?
Apresenta-se perante Francisco I, de França, a fim de queixar-se de uma preterição, um indivíduo de natural violento e impetuoso. O semblante do príncipe, a postura respeitosa dos cortesãos, o próprio local impressionam-no fundamentalmente. Maquinalmente baixa os olhos, a voz rude se abranda e faz o pedido humildemente. Crer-se-ia nascido tão manso quanto os cortesãos em meio dos quais parece quase desconcertado. Entretanto, facilmente descobre Francisco I em seus olhos baixos, porém, acesos de um fogo sombrio, nos músculos contraídos do rosto, nos lábios contracerrados, que esse homem não é tão humilde como aparenta. Esse homem acompanha-o a Pávia, é aprisionado com ele, e com ele levado a Madri. Já não lhe infunde a mesma impressão a majestade do rei. Familiariza-se com o objeto de seu respeito. Um dia, ao descalçar-lhe as botas, e fazendo-o desleixadamente, Francisco, azedado pelo infortúnio, ralha-lhe. Nosso homem manda o rei plantar batatas e atira as botas pela janela.
Nascera Sisto V, petulante, opiniático, soberbo, impetuoso, vingativo, arrogante. As provas do noviciado parecem ter-lhe adoçado o caráter. Mal começa a desfrutar de certo crédito em sua ordem, lança-se contra um guardião, e alomba-o a punhaladas. Inquisidor,em Veneza, exerce o cargo com insolência. Cardeal, é possuído della rabbia papale. Embuça na obscuridade sua pessoa e seu caráter. Mascara-se de humilde e moribundo. Elegem-no papa: é quando dá à mola do natural toda a elasticidade longo tempo retesada pela política. É o mais arrogante e despótico dos soberanos.
Naturam expellas furca, tamem usque recurret.
Religião, moral, são freios retentores do caráter. Não podem, porém, matá-lo. Enclausurado, reduzido a dois dedos de cidra às refeições, pode o bêbado deixar de embriagar-se, mas ansiará sempre pelo vinho.
A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma árvore que não dá senão um ou outro fruto abastardo, mas sempre da mesma natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha. Jamais deixará de ser carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível alterar o caráter, a gente mesmo o plasmaria a bel-prazer, seria senhor da natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não recebemos tudo. Experimentai animar o indolente de contínua atividade, inspirar gosto à musica a quem careça de gosto e de ouvido. Não tereis melhor resultado do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença. Não aperfeiçoamos, esborcelamos, o que nos estereogravou a natureza. Não há, porém, como alterar-lhe a obra.
Direis a um criador: - O senhor tem peixe demais nesse viveiro; assim eles não vingam. Seus campos estão sobrelotados de gado; o capim não dá, os animais emagrecerão. – mas deixa nosso homem que as solhas lhes comam metade das carpas, e os lobos metade dos carneiros. Os restantes engordam. Gabar-se-á ele dessa economia? Este camponês és tu mesmo. Uma de tuas paixões devorou as outras, e tu julgas haver triunfado sobre ti próprio. Não parecemos quase todos nós com aquele velho general de noventa anos que, encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças, perguntou-lhes, colérico: “Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?”.

Dicionário Filosófico – Voltaire, Cap. XXI.