quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

No Umbral do Mistério

Cansado de buscar, em vão, a substância sob o véu das formas que ela assume, e de chocar-se incessantemente contra a muralha das aparências formais, consciente de um enorme além, o menos místico dos pensadores quis, certo dia, sondar os arcanos do mundo extrasensível. Assim, subiu a montanha até o templo do mistério, chegando a seu limiar. Ora, as gerações anteriores a ele assediaram o santuário sem jamais descobrir nele uma única porta. Renunciando a esse sol interior que faz florir, nos vitrais, rosáceas de luz, não conservaram nada além do ofuscamento de sua miragem eterna. Os solicitadores degraus do templo terminam no granito inóspito das muralhas. No frontão, acham-se gravadas duas palavras que provocam o calafrio das coisas desconhecidas: "SCIRE NEFAS".

Um subterrâneo cuja chave está perdida abre-se em algum ponto do vale. Costuma-se dizer que, no decorrer dos séculos, alguns raros audaciosos souberam forçar o segredo do subterrâneo, onde se cortam inúmeras galerias entrelaçadas: lá jaz o inexorável ministro de uma lei incontestável. O antigo guardião dos mistérios, a Esfinge simbólica, ergue-se sobre o umbral e propõe o enigma oculto: "Treme, Filho da Terra, se tuas mãos não são brancas diante do Senhor! Iod-Heve aconselha apenas aos seus. Ele próprio conduz o adepto pela mão até o tabernáculo de sua glória. O temerário profano, porém, afasta-se infalivelmente e encontra a morte nas trevas do bárathro. Que aguardas? Recuar é impossível. Deves escolher teu caminho pelo labirinto. Cabe-te decifrar ou morrer..."


Acautelai-vos, para não verdes nesses símbolos temíveis vãs ameaças. A alta ciência não poderia ser objeto de uma curiosidade frívola. O problema é sagrado, e sobre ele empalideceram muitas frontes privilegiadas. Assim, questionar a Esfinge por capricho é um sacrilégio nunca impune, pois uma tal linguagem traz em si o verbo de sua própria condenação. À vossa pergunta indiscreta, o Desconhecido formula uma resposta inesperada, tão perturbadora, que a obsessão permanece em vós para sempre. O véu do mistério incitava vossa curiosidade? Ai de vós se o levantas! Ele cai imediatamente de vossas mãos trêmulas e o desatino se apodera daquilo que julgaste ver. Não sabe quem deseja distinguir o raio divino do reflexo mil vezes refratado nos densos meios da ilusão terrestre. Esse arcano será elucidado mais tarde. O que quer que ele seja, os fantasmas da alucinação assombram o umbral do mistério, e perguntai ao livro do doutor Brière de Boismont(24) que passo escorregadio separa a alucinação da loucura. Como veremos, trata-se de uma porta que não podemos transpor sem entrarmos em contato com certas forças das quais nos tornamos senhor ou escravo, governante ou joguete. Trata-se de poderes que a Mística Cristã simbolizou com a imagem da serpente que reduz o homem à escravidão, caso este não a submeta primeiro, esmagando sua cabeça com os pés. Os leitores de Zanoni(25) - o belo romance de Bulwer Lytton - talvez já tenham descoberto, no "monstro inominável" que Glyndon evoca de modo tão desastroso, um mito análogo ao da Gênese. A "coisa horrível e velada", o "guardião do umbral", é a alma fluídica da terra, o gênio inconsciente do nascimento e da morte, o agente cego do Eterno Devir: é a dupla corrente de luz mercurial de que logo falaremos. O autor inglês assinala com grande precisão a reversibilidade da luz astral, de que se tornam vítimas aqueles que não a souberam dirigir: Glyndon é livre para fugir, para debater-se contra a obsessão, mas a influência nefasta o acompanha e o fará tropeçar, de fatalidade em fatalidade, até o dia da catástrofe suprema, até o dia em que Zanoni, delirando na embriaguez do sacrifício voluntário, condenar-se-á, salvando-o.

Penetremos o sentido esotérico dessas alegorias, reservando o outro para depois. Uma coisa são os males do coração, que habitualmente sucedem emoções violentas; uma coisa é a morte iminente por congestão cerebral; outra coisa são os perigos de natureza mais estranha, que mencionaremos oportunamente. A prática imprudente do hipnotismo, a fortiori da magia cerimonial, não deixa de inspirar ao experimentador um insuperável desgosto pela vida. O próprio Eliphas(26) - adepto que foi, e de ordem superior - confessa que sentiu, depois do curioso experimento de necromancia que fez em Londres em 1854, uma profunda e melancólica atração pela morte, ainda que sem a tentação ao suicídio. O mesmo não se passa com os ignorantes que se lançam, de corpo e alma, ao magnetismo, campo cujas leis desconhecem; ou ao espiritismo, algo que por si só constitui uma aberração e uma loucura. "Felizes", proclama o célebre Dupotet, "aqueles que morrem de uma morte rápida, de uma morte que a Igreja reprova! Tudo o que há de generoso se mata..."(27)


A história está repleta de exemplos de fatos como esse. Tendo anunciado profeticamente o dia de sua morte, Jérôme Cardan suicidou-se (l576) para não desmentir a Astrologia. Schröppfer de Leipzig, no auge de sua glória como necromante, provocou sua morte com um tiro na cabeça (1774). O espírita Lavater morreu misteriosamente (1801). Quanto ao sarcástico abade de Montfaucon de Villars, que tanto ridicularizou o conde de Gabalis(28), talvez nem se saiba a última palavra de seu trágico fim (1673).
Assim, sobre os entusiastas do maravilhoso e os temerários amadores de revelações de além túmulo, sopra um vento de ruína e de morte. Como seria fácil estender a lista necrológica! Mas pouco importa. Inacessíveis à louca curiosidade, bem como rebeldes às emoções doentias, somente podem afrontar impunemente as operações da ciência aqueles que sabem distinguir um fenômeno de uma prestidigitação e que encouraçam os seus sentidos contra toda e qualquer ilusão. Merece o nome de adepto aquele experimentador que tranqüilamente diz a si mesmo: "Meu coração não há de bater mais depressa: a força invisível que desloca esses móveis com estrépito é uma corrente ódica submissa à minha vontade. A forma humana que se condensa e se avoluma nos vapores desses perfumes nada mais é do que uma coagulação fluídica, reflexo colorido do sonho de meu cérebro, criação azótica do verbo de minha vontade..." Quem fala assim não corre, é claro, nenhum perigo; merece o nome de adepto.
Todavia, bem poucos podem reivindicar esse título. Tais homens, se outrora eram raros, hoje é ainda mais difícil encontrá-los. Pouco inclinados, aliás, a aparições públicas, vivem e morrem ignorados. É para os mais ruidosos que correm os néscios; é aos mais pretenciosos que cabe a fama. Taumaturgos teatrais, doentes excêntricos, é a esses que a celebridade sorri e consagra: era feiticeiro Simão, ao tempo de São Pedro: no século passado, eram Etteilla, o cartomante, e o extático Théot; ontem, eram Home, o médium, e Vintras, o profeta!... Alguns outros - esses verdadeiros sábios - também causam furor, mas graças a certos traços equívocos ou charlatanescos de seu caráter: assim, o conde de Saint-Germain e o divino Cagliostro; Pierre le Clerc, o beneditino fatídico, e o espiritualíssimo quiromante Desbarrolles.


Todas as vezes que um charlatão despontou cingido por uma aura de magicidade, com um cetro grotesco na mão, tudo o que tinha de odioso recaiu sobre verdadeiros adeptos. Na verdade, estes beneficiaram-se do escárnio, enquanto aqueles se beneficiaram do dinheiro. Essa, indubitavelmente, foi a causa maior das calúnias que tanto sofreram - sobretudo na Idade Média - os discípulos de Hermes, de Zoroastro e de Salomão: os magos eram acusados das práticas criminosas, obscenas e blasfematórias que os feiticeiros e feiticeiras realizavam no sabbat. Todos os delitos desses monstros de ambos os sexos - violações, malefícios, envenenamentos, sacrilégios foram imputados a iniciados superiores, sobre cuja vida privada pairavam as mais abomináveis maledicências; e sua doutrina reputada como uma trama de intensa inépcia e de grosseiras injúrias contra o Cristo e a Virgem Maria, tornou-se espantalho das almas piedosas e objeto de escárnio das pessoas de espírito.
Deve-se confessar, aliás, que o simbolismo esotérico dos livros de Hermetismo e de Cabala não deixou de acentuar o desprestígio das altas ciências entre os espíritos superficiais. Para isso contribuía a visão de conjunto: os complicados sinais de planetas, as letras hebraicas dos hierogramas, os caracteres árabes dos grimórios, a alta fantasia aparente dos pantáculos e a bizarria mística das parábolas, coisas extremamente diabólicas no entender dos parvos e ignaros, à primeira vista pueris, no entender dos espíritos lógicos, e, de qualquer forma, excitantes da curiosidade de cada um. Em todos os tempos, os sábios escreveram e falaram a língua dos mitos e das alegorias, mas a obscuridade da forma jamais se fez sentir tão densa e misteriosa como na Idade Média, até o século passado; a intolerância dos inquisidores, a constante ameaça da fogueira e o fanático desatino da população diante da simples menção da palavra feiticeiro justificam suficientemente a precaução dos adeptos. A ciência oculta assemelha-se a esses saborosos frutos protegidos por cascas espessas e duras: agrada-nos retirar laboriosamente a casca; a polpa suculenta do fruto com certeza ressarcirá o nosso sofrimento.


Foi a alquimia vilipendiada muito cruelmente e a transmutação dos metais ridicularizada à vontade? Não se trata, aqui, de fazer apologia ou, mesmo, uma exposição da arte espagírica. Exultamos, porém, ao transcrever, para a confusão dos parvos difamadores, a recente apreciação daquele que é, talvez, o maior químico da França contemporânea, Berthelot, em suas Origens da Alquimia: "Reconheci não somente a filiação das idéias que os (os alquimistas) levaram a almejar a transmutação dos metais, como também a teoria, a filosofia da natureza que lhes servira de fundamento, teoria essa fundada na hipótese da unidade da matéria E, NA REALIDADE, TÃO PLAUSÍVEL QUANTO AS TEORIAS MODERNAS QUE HOJE GOZAM DO MAIOR PRESTÍGIO... Ora, que estranha circunstância! As opiniões a que os sábios tendem a voltar suas atenções, sobre a constituição da matéria, não deixam de ser análogas às profundas visões dos primeiros alquimistas"(29).
Vê-se com isso como nosso ilustre contemporâneo revela as filosofias herméticas. Sua admiração talvez fosse bem maior se, plenamente iniciado no espagirismo esotérico, penetrasse o triplo sentido dessas locuções especiais que seu gênio só pôde adivinhar de modo imperfeito(30).
Mas a alquimia é apenas uma parte mínima da ciência, ensinada nos santuários da antiguidade. Não é revoltante pensar que, ainda hoje, os espíritos lúcidos ainda não aprenderam a distinguir entre as orgias sanguinolentas do sabbat legendário, os monstruosos priapismos da magia negra e os faustos dessa ciência tradicional dos iniciados do Oriente, síntese gigantesca e esplêndida que traduz em imagens grandiosas augustas verdades apenas vislumbradas pelos pensadores de todos os tempos, e luminosas hipóteses, deduzidas por analogia, que hoje a ciência, mais esclarecida e mais racional, tende a confirmar.


Qual Valmiki da Europa cantará as civilizações tirânicas do mundo primitivo, os grandes ciclos intelectuais testemunhados pela Alta Magia? E, para celebrar dignamente esta mãe de todas as filosofias, quem nos dirá a epopéia de sua glória resplandecente sobre as nações antigas, e o recente drama do martírio de seus adeptos, perseguidos pela Igreja e alvejados pelas calúnias do mundo inteiro?... Assim se apresenta para nós a alta Ciência através da humanidade, maldita e desprezada desde a traição dos gnósticos dissidentes; confundida, na imaginação aterrorizada das massas, com a imunda feitiçaria; desacreditada pelos falsos sábios cujos sonhos fúteis ela solapa, desatinando a escolástica em delírio; crivada, enfim, de anátemas de um presunçoso sacerdócio, desprovido de sua iniciação primitiva!... De tal forma se nos apresenta esta ciência ao longo de pelo menos quinze séculos de história, que, mergulhando fundo no passado, hesitamos em reconhecê-la, resplandecente e sagrada nos santuários do mundo antigo e, mais tarde, conferindo um puro esplendor ao cristianismo oculto dos primeiros Papas.
Não é que a antigüidade não tivesse seus feiticeiros - e, sobretudo, feiticeiras. A magia envenenadora conquistou, com as megeras da Tessália e da Cólquida, uma lúgubre celebridade. Visitantes noturnas de tumbas, vestais impuras de lugares desertos, elas misturavam, na seiva narcótico-acre dos meimendros negros e das cicutas, o leite cáustico do titímalo e faziam digerir extratos de acônito licoctone e de mandrágora com inomináveis venenos e humores obscenos. Depois, seus encantamentos saturavam essas misturas com um líquido que se tomava tanto mais mortífero quanto mais dolorosamente o seu ódio, por muito tempo contido, o tivesse elaborado e projetado em uma cólera mais venenosa e tácita. As cozinhas de Canídia (tão horrendas que, à sua vista, a lua se velava, conforme se diz, com uma nuvem sangrenta) tiveram a honra de provocar o desgosto lírico de Horácio, cujos detalhes não é preciso descrever aqui, presentes que estão na memória de todos os aficionados do poeta.


Não menos célebre é a lenda que Homero poetizou, a saber, a dos companheiros de Ulisses, enfeitiçados, que se tornaram porcos submissos à varinha de Circe. Todos beberam da poção e sofreram a metamorfose; isso implica um duplo símbolo: o da derrota a que são predestinadas as naturezas passivas no combate da vida e o da servidão a que nos reduzem as paixões físicas não equilibradas por uma iniciativa sempre desperta (paixão, pois, exprime um estado passivo). Todos beberam, dissemos. Ulisses, porém, recusa molhar os lábios na taça encantada e no tom calmo, próprio da força consciente de si mesma, com o gládio em punho, num gesto de ameaça, ordena à maga que quebra o sortilégio fluídico. O príncipe, aqui, representa o Adepto, o mestre dos fluidos, pois que, hábil em desmontar a armadilha, sabe imprimir às ordens que dá o verbo autoritário de sua vontade. Nele, Circe reconhece o homem mais forte que todos os encantamentos e, com a cabeça baixa, obedece.
Mais sanguinária e mais perversa, Medéia também deve aos poetas o lamentável privilégio de sua ilustração; muitos cantaram sua vida errante. Medéia envenena seus próximos, queima e massacra seus filhos. Refugiada em Atenas, perto do rei Egeu, que a torna mãe, ela dá largas aos seus instintos de depravação feroz e de inveja, confiante na impunidade, até o dia em que seus crimes suscitam a indignação de toda a cidade. Pálida apupada e apedrejada pelo povo, a infeliz vê-se forçada a fugir, com os olhos incendiados por um ódio implacável, apertando no peito o único filho que poupara, qual um fruto duplamente sagrado pelo adultério e pela vingança.


Pouco importa que a história dessas duas irmãs de malefício seja real ou legendária. As individualidades fabulosas são tipos de síntese moral em que se encarna o gênio médio de uma raça ou de uma casta. A estirpe execrável das sagas da Hélade fez desabrochar Medéia em uma suprema expansão de vigor. Sim, as abominações a que se refere o povo com referência a empusas e vampiros foram literalmente realizadas pelas feiticeiras do mundo antigo, criaturas a quem a cólera pública conferiu, aliás, os nomes de estrige e de lâmia.
Entretanto, deixemos esses horrores. Se na Idade Média monstros desse tipo foram confundidos, aqui e acolá, com os verdadeiros iniciados, é que estes - repito - necessariamente suspeitos de heresia, excomungados ipso facto, encurralados como cervos, viam-se obrigados a ocultar nas trevas o mistério de sua dolorosa existência. Desde então, a calúnia vigorou. Mas tal coisa, graças a Deus, não era possível ao tempo em que a teurgia enchia os templos de maravilhas e em que o mago, calmo e benfazejo em seu ilimitado poder, reinava, inviolável como um soberano, venerado como um Deus...
Meditai sobre o livro magistral de Saint-Yves d'Alveydre - A Missão dos Judeus(31). Religioso perscrutador das necrópoles do passado, perquirindo até os mínimos detalhes das raças e das religiões orientais, o eminente ocultista estabeleceu, com base nas provas mais irrefutáveis, uma verdade que Fabre d'Olivet(32) e, posteriormente, Eliphas Levi(33) já haviam entrevisto de forma lapidar, ou seja, o fato de a Gênese ser uma cosmogonia transcendente em que os mais profundos arcanos da santa Cabala são revelados simbólica e hieroglificamente. Mas a Cabala primitiva é filha do Hermetismo egípcio, cujos mitos primordiais foram hauridos pela grande fonte hindu. Saint-Yves não se detém, portanto, em Moisés. Como um navegador, explora o rio dos tempos passados. Desfraldando todas as velas, sobre o curso dos séculos até a origem do ciclo de Ram.


Eis aqui o imenso império arbitral do Carneiro. Seu governo "sinárquico", cuja organização ternária conforma-se às leis da ciência e da harmonia, faz florescer sobre a Terra, durante dois mil anos, a idade de ouro celebrada por Ovídio. Dos três conselhos encarregados da gestão dos negócios, os dois primeiros compõem-se, respectivamente, de hierofantes admitidos na iniciação suprema, e de adeptos laicos. Ram conquistou um terço do mundo apenas com vistas a pacificação. Uma vez atingido esse objetivo, renuncia ao gládio, à coroa e ao estandarte do Carneiro, em uma palavra, renuncia aos poderes executivo e militar, deixando-os nas mãos do primeiro príncipe indiano. Assim, colocando a tiara do Soberano Pontífice universal, arvora a auriflama do Cordeiro - hieróglifo do sacerdócio. Este realizador da mais vasta síntese que a mente humana pôde conceber, este soberano do mais gigantesco império civilizado que César ousou cobiçar em sonho, troca a coroa imperial pelo cetro do mago dos magos e pela divindade terrestre; pode-se dizer, pois, que esses hierofantes exerciam, então, a divindade sobre o microcosmo.
Durante mais de trinta séculos, até o cisma de Irschu, a grande obra de Ram prospera em ordem e em paz. Queremos transcrever, aqui, a enumeração das metrópoles religiosas do Império, de acordo com Saint-Yves.
"Os santuários mais célebres deste antigo culto lâmico foram, entre os indianos, os de Lanka, Ayodhia, Guzah, Methra e Dewarkash; no Irã, os de Vahr, Balk, Bamiyan; no Tibete, os do monte Boutala e de Lassa; na Tatarah, os de Astrakan, Gangawas e Baharein; na Caldéia, os de Ninweh, Han e Houn; na Síria e na Arábia, os de Askala, Balbeck, Mambyce, Salem, Rama, Meca e Sanah; no Egito, os de Tebas, Mênfis e Amon; na Etiópia, os de Rapta e de Meroe; na Trácia, os de Hemus, Balkan e Concayon ou Goy-Hayoun; na Grécia, os de Parnasso e de Delfos; na Etrúria, o de Bolsena; em Osk-tan, antiga Ocitânia, o de Nimes; entre os iberos da Espanha, irmãos dos hebreus e dos iberos do Cáucaso, os de Huesca e Gades; entre os golacks (gauleses), os de Bibracte, Perigueux, Chartres, etc..."
Esse excerto pode dar uma idéia do que foi o império de Ram. Entretanto, não nos propomos a um ensaio de história. Os curiosos que buscarem no livro de Saint-Yves o quadro completo desta "sinarquia arbitral" serão inteiramente informados da sua organização, suas leis e seu destino, desde sua origem até o seu apogeu, de sua decadência até o seu desmembramento: o cisma de Irschu, o positivista, que pretende cindir a idéia de Deus e que, excluindo o princípio ativo e paternal, faz subir seu incenso na direção do princípio produtor passivo; a tirania da Babilônia e de Nínive e a falsa interpretação do dualismo de Zoroastro; as distâncias faraônicas; a China de Fo-hi; a emigração dos hebreus dirigida por Moisés, etc...


Seriam necessários diversos volumes para acompanhar até nossos dias a transmissão do sacerdócio mágico - se o fizéssemos sem interrupção. Sem pretender ao menos esboçar uma visão global, nós nos restringiremos a alguns aspectos característicos.
Na medida em que avançamos na história, vemos deslocar-se a hierarquia universal. Observamos que a unidade primitiva é paulatinamente rompida por uma multiplicidade de cismas, que sobre as ruínas dos grandes colégios de magos - esses centros oficiais, de alta iniciação psíquica e mental, que outrora espargiam luz e calor por sobre o mundo pacificado - surgem adeptos individuais. O ensinamento geral das universidades ocultas é sucedido por escolas particulares de mestres independentes. Constituem exceção, no entanto, alguns santuários célebres, tais como Delfos, Mênfis, Preneste, Elêusis, entre outros. O inevitável desmoronamento destes santuários foi retardado por muito tempo, mas o nível do ensino, materializado, decaiu pouco a pouco.
Dilacerada pela queda do Supremo Pontificado universal, a centralização hierárquica não mais opunha ao transbordamento das paixões a sua barreira tutelar: os sacerdotes tornaram-se homens novamente. A pior das rotinas - a da inteligência - elegeu os templos como domicílio e o espírito passa a ser substituído pela letra. Os pontífices logo perderam até mesmo a chave tradicional dos hieróglifos sagrados, para realizar-se, assim, em todo o mundo conhecido, a profecia de Thoth, o Trismegisto: "Egito, Egito! De tuas religiões restarão apenas vagos relatos em que a posteridade não mais acreditará, palavras gravadas sobre a pedra, relatando tua piedade... O Divino retornará ao céu, a humanidade, abandonada, perecerá por inteiro, e o Egito será deserto e vazio de homens e de deuses!... Ela, que outrora fora a terra santa, amada pelos deuses por sua devoção a eles, será a perversão dos santos, a escola da impiedade, o modelo de todas as violências. E então, cheio de desgosto pela matéria, o homem não mais terá pelo mundo qualquer admiração ou amor(34)"...


Esta será, verdadeiramente, a palavra vibrante do legendário personagem que passa, sob o nome de Hermes Thoth, por tríplice fundador da religião, da filosofia e da ciência egípcias? A crítica moderna inclina-se a contestar a autenticidade do Poimandres (Poemander), de Asclépio e da Koré Kosmu (Minerva mundi), bem como de outros fragmentos herméticos. Com efeito, não há erro quanto à pessoa? Sabe-se que os hierofantes conferiam a si próprios, juntamente com a tiara, o nome de Hermes e o sobrenome de Trismegisto. Posteriormente, tais dogmas, próximos da doutrina cristã, parecem denunciar a autoria de um neoplatônico... Portanto, é preciso ter cuidado! Se o cristianismo é apenas um modo novo da antiga ortodoxia universal, essas semelhanças justificam-se de outra forma que não pelo plágio. Aliás, dificilmente poderíamos ver nos filósofos alexandrinos os autores desta Tábua de Esmeralda, de um conteúdo iniciático magistral. Acreditamos, assim, na antiguidade dos fragmentos de Hermes. [A forma, sem dúvida, pode ter sofrido alteração ou ter sido rejuvenescida pela pena dos tradutores e dos copistas, mas o essencial data de época mais remota e não variou](35). Trata-se, então, de um hierofante da época áurea que, mergulhando nos confins da posteridade, prediz desventuras para a terra dos faraós, como Jeremias para a cidade santa dos Hebreus. Lamentamos ter de mutilar esta grandiosa página. Entretanto, todos poderão lê-la no Asclépios.
Jamais uma predição se realizou de modo tão estranho. Tanto isso é verdade, que, segundo "homens sérios" deste século, os antigos egípcios adoravam a esfinge e outros animais fantásticos cujas figuras podemos encontrar sobre os restos de seus monumentos. Dia virá, sem dúvida, conforme supõe Eliphas, em que algum ocidentalista definirá o objeto de nosso culto: um deus tríplice, composto de um velho, um supliciado e um pombo. Ah! Antes os iconoclastas do que os imbecis! Quebremos todas as imagens simbólicas, se é que se degenerarão em ídolos! De qualquer forma, os pensadores podiam contar com essa materialização do culto: prescrevendo a transmissão dos altos mistérios apenas com bom conhecimento de causa e mediante ensinamento oral, a lei mágica expunha seus adeptos negligentes à possibilidade de perder a inteligência dos mitos sagrados. "É a pura justiça", talvez respondesse, a essa censura, um hierofante dos velhos tempos. "Antes a ciência perecer, um dia, do que cair em mãos indignas!..."


Se é verdade que os santuários ortodoxos desmoronaram após uma agonia de grande duração, algumas sociedades de adeptos laicos perpetuaram-se, ao menos, até os nossos dias. Não vemos aqui, necessariamente, a franco-maçonaria, cuja origem dita adonhiramita e salomônica, não fez senão homens ludibriados conscientes e encantados por assim serem. Trata-se, na realidade, de raros colégios - aquela associação dos Mahatmas, por exemplo, que nos assinala um Louis Dramard em sua brochura intitulada A Ciência e a Doutrina Esotérica(36). Apaixonados por um ascetismo panteísta, talvez errôneo, mas notáveis por sua síntese cósmica e sua ciência espantosa de realização, os Mahatmas sucedem-se, diz ele, desde tempos imemoriais, sobre os altiplanos do Himalaia. É lá que vivem no retiro e mergulhados nos estudos. A Sociedade Teosófica, muito próspera nas Índias Inglesas e em todo o império britânico, estendendo diversas ramificações até Paris, reivindica esses mestres orientais, inspiradores diretos da interessante revista (O Teosofista) que foi fundada em Madras sob os seus auspícios.
Mas retomemos ao mundo antigo. Quando Moisés, sacerdote de Osíris, deixou o Egito levando consigo a multidão bastante miscigenada, que guiou pelo deserto até Canaã, a decadência sacerdotal, que mal se notava em Mizraim, acentuou-se entre os outros povos em que a usurpação cismática dissolvera a autoridade arbitral. A gangrena moral invadiu sobretudo o país de Assur, tiranizado, desde o advento de Ninus (2200 a.C.), por uma seqüência ininterrupta de déspotas conquistadores.


Alguns séculos antes, três homens haviam despontado: entre os indianos, Chrisna (3150); na Pérsia, Zoroastro (3200); na China, Fo-Hi (2950). Cabia-lhes derrubar o sanguinolento nemrodismo e reconstituir parcialmente a antiga teocracia do Carneiro. Não nos interessa aqui descrever a obra de regeneração social levada a efeito no Oriente por esses três benfeitores da humanidade. O leitor sequioso de detalhes poderá recorrer ao livro de Saint-Yves, autor de cuja eminente cronologia fizemos uso e a quem exprimimos nosso reconhecimento. Observamos apenas, do ponto de vista hermético, a aparente reforma que Zoroastro, rei da Pérsia, introduziu na teologia esotérica. Aqueles que se ocupam das religiões orientais conhecem o significado hieroglífico das quatro letras do divino tetragrama. Símbolo não do Ser absoluto que o homem não pode definir, mas, antes, da idéia que tem dele(37), o vocábulo Iod-heve ou Jehovah (U Y U W ), que os cabalistas pronunciam letra por letra: iod, he, vau, he, analisa-se da seguinte maneira:
W Iod: o espírito masculino; princípio criador ativo; Deus em si mesmo; o Bem. Corresponde ao signo do falo, ao cetro do tarô, e à coluna Iakin do templo de Salomão. (Em alquimia é o enxofre ? ).
U He: a substância passiva; princípio produtor feminino; a alma universal plástica; a psíque viva, a potencialidade do Mal; representados pelos cteis, pela taça de libações do tarô, e pela coluna Boaz. (Em alquimia, é o mercúrio ? ).
Y Vaf ou Vau: a união fecunda dos dois princípios; a copulação divina; o eterno devir; representados pelo lingham, pelo caduceu e pela espada do tarô. (Em alquimia, é o Azoto dos Sábios \ ).
U Hé: a fecundidade da natureza no mundo sensível; realizações últimas do pensamento encarnado nas formas; os ouros do tarô. (Em alquimia, é o sal). Esta última letra associa à idéia de Deus a do universo, como finalidade: também o tetragrama Ieve (Iod-heve), aliás tão admirável, é, neste sentido, de uma envergadura menos precisa que o tetragrama } LO} (Agla), cuja quarta letra, exprimindo a síntese absoluta do Ser, afirma vigorosamente a unidade em Deus.


Pois bem, para a compreensão do vulgo, Zoroastro reduziu os termos a dois: o ativo e o passivo, o bem e o mal. Suprimindo, pois, pelo menos aparentemente, o princípio equilibrante, pareceu criar o império do demônio. Os iniciados, sem dúvida, sabiam como proceder. Assim, denominavam Mithras-Mithra o terceiro princípio, que mantém o equilíbrio harmônico entre Ormuzd e Ahriman. Todavia, a partir do momento em que Zoroastro, talvez sem saber, pareceu sancionar a crença no Binário impuro, símbolo de um eterno antagonismo, o reino de Satã foi estabelecido na imaginação do vulgo, e o inferno maniqueísta que aterrorizou toda a Idade Média não tem outra origem senão esta.
Entretanto, longe de querer cindir Deus, reagindo contra Irschu que, no Ser, divinizara a mulher, Zoroastro masculinizou o segundo princípio. Nada de passivo, com efeito pode ser concebido nos atributos do Ser essencialmente ativo e criador. Do mesmo modo, aos olhos dos Padres da Igreja - e pelo mesmo motivo - a segunda pessoa em Deus é o filho, e não a mãe, que a existência do filho supõe como condição. Como se vê, foi inteiramente sem razão que se suspeitou de Zoroastro como preconizador de um dualismo anárquico. Todavia, aos olhos dos profanos, o mal já estava feito, e o ensinamento errôneo do segundo Zoroastro em nada atenuou as suas conseqüências.
Quanto a Fo-Hi, veremos como os seus Trigramas correspondem ao pantáculo macrocósmico de Salomão (a estrela de seis pontas, formada por dois triângulos entrelaçados com base paralela - representativos dos mistérios do equilíbrio universal).
Mas, depois deste longo parênteses, voltemos ao fundador dos Bene-Israel.
Imbuído dos princípios da ortodoxia dórica e confirmado nesta doutrina pelo hierofante árabe Jethro, seu sogro, Moisés modelou o governo de seu povo pelo antigo modelo sinárquico. O conselho de Deus, ou dos sacerdotes de Israel, foi escolhido na tribo, a partir de então sacerdotal, de Levi. E foi da assembléia dos iniciados laicos, ou conselho dos Deuses, que surgiram mais tarde nabis e profetas, para lembrar aos soberanos e pontífices o seu dever esquecido.


Contudo, o epopta-legislador eclipsou, em toda a sua vida, os membros dos conselhos por ele mesmo criados. Notável taumaturgo - até o advento do Cristo, Israel jamais conheceu outro igual - Moisés ilustrou a sua carreira com uma multiplicidade de prodígios, que testemunham seu império absoluto sobre as forças fluídicas e misteriosas. O próprio rei dos magos, Salomão, não realizou obras que se comparem às suas. Porém, é nos livros mosaicos (Gênese, Êxodo, Números, Deuteronômio) que vemos o mais fascinante e imortal de todos os seus milagres. Diante do Pentateuco, tríplice obra-prima de poesia, ciência e sabedoria, os livros de Salomão parecem-nos pálidos. Nada no Antigo Testamento consegue atingir a altura da revelação mosaica, com exceção das páginas de hermetismo épico assinaladas pelo nome de Ezequiel. Monumentos sublimes, sem dúvida, de poesia oriental, o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos(38) - passionais em suma, embora de caráter bastante diverso - parecem menos profundos e de inspiração menos luminosa.
Em Israel, como em outros lugares, o sentido esotérico das alegorias primitivas perdeu-se pouco a pouco, e os grandes sacerdotes deixaram de compreender o próprio simbolismo do culto, quando Jesus Cristo veio vivificar, reanimar o eterno dogma - que dormia sob o véu já vetusto da revelação mosaica -, dando-lhe uma roupagem nova, mais coerente com a alma mística do mundo rejuvenescido. Achamos prudente não falar aqui dessa missão divina, pois onde a fé começa talvez seja conveniente que a ciência pare, a fim de evitar tristes mal-entendidos. Assim, evitemos falar nos Evangelhos; no momento, não penetremos o seu simbolismo, e sempre que, no decorrer deste rápido esboço, nos for necessário falar de crenças religiosas, declaremos de uma vez por todas que, nem um pouco competentes em matéria de fé, temos em mira os homens e os fatos apenas do ponto de vista da inteligência e da razão humanas, e sem jamais pretender dogmatizar.
Decorridos cerca de cem anos desde a morte do Cristo, os seus ensinamentos se foram disseminando gradativamente. O sangue de seus mártires - pela paz futura - já havia, então, batizado as três partes do mundo conhecido, quando os gentis, confundidos pelo progresso da fé cristã, decidiram opor Messias a Messias e investir altar contra altar. A caducidade dos velhos cultos necessitava imperiosamente de uma nova revelação. Simão, o taumaturgo, lutara em vão pela deificação de Helena, sua concubina, e de sua própria pessoa. Surgiu apenas um homem que parecia suficientemente grande para ser colocado ao lado de Jesus de Nazaré... Iniciado nos mistérios de todos os templos do mundo, Apolônio de Tiana semeara prodígios por onde passara, e foi de acordo com as memórias de Damis, o Assírio, um de seus fiéis, que Filostrato (193) escreveu, em grego, o evangelho do mago(39). "Spiritus flat ubi vult..." Sobre o engenhoso repositório de sábias alegorias, narradas artisticamente, no melhor estilo, o espírito vivificador não emitiu seu sopro. A multidão, pois, não se dirigia ao mago Apolônio. E, dois séculos mais tarde (363), vítima de uma tentativa análoga de restauração teocrática, pôde o imperador Juliano, em seu último suspiro, erguer ao céu suas mãos debilitadas, cheias de um sangue inutilmente derramado, e, adepto e sábio, clamar, antes com lassidão do que com ressentimento: "Venceste, Galileu!..."


Porém, antes de tratar dos iniciados de nossa era, acossados pelas maldições mais ou menos efetivas do Cristianismo triunfante, consagremos algumas linhas à Grécia antiga. Os limites do presente ensaio não comportam uma análise da imensa epopéia mística cujas poéticas lendas foram celebradas por Homero, Ésquilo, Hesíodo. Assim, nós nos restringiremos a saudar, em um personagem cuja existência tem sido posta em dúvida pelo mundo moderno, o grande iniciador das raças helênicas.
Contemporâneo de Moisés, educado juntamente com ele em um santuário de Tebas, Orfeu retornou ainda jovem à Hélade, onde nascera. Enquanto Moisés e os seus pisavam as areias áridas da Ásia, Orfeu, sacerdote-oráculo do grande Zeus, revia, sob o olhar severo de Iod-Heve, o arquipélago azul e a península natal, verdejante de murtas e oliveiras. À sua cara pátria, assolada pela desordem, trazia ele a Ciência absoluta, haurida nas próprias fontes da Sabedoria - a eterna Ciência do Ser inefável, designado por Osíris, Zeus ou Iod-Heve.
Quando desembarcou, modulando na lira de sete cordas sua alma expansiva e sonora de apóstolo e de rapsodo, a terra predestinada estremeceu toda, atenta aos seus acentos. Orfeu pregou o evangelho do Belo e converteu os povos pelo prestígio da lira santa. Assim, edificou-se uma restauração teocrática. A partir desse dia, o Gênio grego, revelado a si mesmo, concebeu o harmonioso Ideal que o consagra imortal entre todos.


A harmonia é civilizadora. Assim, Virgílio, um iniciado, mostra-nos o aedo em êxtase, fazendo chorar os animais selvagens, dóceis diante do magnetismo de sua voz, fazendo fremir de amor os carvalhos, que se vergam para ouvi-lo: Mulcentem tigres et agentem carmine quercus.
A harmonia é criadora. Assim, a Tebas de Anfião, constituída ao som da lira, é de um simbolismo análogo. Todos esses mitos não são destituídos de profundidade. Marcam esplendorosamente o caráter estético que a magia assumiu na Grécia.
A doutrina de Pitágoras é irmã daquela de Orfeu, assim como as matemáticas pacientes são irmãs da música inspirada; analisam seus acordes e denominam as suas vibrações. No Egito, Pitágoras aprende a Ciência já decadente dos magos. Recebe, na Judéia, das mãos dos nabis Ezequiel e Daniel, uma iniciação parcimoniosamente sincera(40). Cabe ao seu gênio preencher, através da intuição, essas lacunas. De qualquer forma, seu Tetractys e sua Tríade correspondem, rigorosamente, ao Tetragrama e ao Ternário cabalísticos.
Quanto ao esoterismo de Platão, devolvido mais tarde e sutilizado pelos teurgos de Alexandria, fundir-se-á, nas mãos dos Gnósticos, com o cristianismo oculto, imediatamente derivado da doutrina essênia. As obras de São Clemente de Alexandria, de Orígenes, de São Denis, o Areopagita, e do bispo Sinésio testemunham irrefutavelmente este intercâmbio dogmático. Parece que, inconscientemente, os herdeiros do mundo antigo trataram, de potência a potência, com os fundadores do novo mundo para firmar, de comum acordo, um compromisso filosófico. Em São João, reencontramos a tradição secreta, mas, integral, dos velhos mestres de Israel, a tal ponto que o Apocalipse forma, juntamente com o Zohar, o Sepher Ietzirah(41) e algumas páginas de Ezequiel, o mais puro corpo doutrinário e clavicular da Cabala propriamente dita.
Além disso, Porfírio e Jâmblico, por mais pagãos que se proclamem, pregam o Cristianismo sem o saber, ao lançarem os retalhos de um véu místico envelhecido sobre estes mesmos grandes princípios que o simbolismo cristão acaba de revestir, de modo tão magnífico, com novas alegorias, mais de acordo com o gênio da era nascente.


Lastimavelmente, porém, a Igreja não soube reservar para si mesma, por muito tempo, a chave do inestimável tesouro, confiado à guarda de seus altos prelados. Tal chave garantia a unidade hierárquica nas mãos do Soberano Pontífice (daí em diante, indispensável como revelador); penhor de ortodoxia infalível nas mãos dos Príncipes do sacerdócio (mesmo para, a partir daí, controlar tudo, à luz da síntese fundamental), tal chave - que é a do Bem e do Mal - só poderia abrir, para o vulgo, o reino das trevas. A razão transcendente do dogma acha-se muito acima do nível intelectual das massas, sendo que as mais graves heresias são verdades mal compreendidas.
Alguns iniciados na Gnose, invejando a autoridade hierárquica, resolveram fazer com que ela perdesse o tesouro da tradição oculta. A malícia desses homens empenhou-se, subrepticiamente, no sentido de levantar todos os véus. Chegou um dia em que, revelado em suas mais secretas fórmulas, o dogma esotérico foi posto à mercê da estupidez das multidões. A luz ofuscante cegou os olhos fracos. Diante da suprema sabedoria, os ignorantes julgaram-se feridos em sua parvoíce e se escandalizaram. A Igreja, então, teve que anatematizar a inscrição sublime do templo, a razão positiva e a razão real do dogma: esta Gnose santa dos adeptos que, temerariamente traduzida para a linguagem das massas, tornara-se, para a imbecilidade delas, o objeto do maior escândalo - uma mentira!
Ah! tinha toda razão o bispo Sinésio quando escreveu: "O povo sempre escarnecerá das verdades simples. Ele necessita de impostores... Um espírito amigo da sabedoria e contemplador da verdade sem véus é forçado a disfarçá-la para obter a aceitação das massas... A verdade torna-se funesta aos olhos frágeis demais para sustentar o seu esplendor. Se as leis canônicas autorizarem a reserva das apreciações e a alegoria das palavras, aceitarei a dignidade episcopal que me oferecem, mas sob a condição de me ser lícito filosofar em casa e contar, lá fora, parábolas reticentes. O que pode haver em comum, na verdade, entre a multidão vil e a sabedoria sublime? A verdade deve permanecer oculta. Às massas só se deve dar um ensinamento proporcional à sua limitada inteligência(42)..."


Eis o que os anarquistas e tribunos jamais compreenderão.
Embora o esoterismo sacerdotal tenha sido condenado sob o nome de Magia, os papas, segundo se diz, conservaram misteriosamente as suas chaves, até Leão III. Bons espíritos lograram sustentar a autenticidade do Enchiridion, compilação cabalística publicada sob o nome deste pontífice. Quanto ao Grimório de Honório, ocorre algo bem diferente: consta, segundo uma engenhosa pesquisa de Eliphas Levi, que esse ritual blasfematório seria a obra ignominiosamente maquiavélica do antigo Cadalous.
Montan, Manés, Valentin, Marcos, Ario, todos os heresiarcas dos primeiros tempos apresentam-se, em maior ou menor grau, como feiticeiros. Entretanto - com exceção dos teósofos de Alexandria - foi somente Apuleio (114-190), platônico como eles, que fez jus, nessa época, ao título de adepto. Seu Asno de Ouro, em que o burlesco roça o sublime, dissimula, através de engenhosos emblemas, as mais altas verdades da ciência, e a fábula de Psique, contida nessa sua obra, nada deixa dever aos mais belos mitos de Ésquilo ou de Homero. Tudo leva a crer, aliás, que Apulenio se ateve a parafrasear com gosto uma alegoria de origem egípcia. Oriundo de Mandaura, na África, Apulenio é romano apenas por direito de conquista e anexação. Este fato sugere-nos que Roma, tão fértil em abomináveis necromantes, não deu origem a nenhum verdadeiro discípulo de Hermes. Não cabe objetar com o nome de Ovídio, pois suas Metamorfoses, tão graciosas a todos os gostos, testemunham um esoterismo bastante errôneo, para não dizer ingênuo. Virgilio - este, um iniciado - cioso, antes de tudo, de legar à Itália uma obra-prima do gênero épico, só nas entrelinhas, e de modo eventual, evidencia o brilho de sua sabedoria.
No caso da República e do Império de Roma, o caráter perpetuamente anárquico e nemrodiano que acusaram em todas as circunstâncias refuta, por si só, a hipótese de uma iniciação a nível de governo. O único rei genuinamente "mago" de quem se podem orgulhar os filhos da Loba foi Numa Pompílio (714-671), um Nazareno dos tempos da Etrúria(43) que as nações circunvizinhas impuseram à Roma nascente. Mais tarde, Juliano, o filósofo (360-363), figura também como adepto nos faustos do Império. No entanto, nascido em Constantinopla, proclamado César pelos Gauleses de Lutécia (360), ele é também, por seu turno, muito menos romano. Assim, dois são os soberanos iniciados da cidade eterna: em seus primórdios, um rei, Numa Pompílio; já em seu declínio, Juliano, o Sábio, um imperador. Entre os dois, a guerra civil, a extorsão e o arbítrio.


Esses gauleses que Roma chamou de bárbaros são povos verdadeiramente mais livres e civilizados. Seus druidas, herdeiros diretos dos hierofantes ocitâneos da teocracia do Carneiro, perpetuam-lhe a tradição e transmitem uns aos outros, regularmente, o depósito da ciência sagrada. Alguns preceitos de seu ritual são interpretados, com efeito, em um sentido antropomórfico, errôneo, mas a inteligência do dogma, ao que parece, conservou-se integralmente nas mãos dos sacerdotes, distanciados, contudo, dos grandes centros de civilização e ortodoxia. Não obstante, na Gália, como em outros lugares, a feitiçaria recruta suas vestais sacrílegas. A feitiçaria é de todos os tempos, e de todos os países.
Sob os primeiros reis da França, pululam encantadores e bruxas. Só se fala de necromantes que oferecem a hospitalidade de seu corpo ao diabo, de clérigos que exorcizam o diabo, de verdugos que queimam ou enforcam necromantes. É especialmente em honra dos feiticeiros que Carlos Magno institui, sob o nome de Santa Vema (772), essa terrível sociedade secreta que, sancionada novamente pelo rei Roberto (1404), aterrorizará mais de trinta gerações(44). Primeiramente na Vestefália, mais tarde em toda a Europa Central, os tribunais de franco-juízes não tardam a multiplicar-se. Os mandados de prisão se pronunciam em cavernas inacessíveis onde, por caminhos tortuosos, o acusado é conduzido de olhos vendados e com a cabeça desnuda. Não há sentença intermediária entre a morte e a absolvição, com ou sem reprimenda... Tanto camponeses como senhores temem encontrar, alguma manhã, a ordem de comparecimento afixada à sua porta com um golpe de punhal! E ai de quem não obedecer a citação dos franco-juízes! Mesmo sendo cardeal, príncipe de sangue ou imperador da Alemanha, ninguém escaparia ao decreto de morte pronunciado à revelia, e seria apanhado cedo ou tarde. O que se segue mostrará a vingança oculta vinculada aos passos do contumaz - sempre paciente, pois é garantida: "O duque Frederico de Brunswick, que foi imperador por um momento, recusara-se a atender a uma citação dos franco-juízes. Quando saía, armava-se da cabeça aos pés e cercava-se de guardas. Entretanto, certo dia ele se afastou um pouco de seu séquito e precisou desvencilhar-se de uma parte da armadura. Ninguém o viu retornar. Os guardas penetraram no pequeno bosque em que o duque desejara permanecer a sós por um instante. O desventurado, então, expirava, tendo nos rins o punhal da Santa Vema, de onde pendia a sentença. Olharam em todas as direções e viram um homem mascarado que se retirava com andar solene. Ninguém ousou persegui-lo."(45)


Na Idade Média, o Mal teve, assim como o Bem, seus aliados misteriosos e suas assembléias secretas. Eu não teria reservas em descrever aqui - após tantas outras! - as orgias priapescas e sádicas do sabbat criminoso: encontros de envenenadores e de bandidos que, salvaguardados pelo prestígio de um terror supersticioso, empenhavam-se em envolver suas práticas nas mais fantásticas trevas. Lendo-se o processo de Gilles de Laval, senhor de Retz, os cabelos se eriçam e a náusea sobe aos lábios. Entra-se, porém, no mesmo nível neste mundo nefasto da magia negra, em que os ritos dos sortilégios servem para dissimular perversidades mais efetivas, em que o assassino se disfarça como feiticeiro: só sob a fronte do marechal de Bretanha germinaram, floresceram e frutificaram depravações, todas as perversidades habituais aos freqüentadores do sabbat.(46) Estes, por vezes, ao menos descuidavam de temperar com a pimenta satânica o miserável guisado de sua cupidez saciada. Talvez se tenha exagerado o papel do magnetismo e das influências ocultas nas obras do sabbat criminoso. Os verdadeiros adeptos reservam a si mesmos, sem dúvida alguma, o emprego racional deste formidável agente. Quanto aos vendedores de filtros, eram, em sua maioria, envenenadores banais.


Contudo - à parte os cruzados ocultos do Inferno e do Crime e os cavaleiros não menos ocultos da Justiça e do Castigo, além dos necromantes e dos franco-juízes - viam-se campônios pacíficos e cidadãos inofensivos mesclaram-se como atores à grande tragicomédia de então. Comprimida pelo despotismo dos estados e pela intolerância do sacerdócio, a atividade vital, na Idade Média, teve, de fato, que se desenvolver na sombra. Tomava-se o ar de conspirador. Uma doença fustigava todas as classes da sociedade: a monomania do mistério, e, assim, reuniões secretas organizavam-se por toda parte. O maravilhoso (e as pessoas eram tão ávidas dele!) decuplicara o prestígio de um suposto sabbat, em que os pobres diabos confraternizavam de modo estranho com os maiores senhores, fascinados pela curiosidade, mais forte que o orgulho. Em conventículos noturnos, aliás tão inocentes, sob o pretexto de cerimônias estranhas, degustava-se o inefável prazer de andar a passo de lobo, de trocar a senha com uma voz sepulcral e de correr grande risco de ser enforcado.
Todavia, sem nenhum medo de semear o temor ou o estupor, desdenhando quando lhes era possível sem perigo, todo este luxo de encenação, os verdadeiros iniciados reuniam-se, também, e a grande Isis sentava-se no meio deles. Fundaram-se associações herméticas que deviam a rubricas forjadas o privilégio de uma segurança relativa. Citaremos, de memória, a ordem dos Templários (ninguém ignora sua origem e seu fim trágico)(47); as confrarias da Rosa-Cruz e dos Filósofos Desconhecidos, sobre as quais a história, por outro lado, diz pouca coisa, e, finalmente, a Franco-maçonaria oculta, prolongamento mais ou menos direto da Ordem do Templo, iniciada, segundo consta, por Jacques de Molay, antes de subir à fogueira. Mas a moderna franco-maçonaria - sonho de algum Asmohle em delírio, cepo bastardo e mal enxertado no antigo tronco - já não tem consciência dos seus menores mistérios. Os velhos símbolos que ela reverencia e que transmite numa piedosa rotina tornaram-se para ela letra morta: é uma língua da qual ela perdeu o alfabeto. Seus afilhados, assim, nem mais suspeitam de onde vêm e para onde vão(48).
Em suma, se os grandes colégios iniciáticos foram seminários ocultos do mundo antigo, não se pode dizer o mesmo das misteriosas associações da Idade Média, por mais intensamente que se afirmasse sua vitalidade. Ocorre então que na Europa, depois do desmoronamento dos derradeiros santuários, luminosos baluartes da síntese hermética, a ciência universal cinde-se em três ramos, surgindo, assim, os especialistas. A partir desse momento, cada um atém-se ao seu ramo. Os adeptos apaixonaram-se quer pela Cabala, quer pela Astrologia e pelas Ciências Divinatórias, pela Alquimia e pela Medicina Oculta. Alguns gênios excepcionais, cérebros organizados para a síntese, ressuscitam, efetivamente, a doutrina dos magos em sua íntegra: entre eles, Raymond Lulle, Paracelso, Henri Kunrath, Knorr de Rosenroth, Eliphas Levi. A maior parte dos ocultistas, contudo, conforme o seu temperamento especial e as influências preponderantes de seus respectivos ambientes, acantonam-se em alguma das três ciências de Hermes, cada uma delas correspondendo a um dos seus três mundos. Os cabalistas, fascinados pelos grandes problemas metafísicos, aspiram o conhecimento do Mundo Divino. Inclinados de preferência à psicologia, os áugures (e sob este rótulo incluo adivinhadores, astrólogos, quiromantes, fisionomistas, cartomantes, frenólogos) decifram os problemas do Mundo Moral. Quanto aos alquimistas, mais inclinados ao estudo das leis da física material, são os escrutadores do Mundo Natural ou Sensível.


No entanto, a primitiva síntese é a tal ponto una e coesa, que todos esses sábios, por mais diferentes que sejam suas preferências, respaldam-se nos mesmos axiomas, convergem para os mesmos princípios. Além disso, para penetrar os mistérios da ciência particular que elegeram, é preciso que eles, preliminarmente, galguem os degraus da escada analógica das correspondências nos três mundos, para assim reerguerem - pelo menos durante o seu período de aprendizagem - o edifício hermético dos antigos mestres.
Assinalaremos, de forma sucinta, os mais célebres iniciados da Idade Média e dos tempos modernos. Sob o reinado de Pepino, o Breve, desponta o cabalista Zedequias, a cujo poder fascinante os homens dessa época atribuem os fenômenos que os aterrorizam, segundo documentam as crônicas. "O ar está cheio de figuras humanas; o céu reflete palácios, jardins, ondas agitadas, navios com as velas desfraldadas ao vento, exércitos mobilizados em batalha. A atmosfera deixa a impressão de um grande sonho. Julgamos distinguir, no ar, feiticeiros disseminando em profusão os pós malfazejos e os venenos".(49) Quem leu o abade de Villars sabe o que pensar dessa orgia de estranhas visões, fotografadas na luz do sol. Depois de que perturbações fluídicas produzem-se essas miragens, ora deslumbrantes, ora terríveis, semelhantes aos reflexos coloridos de uma imensa lâmpada mágica? Ocorre-nos sempre o axioma de Hermes: "Quod superius, sicut et quod inferius". É natural que o céu de uma época turbulenta reflita a incoerência das coisas terrestres.
No século de São Luís, brilha o rabino Jequiel, notável eletricista e duplamente detestado pelos parvos, por seu gênio e por seu crédito surpreendente junto ao rei da França. Ao anoitecer, quando sua lâmpada misteriosa resplandesce(50) na janela, como uma estrela de primeira grandeza, o mago - caso seus inimigos, impelidos pela curiosidade, assediem tumultuosamente a porta - toca um prego cravado na parede de seu gabinete e faz fulgurar, do seu interior, uma centelha viva, crepitante e azulada. E ai do pobre indiscreto que nesse momento sacudir a aldraba do umbral da porta! Dobrar-se-á sobre o mesmo, gritando aterrado por uma força desconhecida; um raio circula em suas veias; é como se o chão se abrisse de repente e engolisse metade do seu corpo... Uma vez restabelecido, talvez fugisse o mais depressa possível, sem perguntar à terra por que milagre ela o vomitara.


O rei dos mágicos legendários, que resolveu, segundo se diz, o problema do andróide, é contemporâneo de Jequiel. Trata-se do célebre Alberto, o Grande (1193-1280), sob cujo nome circulam ainda, em nossos campos, coleções de inomináveis inépcias(51). Ainda na mesma época, surge um gênio universal, o monge Raymond Lulle, de Palma (1235-1315). Discípulo, no campo da alquimia, de Arnauld de Villeneuve - este, por sua vez, herdeiro da tradição árabe que remonta a Geber, o magister magistrorum (séc.VIII), Lulle desenvolveu esplendorosamente em seus escritos (sobretudo em Testamento e Codicilo) esta bela teoria hermética, cujos princípios, um século mais tarde, seriam inseridos na inextricável farragem simbólica de dois adeptos alemães: o conde Bernard le Trevisan e o monge Basile Valentin (l394)(52). A Arbor Scientiae e a Ars Magna, em que Raymond Lulle condensa todos os conhecimentos de seu tempo colocados à luz dos princípios do Esoterismo, apontam-no, além disso, como grande mestre cabalista, teólogo e filósofo.
O espagirismo de Nicolas Flamel (morto em 1413) deve pagar tributo, sem dúvida, ao sistema luliano, mas remonta diretamente ao ensinamento de Abraão, o Judeu, cuja obra (Asch Mezareph) Eliphas Levi traduziu, publicando-a em anexo à sua Chave dos Grandes Mistérios. juntamente com Lulle. A. Sethon, Filaletes, Lascaris, e alguns outros, Flamel é um dos realizadores absolutos da ciência, a quem não se poderia contestar - sem invalidar todos os critérios da certeza histórica - uma série de transmutações efetivas e a arte real da projeção filosofal.
Retornamos à Magia propriamente dita com o abade Tritheim ou Trithème (1462-1516), o ilustre autor da Esteganografia e do Tratado das causas segundas. Trithème foi mestre e protetor do "arquifeiticeiro" Cornelius Agrippa (1486-1535). Agrippa, esse intrépido aventureiro que escandalizou seu século e que, arrastando atrás de si a fogueira, só escapou desta para passar sob os ferrolhos os dois terços de sua existência! Este sábio irrefletido que jamais atingiu a paz do Conhecimento Total (53) e que renegou, em seu livro de Vanitate Scientiarum (54) a grande confidente que ele não soubera levar a dizer a sua última palavra!
Paracelso (1493-1541) pode ser colocado entre estes oniscientes a quem coube por direito a chave de todos os arcanos que caminham pela estrada da vida escoltados por todas as glórias, numa série ininterrupta de prodígios, Quando tais homens morrem - jovens, como todos aqueles que são amados pelos deuses -, o povo a quem maravilham não crê em sua morte e, assim, põe-se a aguardar seu retorno, espera vê-los surgir a qualquer momento dizendo: aqui estou! Mas as gerações sucedem-se, os eventos precipitam-se e a tradição do semideus extingue-se, apaga-se na mente dos homens que logo esquecem. Três séculos já se passaram, e quem pensa em Paracelso? Só Michelet lhe fez justiça... Quando o Magnetismo, algum dia mais bem conhecido em sua essência, tiver revelado ao mundo a Medicina Simpática, os espíritos familiarizados com a obra do mestre surpreender-se-ão com o descrédito em que caiu a memória de um adepto tão miraculoso. Ao leitor atento, sua Philosophie Occulte desvendará os últimos segredos da Magia científica; o seu Sentier Chymique, do qual Sendivogius fez circular uma cópia clandestinamente(55) apresentar-se-á como a mais pura obra-prima hermética dos tempos modernos. A sua terapêutica, enfim (que é a arte de equilibrar as emissões fluídicas em simpatia com o influxo astral, ou de centuplicar a eficácia curativa do magnetismo humano, regulando o seu uso segundo as leis invariáveis do magnetismo universal), sua terapêutica será compreendida e a auréola de Mesmer empalidecerá à vista de todos. Como foi superestimada a medicina oculta deste vulgarizador - cheia de indecisão e de experimentos -, sem imaginar que J.B. Van Helmont (para só citar um nome) publicava, já em 1621, o seu sábio tratado Magnetica vulnerum curatione! Ora, mas quem deu nome à América, Colombo ou Vespúcio? Não é sempre assim?


Universal como Paracelso, Henri Khunrath (1560-1605) condensou a ciência sintética dos magos em um pequeno in-fólio magnificamente impresso em 1609(56). Não conhecemos nada mais pessoal e mais cativante do que este Amphitheatrum Sapientiae Aeternae(57). Em torno dos mais serenos Pensamentos arrasta-se tortuosamente um estilo áspero, exaltado, quase bárbaro, mas de um relevo lampejante, ao estilo de Tertuliano. Maravilhoso contraste! Parece que o Verbo feito carne toma a idéia de assalto; que as asperezas da forma, no entanto, não nos choque, pois a idéia oculta irradia-se, de súbito, àqueles que sabem surpreendê-la. E sobre o tumulto épico dos vocábulos verte em torrentes de luz o inefável ideal. Parecendo parafrasear os provérbios de Salomão, o texto místico comenta as mais altas doutrinas da Cabala especulativa e nove pantáculos assombrosos simbolizam, segundo o costume dos Mestres, os últimos arcanos. Se Khunrath se dirige, na prática, à chama da teoria, consegue controlar, infatigavelmente, a teoria através da experiência - coisa rara em sua época. Assim, ele reitera, a cada passo: "Theosophice in oratorio, physicochemice in laboratorio, uti philosophum decet, REM tractavi, examinavi, trituravi..." Dois opúsculos póstumos de Khunrath - confessio de Chao Chemicorum e Signatura Magnesiae (Agentoranti, 1649) - constituem manuais imprescindíveis para todos os estudantes alquimistas.
Sem nos determos no astrólogo Jérôme Cardan (1501-1576), conhecido por seu notável tratado De Subtilitate(58); - sem falarmos, lamentavelmente, no douto monge Guillaume Postel (1510-1581), cuja Clavis absconditorum a constitutione mundi(59), sempre condenada para o "profanum vulgus", abre a porta da ortodoxia sintética; sem louvarmos, como conviria, a Basilica Chemica e o Livro de assinaturas(60), em que Oswald Croll (15..-1609) cria uma esplêndida teoria do mundo, da qual Gaffarel, o astrólogo de Richelieu, tomará alguns fragmentos para a sua compilação das Curiosidades Inusitadas - para citar apenas este - cumpre saudar, aqui, o grande iniciado Knorr de Rosenroth (l636-1689), a quem a posteridade deve uma coletânea cabalística dificilmente encontrável em nossos dias, uma obra que se pode qualificar como inestimável e única no gênero. Interpretação do Zohar, antologia das obras mais raras e sublimes da Tradição antiga e luminoso comentário sobre este tesouro doutrinal, a Kabbala Desnudada (Sulzbach, 1677, e Frankfurt 1684, 3 vol., in-4.? ) forma, juntamente com a coleção de Pistorius e certos manuscritos hebreus, o compêndio verdadeiramente clássico da Cabala clavicular.
Em torno dessa época, os adeptos multiplicam-se a tal ponto, que enumerar todos nos faria ultrapassar os limites a que nos propusemos. Não mencionaremos nem alquimistas puros - muitos dos quais, entretanto, como Sendivogius (l566-1646) e Philalèthe (1612-1680), passam por realizadores da pedra filosofal -, nem os místicos ingleses e alemães que abundam sobretudo no século XVIII. Retenhamos, no entanto, a título de memória, os nomes do Presidente Jean d'Espagnet, cujo Enchiridion phisicae restitutae, traduzido para o francês no ano de 1651 resume, de forma bem condensada, a filosofia sintética de Hermes; e do sapateiro de Goerlitz, Jacob Böhme (1575-1625), que foi o mestre póstumo de Louis Claude de Saint-Martin.


Na primeira edição do presente ensaio fomos injustos para com Saint-Martin (1743-1803). Nós o julgamos, então, com base na leitura apressada e muito superficial da obra Dos Erros e da Verdade (1775), livro de estréia, cansativo e enredado, em que páginas excelentes são comprometidas por uma intenção de obscuridade e por ares de mistério, características de que o autor soube, com o decorrer do tempo, desvencilhar-se. O Quadro Natural (1782) e, sobretudo, as últimas produções - O Espírito das Coisas (1800) e o Mistério do Homem-Espírito (1802), em que a influência de Böhme sobrepõe-se decididamente à influência menos pura de um primeiro mestre(61), testemunham a iniciação do marquês de Saint-Martin aos mais altos arcanos tradicionais.
Quase à mesma época, um outro adepto, o ministro genovês Dutoit-Mambrini, publicava, sob o pseudônimo de Keleph ben Nathan, um livro em que, certamente, há muitos erros, mas que, só pelo título e pela data de publicação torna-se merecedor de respeito e atenção por parte dos pesquisadores curiosos por assuntos de ocultismo: A Filosofia divina aplicada às luzes natural, mágica, astral, sobrenatural, celeste e divina; ou às verdades imutáveis que Deus revelou no tríplice espelho analógico do universo, do homem e da revelação escrita (1793, 3 vol. in-8.? ).
Alguns anos antes da grande Revolução, a Europa estivera sulcada de personagens misteriosos, cujo caráter equívoco acentuamos em outra parte(62). Referimo-nos a personagens como Saint-Germain, Mesmer e Cagliostro. Realizador extraordinário, mas de espírito bizarro, extravagante, confuso tanto quanto erudito e original, Joseph Bálsamo, conde de Cagliostro, não merece mais do que os outros dois o título de adepto superior. Nem Lavater, o profeta de Zurique (1741-1801), restaurador da Fisignomonia e correspondente místico da imperatriz Maria da Rússia, nem Swedenborg (1688-1772), iluminado freqüentemente genial, porém fantasioso e temerário, podem apresentar, nesse sentido, pretensões mais altas.


O mesmo diremos do poeta iniciado Jacques Cazotte (1720-1792). O seu Diabo Amoroso, em que a paixão é analisada cabalisticamente, basta para assegurar-lhe a estima e a simpatia, mas não a admiração, dos adeptos. Bem mais do que por suas obras e mesmo por suas profecias célebres. Cazotte pertence à história da magia pelas circunstâncias surpreendentes de seu processo e de sua morte, cujos detalhes apresentamos no n.? 7 da revista A Iniciação(63).
No limiar do Império, surge a figura enigmática de Delormel, cujo livro Grande Período (Paris, 1805, in-8.? ), tão notável no entender de todos, valeu a morte violenta dos perjuros e reveladores.
Conhecido já de longa data por alguns ensaios bastante medíocres no terreno da literatura e da poesia, Fabre d'Olivet (1767-1825) ingressa, em torno da mesma época, na carreira filosófica, que lhe reserva a imortalidade. A iniciação pitagórica, recebida na Alemanha sob o reino do Terror, determinou este novo impulso de pensamento de Fabre d'Olivet. Napoleão, mais instruído do que ninguém quanto aos inúmeros perigos que a difusão das verdades ocultas pode acarretar para o despotismo; Napoleão, inimigo pessoal do teósofo, em vão lhe confere a honra de suas incessantes perseguições: Fabre d'Olivet dissolve o rancor de César e sabe evitar todas as suas armadilhas. Encontra um meio de escapar até mesmo à censura imperial e publica, aos poucos, as suas Noções sobre o Sentido do Ouvido (1811), o seu maravilhoso comentário dos Versos dourados de Pitágoras (1813) e, enfim, em 1815, a sua obra-prima imortal: A Língua Hebraica Reconstituída (2 vol., in-4.? ). Bem provido das pesquisas anteriores de Volney, de Dupuis, de d'Herbelot e, sobretudo, do ilustre Court de Gébelin, Fabre d'Olivet remonta à origem da palavra e reconstrói, com base numa erudição verdadeiramente colossal, o edifício - desmoronado já a mais de três mil anos - do hebreu primitivo e hieróglifo. Posteriormente, aplicando à Cosmogonia de Moisés (vulgarmente, a Gênese), a chave por ele reencontrada nos santuários do Egito, penetra no cerne desta necrópole em que jazem, soterradas pelo pó dos séculos, a sabedoria e a ciência integrais do antigo Oriente. Tradutor de Moisés, Fabre d'Olivet, oferece a cada palavra o respaldo de um comentário científico, histórico e gramatical, a fim de pôr em evidência os três sentidos - literal, figurado e hieroglífico - que correspondem aos três mundos da magia antiga, ou seja, o natural, o psíquico e o divino.
Entretanto, Fabre d'Olivet não limita a estes os seus trabalhos de teosofia e de erudição. Hist6ria Filosófica do Gênero Humano que veio à luz em 1822 (2 vol. in-8.? ), revela ao leitor os arcanos do Pai, do Filho e do Espírito Santo(64) em suas relações com a evolução social e política universal. O Mestre traçou um quadro, um campo de aplicação circunscrito, em que faz agir esses Princípios, deduzindo suas conseqüências. Este quadro é a história da raça branca ou boreal, ou seja, a nossa. Em 700 páginas, o autor condensa e resume os destinos dessa raça, cujo desenvolvimento progressivo e normal através do Tempo e do Espaço ele descreve. As obras do marquês de Saint-Yves d'Alveydre, às quais, aliás, nunca deixaremos de pagar um justo tributo de admiração e de elogios, constituem a magnífica paráfrase e retomada dos trabalhos de Fabre d'Olivet. A morte ceifou o restaurador da língua hebraica, quando este preparava como complemento indispensável, a mais gigantesca de suas produções, Comentários da Cosmogonia de Moisés. Afirma-se que o precioso manuscrito não está perdido. Aliás, as observações críticas apostas por Fabre d'Olivet em apêndice a sua última publicação - uma tradução em versos eumólpicos do Caim de Lorde Byron (Paris, 1823, in-8.? ) - podem suplementar os comentários inéditos, esclarecendo o pensamento íntimo do teósofo em diversos pontos que permaneciam obscuros.


Não foi em vão que Fabre d'Olivet deu ao nosso século o exemplo de um retorno às altas especulações do ocultismo. A Restauração já vira surgir uma pluralidade de escolas místicas, de um esoterismo nitidamente bastardo, é verdade... a metade do século viu melhor. Embora o padre Enfantin lançasse sobre o sansimonismo, já moribundo, um brilho radiante mas efêmero, embora Victor Considérant rejuvenescesse a teoria de Fourier - e seus esforços não são destituídos de interesse -, infatigáveis pesquisadores, por outro lado, escavavam, em todos os sentidos, galerias através das catacumbas desmoronadas da antiga magia. Citemos Hoené Wronski, o apóstolo do Messianismo e restaurador da Filosofia Absoluta; Lacuria, o metafísico genial das Harmonias do Ser; Ragon, o único profundo de todos os mistagogos da Franco-maçonaria. Outros, como Lúis Lucas(65), o mais audacioso cérebro da ciência contemporânea, eram levados pela própria experiência a verificar estas grandes leis que os alquimistas especulativos haviam formulado talvez apenas por indução.
Mas todos esses filósofos, todos esses eruditos, todos esses sábios, responsáveis pela maior parte de uma fascinante florescência de descobertas, vejo-os todos agrupados em torno do grande ceifeiro da luz; vejo-os todos cortejando um adepto que os ultrapassa em muito e que parece ser, dentro dos altos barões do Esoterismo renovado, o Príncipe Encantado, esposo, por direito de conquista, desta Bela Adormecida que é a Verdade tradicional!
Com efeito, em nossos dias despontou um gênio para redificar o templo do rei Salomão, tornando-o ainda mais suntuoso e colossal do que antes. De um pensamento vasto e sintético, de um estilo luminoso rico, de uma imperturbável lógica e de uma ciência segura de si mesma, Eliphas Levi(66) é um mago completo. Os círculos concêntricos de sua obra compreendem a ciência inteira, e cada um dos seus livros reveste-se de significação precisa, cada uma de suas obras possui uma absoluta razão de ser. O seu Dogma ensina; o seu Ritual prescreve; a sua História adapta; a sua Chave dos Grandes Mistérios explica; as suas Fábulas e Símbolos revelam(67); o seu Feiticeiro de Meudon prega de forma exemplar; a sua A Ciência dos Espíritos, enfim, fornece a solução dos mais altos problemas metafísicos. Assim, sob a pena de Eliphas Levi, a magia acha-se exposta quanto a todos os seus pontos de vista: a obra total, de que cada tratado é uma faceta, constitui a mais coesa, fascinante e indiscutível síntese com que um ocultista possa sonhar! E, como se não bastasse, este pensador magnífico ainda se dá o direito de ser um grande artista! Em seu estilo fulgurante, grandioso e eloqüente - preciso até o escrúpulo, audacioso até a licença -, ele encerra ainda o pensamento mais grandioso e mais ousado. As palavras "sugestivas" brotam em profusão: onde vertiginosas exposições sumárias arredam a expressão verbal, onde evasivas nuanças desafiam a língua abstrata, o rigor exato de uma metáfora nova fixa o volátil, determina o incerto, define o imenso, numera o inumerável.


Mas, ao percorrer, em todos os sentidos, os três mundos - metafísico, moral e natural -, Eliphas Levi não se detém. A grande corrente centralizadora o arrebata e muitas questões que levanta fariam jus a um maior desenvolvimento. Referimo-nos, por exemplo, a questões relativas à história das origens asiáticas do ocultismo e da teoria social, que se acham apenas indicadas.
Ora, estes dois pontos capitais, já bastante esclarecidos por Fabre d'Olivet, são trazidos à luz por um mago contemporâneo de uma competência profunda, o marquês de Saint-Yves d'Alveydre; assim, as obras desses três adeptos se completam e se comentam da forma mais feliz. No entanto, a síntese social que Eliphas Levi esboça em algumas páginas de sua obra parece diferir daquela que Saint-Yves sustenta ardorosamente há dez anos e que talvez faça prevalecer. A forma ideal de governo é, segundo este último, a que denomina sinárquica, isto é, em harmonia com os princípios eternos. A administração de cada país seria confiada a três colégios de especialistas: os Doutrinadores, docentes (conselho das Igrejas), os Legisladores, juristas (conselho dos Estados) e os Notáveis, economistas (conselho das comunidades). Isso se aplica à sinarquia nacional. Por outro lado, três conselhos hierarquicamente superiores, mas essencialmente em correspondência com aqueles, seriam encarregados da administração central da sinarquia européia. Cada nação, assim, conservaria a sua autonomia, gerindo os seus próprios assuntos, enquanto a grande assembléia de civilização geral zelaria pela gestão equitativa dos interesses comuns. O Equilíbrio Europeu, esta quimera do passado, converter-se-ia, então, em uma realidade no futuro, e isso significaria o advento do reino messiânico sobre a Terra. Essa é, substancialmente, esta teoria magnificante cabalística; pois, segundo a lei de Hermes, as coisas que estão embaixo devem ser análogas às que estão em cima, o microcosmo, portanto, reproduzindo um macrocosmo em miniatura. Ora, espelho da própria divindade, a humanidade, tríplice e una, seria regida pelo ternário e marcada, pela adição de sua unidade específica, pelo signo do quaternário.
Aparentemente bem diversa, a teoria de Eliphas invoca a lei dos contrários. Sobre a Terra, como no céu, a Misericórdia deve temperar o Rigor; mas também a Justiça opor um limite ao transbordamento do Amor. Tais são os dois pólos do mundo moral; tais são as duas tendências inversas e complementares do Governo dos homens. Rigorosa como a Ciência exata, a justiça encarnar-se-á no supremo depositário do Poder civil. Mas o Amor, misericordioso como os sentimentos inspirados pela Fé verdadeira, encontrará o seu órgão no Soberano Pontífice da Religião. Imaginemos, a partir desses dados, o governo do mundo: Leão III e Carlos Magno, respectivamente, Papa e Imperador; o altar santificando o trono, o trono sustentando o altar. Pólo positivo, pólo negativo... Eis, à primeira vista, a lei do Binário. Mas não para aqueles que crêem na intervenção divina das coisas terrestres. O Binário, sob pena de ser anárquico, deve resolver-se pelo Ternário: no alto, Kether (a Inteligência suprema), refletida em Tiphereth (o Adão Harmonioso e ideal), manterá o equilíbrio entre Geburah (a justiça: O Império) e Hesed (a Misericórdia: o Papado). E se o sistema de Saint-Yves oferece uma bela síntese da humanidade tríplice e una, Eliphas Levi, designando o Ser Inefável, agente supremo do equilíbrio, imagina uma síntese talvez ainda mais grandiosa: une a terra ao céu, e a humanidade forma, com seu Deus, apenas um.
Depois deste esboço que traçamos, seria temerária uma conclusão; as doutrinas dos dois Mestres são essencialmente herméticas, por realizarem, verdadeiramente, o número três, número sagrado que resulta em quatro pela adição da unidade sintética.


De qualquer forma, a obra do marquês de Saint-Yves é corajosa e sua oportunidade bastante digna da clarividência de um Epopta. Urgiria que essas Missões(68) fossem pregadas aos filhos de uma raça que perdeu o senso da Hierarquia, o culto da Tradição e até mesmo o respeito pela Idéia pura. Século decadente, raça decaída. Retardadas pela preocupação exclusiva com fatos brutais acumulados, as próprias Egrégoras, míopes à força de tanta análise, são impotentes para enxergar algo que esteja além do contingente. O Idealismo tem por defensores apenas inábeis ou tímidos - ou seja, medíocres. Quanto ao Ocultismo, em vias de se depravar, vulgarizando-se nas mãos de sonhadores e charlatões, apenas raros escritores mantém-se dentro da lógica de sua ortodoxia(69). Há que assinalar, à frente desses últimos, Joséphin Péladan que, em seus audaciosos estudos(70), que nos oferece Decadência Latina, não hesita em produzir as grandes teorias cabalísticas - e tudo é significativo, até a intriga em que figura, simbolizado de forma nova e dramática, o eterno combate entre Édipo e a Esfinge: o homem em sua contenda com o Mistério. Mérodack (do Vívio Supremo) é um Louis Lambert de ação, e Curiosa faz lembrar Séraphitus-Séraphita. Mas este mistério que Balzac balbuciava intuitivamente, Péladan formula com o arrojo e a autoridade serena de quem sabe, e não com o febril arrebatamento de quem adivinha. Já se pode escrever, através dos modernos emblemas do romance sintético, a doutrina oculta cuja exposição técnica e racional o jovem adepto nos oferecerá em seu Anfiteatro das Ciências Mortas(71). Pertencendo à corrente de iniciação cabalística, Péladan deve ser distinguido, como tal, de magos ingleses ou franceses - muito estimáveis, aliás, e eruditos - que bebem da fonte menos pura do Esoterismo hindu. Já citamos, a propósito, Louis Dramard e devemos uma menção especial à presidente da Sociedade Teosófica do Oriente e do Ocidente(72), Lady Kaithness, duquesa de Pomar, a quem cabe a honra de haver explicado claramente, em artigos substanciais(73), os dogmas fundamentais de uma religião, que a imaginação luxuriante dos herdeiros de Sakya-Mouni havia misturado com mitos por demais complexos.
Desde a primeira edição desta obra, publicada em 1886, acentuou-se nitidamente a corrente que induz os curiosos ao estudo do Ocultismo. Apesar de toda a antigüidade sagrada e dos raros apóstolos contemporâneos cujos nomes mencionamos, a magia era, então, quase ignorada pelo grande público.


Uma verdadeira floresta virgem parecia impedir o acesso aos templos em ruína, incrustrados de hieróglifos de uma ciência perdida. E se algum ousado arqueólogo do mistério se arriscasse a descobri-los, teria que forçar uma passagem através de cipós, e enfrentar, a cada passo, a contumácia dos espinheiros inóspitos...
Atualmente, o aspecto geral modificou-se prodigiosamente, e isso graças aos numerosos desbravadores desses inextricáveis acessos. Que luminosas avenidas hoje se cruzam, lá onde, ainda ontem, havia trevas espessas!
Contudo, quanto à vulgarização, a França permanecera notavelmente atrás dos outros países da Europa e mesmo do Novo Mundo. Na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, até mesmo na América do Sul, assim como na Índia e em outros recantos do Oriente, a Sociedade Teosófica propalava, já havia vários anos, os ensinamentos do Budismo renovado. Depositária direta das tradições tibetanas, a sra. H.P. Blavatsky, fundadora desta sociedade próspera, dava, em diversos lugares, provas de uma competência real: sua erudição surpreendente, haurida de fontes desconhecidas, gerava ao mesmo tempo o estarrecimento e o escândalo na culta Europa. E a naturalidade com que sua fantasia parecia jogar com as forças ocultas para produzir os mais estranhos fenômenos(74) gerou, em torno dela, mais explosões de calúnias do que de louvores. Diversas lendas, uma mais incrível do que a outra, circulavam então com relação a essa inquietante personalidade. Blavatsky possuía o dom de apaixonar os espíritos: por ela ou contra ela, todos tomavam partido de modo violento, caloroso, além disso, às suspeitas injuriosas dos caluniadores, bem como ao sarcasmo da crítica, ela sempre opôs uma resposta triunfante, própria dos cérebros poderosos: é através das obras que manifesta sua réplica.
Há dez anos, o livro Ísis desvendada, de Blavatsky, trazia ao público inglês as primeiras revelações da alta ciência tibetana; o Budismo esotérico, de seu discípulo Sinnett, fazia a respeito desse belo livro um comentário digno dele. Blavatsky completa, hoje, o seu ensinamento pela apresentação progressiva de uma obra de imponente envergadura: A Doutrina Secreta (5 volumes in-8.? )(75).
É de se lamentar muito o fato de esses livros, tão usufruídos em seu texto inglês, não serem conhecidos por aqueles a quem este idioma não é familiar. Gaboriau, segundo se diz - outrora hábil diretor da revista francesa Lotus - pretende preencher essa lacuna, acrescentando à sua boa tradução, já publicada, de Mundo Oculto, de Sinett, a de Budismo esotérico, do mesmo autor(76). Talvez depois se empenhe em publicar a grande obra de Blavatsky. A gratidão de todos aqueles que se preocupam com essas graves questões já lhe foi tributada em oportunidades diversas, e certamente ele a verá crescer. A sua Lotus, que se tornou, há dois anos, órgão dos melhores expoentes franceses do Hinduísmo, pôs em foco uma constelação de personalidades ocultas eminentes: particularmente importantes os artigos de Soubba Rao, brama pândita, Hartmann e Amaravella, metafísicos de envergadura. Todos ficaram satisfeitos em saber que a colaboração ativa deste último foi cedida à Revue Théosophique, órgão parisiense recentemente fundado por uma ocultista de alto mérito, a sra. Condessa de Adhémar(77).
Enquanto as doutrinas neobudistas assim prosperavam, dois novos Cabalistas surgiam, ambos dignos de apreço por qualidades diversas, ambos eminentes em esferas diferentes.


Um é Albert Jhouney, diretor da revista L'Étoile, ilustre autor de O Reino de Deus (Carré, 1887, in-8.? ); o poeta esotérico de Lírios Negros (1888) e de Livro do Julgamento (1891-1892). O outro, jovem médico dos mais eruditos e eloqüentes, converteu-se em dupla personalidade: conquistou a notoriedade sob dois nomes diferentes. Só suas obras de anatomia e de fisiologia receberam a assinatura de Gérard Encausse. Seus tratados de magia arvoram um outro nome.
Cabeça enciclopédica e pena infatigável, saudemos este jovem iniciado que disfarça ou, diríamos, que desfigura o lastimável pseudônimo de Papus. É preciso, seguramente, que os seus livros testemunhem uma superioridade bastante transcendente, para que se possa perdoar seu rótulo! O fato é que os afeiçoados pela teosofia pronunciam o nome de Papus sem esboçar qualquer sorriso, mas, isto sim, com admiração e apreço. Passando pelas brochuras já em número considerável, que tem contribuído vigorosamente para a difusão das ciências esotéricas, mencionaremos somente as obras O Ocultismo Contemporâneo (Carré, 1887, in-8.? ), Sepher Jezirah (Carré, 1888, in-8.? ) e A Pedra Filosofal (Carré, 1889, in-l2.? , frontispício). Convém lembrar que Papus publicava, desde 1888, o seu Tratado Elementar de Ciência Oculta (Carré, in-l2.? , com figuras). Trata-se da primeira obra metódica em que se acham resumidos com clareza, além de agrupados e sintetizados com mestria, todos os dados primordiais do Esoterismo. Este livro excelente, que enfoca a aplicação dos métodos experimentais de nossas ciências ao estudo dos fenômenos mágicos, é também uma ação boa e meritória: os próprios estudantes adiantados podem recorrer a ele com segurança, como ao mais sábio dos gramáticos. Mas Papus acaba de firmar para sempre a sua reputação de adepto através da publicação de uma obra monumental referente ao Tarô(78). Em nosso entender, não exageramos ao asseverar que este livro, em que se revela, até às profundezas, a lei ondulatória do Ternário universal, constitui, no sentido mais pleno do termo, uma Chave absoluta das ciências ocultas.
A série de artigos de Barlet, publicados primeiramente na revista Lotus e posteriormente na revista Initiation, pode ser lida com proveito por aqueles que já meditaram sobre o Tratado Elementar de Papus. Ninguém ignora que um eminente iniciado se dissimula com excessiva modéstia sob o pseudônimo de François Charles Barlet.


Por outro lado, o Esoterismo vai, pouco a pouco, ganhando terreno por toda parte.
Sim, temos o consolo de ver nossas idéias penetrar, por infiltração, em todos os terrenos, sem barulho e sem derrocadas, mas com uma lentidão segura. O livro magistral de Edouard Schuré Os Grandes Iniciados (Paris, 1889, grande, in-8.? ) garante-nos que já se acham entabuladas as bases sociais da filosofia e da arte. Até o vetusco caráter clerical se embebe, por sua vez, e não tem cabimento afirmar que ele foi atingido superficialmente! Uma das mais belas almas, uma das mais lúcidas inteligências do clero francês, o cônego Roca, converteu-se, e não há pouco tempo, no mais fervoroso discípulo da Santa Cabala; faz soar alto e forte o clarim dos nabis para anunciar ao mundo caduco a era, já próxima e iminente, em que novos céus luzirão sobre uma terra regenerada(79). A Rosa-Cruz dá asilo a diversos padres católicos em sua misteriosa fraternidade. Um deles, doutor na Sorbonne e pregador de elite, está, sob o pseudônimo de Alta, entre os membros do Conselho supremo dos doze.
Assinalemos, enfim, como derradeiro fruto do Ocultismo, uma recente brochura de Polti e Gary intitulada Teoria dos Temperamentos (Carré, 1889, in-l2.? ). Este admirável ensaio de uma síntese fisiognomônica - baseada, por um lado e a priori, na lei do Tetragrama(80), fundada, por outro lado e a posteriori, numa quantidade imponente de documentos psíquicos e de observações escrupulosamente selecionadas, frutos tardios de pacientes estudos - este ensaio, dizemos, permite proferir, à primeira vista, um juízo quase infalível sobre o caráter dos seres com os quais somos chamados a cruzar no plano da existência material.
Eis um dos trabalhos que a Alta Ciência reconhece e que pode reivindicar como ecos de seu Verbo oculto, adaptações de seu princípio virtual, raios de sua luz refratada! ...


Na verdade, à parte dos pretensos iniciados, completamente independentes e fantasiosos, que julgam criar de todas as peças uma síntese absoluta, que pensam vaticinar, através da intuição, a fórmula necessariamente definitiva dos eternos princípios, é possível reduzir a duas as dioceses heterodoxas do ocultismo vulgarizado: a dos Magnetizadores e a dos Espíritas.
Esses representantes fervorosos do magnetismo são respeitáveis pesquisadores, freqüentemente verdadeiros homens de ciência que, mesmo sem terem indagado a razão positiva dos fenômenos sonambúlicos à luz das grandes leis da analogia universal e da harmonia pelo antagonismo dos contrários, não deixaram de contribuir para que a ciência oficial, nos últimos tempos menos renitente, desse, nesse sentido, verdadeiros passos de gigante. O domínio desses homens é, propriamente, a grande diocese do Livre Pensamento de que falava Sainte-Beuve aos senadores do império, pois cada um deles preconiza o seu procedimento particular, não concordando quanto à natureza e à causa última das manifestações que computam. Cabe agrupá-los, todavia, em duas categorias bem delineadas, distinguindo os Psicólogos (Braidistas) dos Fluidistas (Mesmerianos). A hipótese do fluido é mais antiga: abstendo-nos de esmiuçar a história de suas transformações - de Mesmer a Dupotet, passando por Eslon, Deleuze, Puységur -, retenhamos que todos esses práticos tiveram uma noção mais ou menos vaga da vasta teoria hermética do fluido universal, por mais inábeis que fossem para reconstruí-la em sua evidência luminosa e em sua sintética magnitude.
Estamos sempre No Umbral do Mistério. Suscitar questões sem oferecer respostas, eis nossa tarefa; ou menos ainda: um quadro exclusivo restinge-nos ao mais superficial e rápido esboço das metamorfoses com que este Proteu inatingível, "o Oculto", tem jogado através dos tempos. Assim, é mister que reservemos para outros tratados os detalhes dos fenômenos e as teorias que os explicam. Tal é a luz que a doutrina cabalística do fluido deve lançar sobre os problemas do Magnetismo e do Espiritismo, que, abrindo um novo parênteses, consideramos útil traçar, desde agora, uma exposição sumária.


Sem remontarmos ao tempo em que o Sacerdócio, depositário da Ciência Sagrada, traduzia os ensinamentos desta última para o povo, em linguagem parabólica, e sem reportar-nos ao tempo em que as nações civilizadas se orgulhavam de seus colégios de Magos ou de Teurgos, evoquemos ainda a lembrança dessas grandes sociedades secretas que a Franco-Maçonaria atual não passa de um simulacro sem vida, ou melhor, um rebento degenerado. Uma vez que o Querer infrangível - faculdade soberana do adepto - só era suscetível de afirmar-se pela energia na luta e na constância, em vista da sorte adversa, quem porventura aspirasse ao grau oculto deveria, ao longo de terríveis provas preliminares(81), dar a medida de seu destemor. Porém, o Grão-Mestre interrogava, de antemão: "Filho da Terra, que queres de nós?" "Ver a Luz", caber-lhe-ia responder. A palavra Luz, aqui era apenas um símbolo de Sabedoria e de Inteligência, sendo que o postulante (embora pensasse preencher uma formalidade rotineira e banal) determinava, em linguagem abstrata, o objeto de seu modo de agir, mesmo que o desconhecesse. "Tu queres, Filho do Limo(82), enxergar a verdadeira Luz, conhecer suas leis harmoniosas. Falaste sabiamente." Se há, pois, uma denominação ao mesmo tempo sintética e sugestiva, abarcando todos os ramos da Alta Ciência e adaptando-se a cada um deles, esta denominação é, certamente, Ciência da Luz.
A Luz, segundo os Cabalistas, é essa substância única, mediadora do movimento, imarcescível, eterna, geradora de todas as coisas, a que tudo retorna no momento oportuno: receptáculo comum da vida e da morte fluídicas em que, entre os destroços do ontem, germina o embrião do amanhã! Corresponde ao Verbo (luz divina), ao Pensamento (luz intelectual), ela é simultâneamente, no mundo fenomenal (e por uma contradição apenas aparente), o esperma da matéria e a matriz das formas: o agente hermafrodita do Eterno Devir. A luz constitui o fluido universal imponderável cujas quatro manifestações sensíveis se denominam Calor, Claridade, Eletricidade e Magnetismo. É a Akasa dos Hindus, Aor dos Hebreus, o Fluido que fala de Zoroastro, Telesma de Hermes, Azoto dos alquimistas, Luz Astral de Martinez de Pasqually e de Eliphas Levi, Luz Espectral do doutor Passavant, Força Psíquica do ilustre químico inglês Crookes.
Eis o ponto central da grande Síntese Mágica. Invisível tornada ou perceptível à visão através do calor, a luz forma a dupla corrente fluídica cujo modo de circulação, matematicamente determinável, pode ser influenciado por quem chegou ao resultado final. Eis o agente supremo das obras de magnetismo e de teurgia, esse Ser multiforme personificado pela serpente da Bíblia, como vimos acima. Conhecer as leis das marés fluídicas e das correntes universais é, como diz Eliphas, possuir o segredo da onipotência humana: descobrir a fórmula prática do incomunicável Grande Arcano.


Essa luz, dizem os adeptos, é andrógina. Seu duplo movimento efetua-se incessantemente, sendo determinado por sua dupla polaridade. I Y } é a corrente positiva ou de projeção, enquanto P Y } é a corrente negativa ou de absorção. A um dado ponto de sua evolução rigorosamente invariável, a Luz Astral se condensa, e de fluídica torna-se corporal. É então a matéria ou misto coagulado. (São distintas as expressões usadas pelos alquimistas. Estes chamam Aod de Enxofre, fervor seco ou calor inato; Aob, de Mercúrio, dissoívente universal ou radical úmido; o misto coagulado é, para eles, Sal ou Terra Vermelha.)(83) Como se pode observar, por mais que varie a terminologia, a doutrina permanece idêntica. E uma vez que tudo vem da Luz, pode-se dizer que a ciência deste agente primordial revela a gênese absoluta da matéria e das formas.
Uma palavra desta teoria aplicada ao zoomagnetismo fornecer-nos-á a chave do Sonambulismo artificial, da Segunda Visão, das Miragens condensadas (aparições), dos envultamentos criminosos - em suma, de todos esses fenômenos espantosos cuja realidade é contestada pela ciência oficial, nos limites cada vez mais restritos do possível: pois o simples enunciado de semelhantes fatos - e disso ela tem plena consciência - invalidaria a priori diversas "leis fundamentais" que ela promulgou do alto de sua infalibilidade secular.
Há no homem, segundo a magia, três elementos radicais: a Alma (elemento espiritual), o Corpo (elemento material) e o Perispírito ou Mediador (elemento fluídico); assim, a criatura de Deus (como Ele, Tríplice e Una) é feita, realmente, à sua imagem e semelhança(84). A alma espiritual seria, aliás, inábil para fazer-se obedecer pelo corpo material sem a interferência de um Mediador Plástico procedente de ambos, mediador que aciona diretamente o sistema cérebro-espinhal, encarregado, por sua vez, da transmissão das ordens do Querer aos órgãos físicos. Denominados, também, de Corpo Astral, este mediador, composto de luz bipartida fixa ou especificada (fluido nervoso) e de luz bipartida volátil (fluido magnético). O fluido nervoso comanda a economia vital; o fluido magnético, que não é senão a luz ambiente, aspirada alternadamente, de um modo análogo ao da respiração pulmonar, põe o perispírito em contato direto com o mundo exterior. Ora, uma vez que este Mediador Plástico, exercido convencionalmente, segundo sua própria vontade, pode coagular ou dissolver, projetar ao longo ou atrair uma porção do fluido universal, ele possibilita ao adepto influenciar toda a massa de luz astral, nela criando correntes e produzindo, enfim - ainda que à distância -, fenômenos surpreendentes que a ignorância comum qualifica como milagres ou perversas artimanhas do diabo, quando não acha ainda mais simples negá-los obstinadamente.


Sobretudo durante o sono magnético, o perispírito funciona com maior vigor e eficácia. Nesse estado, traz para junto de si, repleto de imagens, o fluido configurativo(85) que ele acaba de projetar dado ponto do espaço. É dessa forma que ao homem lúcido, adormecido em sua poltrona, a Natureza entrega seus últimos segredos, a ponto de ele perceber igualmente os vestígios do passado, as miragens do presente e os embriões do futuro - formas e reflexos espargidos na Luz Astral.
Os supersticiosos que enxergam fantasmas e, de modo geral, todos os alucinados, acham-se, no momento da aparição, em um estado próximo ao êxtase sonambúlico. O seu translúcido, em contato imediato com o fluído ambiente, apreende os inúmeros reflexos desse tipo transportados pela corrente. Os Cabalistas, de resto, reconheceram a existência positiva de miragens animadas, espécies de coagulações da luz astral, cujas diversas formas de nascimento ou, se quisermos, de produção deixamos entrever alhures... Inconscientes, mas reais, são as Larvas propriamente ditas. (Outras criaturas semi-inteligentes, recebem, em Magia, o nome de Espíritos Elementares e Elementais)(86). Por larvas podemos entender rudimentos de mediador plástico, destituídos quer de alma consciente, quer de corpo material, suscetíveis todavia, por condensação, de se tornarem visíveis, e até mesmo palpáveis. Afetam, então, a forma dos seres de que se aproximam. O ocultista (que os atrai, que os domina e os dirige por intermédio de seu próprio corpo astral) pode dar-lhe, à vontade, a aparência de qualquer objeto, contanto que determine mentalmente a natureza do objeto designado e que, em sua imaginação, burile vigorosamente seus contornos.
Cessemos esta exposição da teoria unitária do fluido universal, pois dissemos o suficiente para que o leitor entreveja a explicação racional dos mais perturbadores fenômenos magnéticos ou espíritas, sem que lhe seja necessário recorrer ao auxílio dos manes dos antigos ou de Satanás e suas legiões sulfurosas.


Esta teoria da luz - apenas esboçada aqui em seus traços essenciais, tão somente indicada em suas mais elementares aplicações é tradicional entre os adeptos. Os Mesmerianos pressentiram-na, sem saber precisar os seus princípios gerais melhor do que definir a sua imensa e decisiva envergadura; o ardor desses homens por proclamar a onipotência do fluido magnético é testemunha desta afirmação, juntamente com a sua incapacidade quando se trata de estabelecer-lhe a existência. Colocados contra a parede, eles se entrincheiram por trás desta fórmula indefinidamente vaga: "Emito o fluido e os fenômenos se manifestam. Quando o retiro, eles cessam". Isso não basta. Se esses senhores não confundissem a Antigüidade sábia e a Tradição em um mesmo e soberbo desdém, teriam encontrado nos hieróglifos do Tarô - esse admirável livro iniciático, já há muito prostituído e vilipendiado - a indicação precisa de uma doutrina mais satisfatória, talvez... Solitária, entre os escritores que trataram de modo especial do Magnetismo, a sra. Mond, a última adepta dos Mistérios Jônicos, pôde doutamente vincular às leis primordiais da Luz as verdadeiras regras do sonambulismo provocado(87). Discípula de Eliphas Levi, ela sabia por que motivo convém crer na existência real de um agente isômero da eletricidade. Quanto aos outros fluidistas - conjuradores de nuvens pretensamente metafísicas -, fizeram menos pela manifestação do Verdadeiro do que os magnetizadores positivistas, inatacáveis no terreno que escolheram.
Ninguém murmura sequer uma palavra acerca do abade Faria, que foi o primeiro a questionar a hipótese do fluido e a promulgar, também, os princípios da sugestão. Entretanto, os psicólogos ou Braidistas deveriam reivindicá-lo por ancestral, pois que o mérito incontestável do inglês Braid parece ter sido, seguramente, haver batizado a ciência de Mesmer em destinos novos e mais acadêmicos; os sábios oficiais não possuíam anátemas suficientes para o Magnetismo; o Hipnotismo lhes aprazia. - "O hábito faz o monge..." Esta máxima é tão justa, que uma vez caída a etiqueta injuriosa todos, alquimistas, médicos, professores, lançaram-se inescrupulosamente às práticas que por tanto tempo estiveram proibidas. O Instituto revogou a proibição outrora invectivada contra a ciência ortodoxa e, pronto para sancionar a ciência anabatista, acolheu a sugestão. Por mais incapaz que seja, aliás, esta hipótese para explicar o que se acha além das aparências, ela não é destituída de um real valor científico, conforme veremos adiante. A escola de Nancy, formada recentemente sob a égide de um sábio de primeira categoria, o doutor Liébault, levou o Magnetismo experimental e positivo às suas fórmulas mais nítidas - e nós preferimos mil vezes a ciência considerada deste ponto de vista, algo exclusivo e restrito, aos incoerentes desvarios dos caudatários mesmerianos, obcecados por um pseudo-fluidismo indigente.
Não é a divulgação mal compreendida das doutrinas cabalísticas referentes à questão dos espíritos elementares que se há de atribuir as aberrações do espiritismo contemporâneo? É possível. Os filhos supersticiosos da Idade Média tremiam diante da simples narração de visões misteriosas. O coveiro julgara distinguir, sobre os túmulos, vagas formas em véus diáfanos. O assassino sentira seu braço - já levantado para a prática do crime - sendo agarrado por uma mão invisível. O clérigo, tendo evocado Belzebu, vira-o surgir em turbilhões de fumaça ruiva. O fantasma de uma mãe castigada despontara aos olhos de seu filho para implorar padre-nossos. Contudo, ninguém jamais imaginara computar os sobressaltos de uma cartola ou de uma mesinha afim de obter, desse modo, revelações de além-túmulo! Falava-se de solares assombrados. Porém, qual o tolo que se atreveria a acreditar na obsessão de uma mesa ou de um chapéu? Tais convicções estavam reservadas ao século XIX... Por que haveríamos de insistir nos sonhos vazios de um Allan Kardec? Não contestamos a realidade física das manifestações, mas este não é o lugar adequado para tecer comentários a respeito. Além disso, o que dissemos acerca da luz astral deve elucidar o leitor quanto à causa eficiente e aos modos de produção dos fenômenos extraordinários em que nossos homens de espírito se gabam de ver "a mão dos desencarnados"(88). Por mais bizarros que sejam os fatos observados, não há nada que não seja natural, pois que, no sentido que as pessoas geralmente atribuem ao vocábulo, o Sobrenatural não existe. Porém, a razão última destas criações anormais de fluido coagulado a alta tensão reside num arcano mais terrível, em si mesmo, do que as fantasmagorias diabólicas que amedrontavam a ingenuidade de nossos pais.
Se fossem divulgados todos os segredos atinentes, de perto ou de longe, ao magnetismo animal, e se houvesse no mundo número suficiente de homens perversos para deles abusar coletivamente, é triste afirmar isto, mas tão nefastos, tão funestos seriam os frutos de tal civilização, que teríamos de aguardar ansiosos uma invasão de bárbaros, a título de libertação! Viriam eles, os brutos benfazejos e, para aniquilar os frutos insanos, solapariam a árvore contaminada... E benditos seriam eles por desobstruirem os destroços imundos daquilo que fora a grande civilização européia.


Há ciências fatais. Tal como outrora a casta Diana, a Natureza fulmina com a morte ou faz tombar o temerário que a surpreende desvelada; dá, porém, o seu beijo furtivo e sua carícia de luz ao homem simples e laborioso que não cobiçou o poder oculto para uma obra imbuída de um egoísmo mesquinho. Assim, Febo sorria ao pastor Endimião sem que este suspeitasse de seu sorriso, e beijava-o quando ele estava adormecido. Eis um simbolismo ainda mais profundo do que o da Bíblia. O fruto tentador acha-se eternamente suspenso na árvore do Bem e do Mal. Aproxima-te, se és puro; toca e contempla o pomo à vontade. Se ousas, come sua polpa, respeitando sua semente. Porém, não o colhas para o vulgo, pois o fruto da Ciência em mãos vulgares tornar-se-ia fruto da Morte.
Essas páginas, Leitor, constituem uma espécie de introdução às que publicaremos em seguida. Andando por entre aqueles que passarem a vida sob os ramos da macieira simbólica, só nos aproximamos desta árvore acidentalmente, e como que impelidos pela multidão. Doravante, mais audaciosos para atingir os seus frutos, ergueremos a cabeça e estenderemos os braços. Posteriormente, elevaremos também nossos corações na direção do mistério.
Sursum corda! Esse é o clamor das almas que aspiram à imortalidade. Essa é a divisa dos hierarcas que labutam pela ascensão. É o verbo dos Chamados que serão os Eleitos! O triângulo divino flameja por sobre os cumes. Em direção a ele se eleva a dupla escada de Jacó, cujos altos degraus perdem-se entre as nuvens. Galgam esses degraus sem soçobrar aqueles que, se não passam de homens, possuem os "flancos de baixa argila consumidos em desejos de Deus"(89)
Desaparecidos em meio ao nevoeiro, aqueles que se encontram abaixo os perdem de vista, enquanto eles, no alto, recebem a iniciação. Em seguida, tornarão a descer. Porém, como Moisés, a luz, contemplada face a face, terá deixado seu reflexo sobre eles: ao descerem, descerão arcanjos, para convidar as almas ousadas à escalada do céu: Violenti rapiunt illud. Se o absoluto não pode revelar-se aos filhos dos homens, que os fortes ascendam até ele para conquistá-lo. Quando retornarem aos seus irmãos mais tímidos, a fim de renderem homenagem à Luz(90), estes poderão ver, pela auréola de sua fronte, que, sem deixarem de ser Filhos da Terra, eles se fizeram naturalizar Filhos do Céu.


Stanislas de Guaita

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