domingo, 10 de agosto de 2008

A Corte no Brasil – Estrutura Estatal e Gestão Pública


Histórico e Geográfico Brasileiro.Arno Wehling - Professor Titular da UNI-RIO e Universidade Gama Filho. Presidente do Instituto

A transferência da Corte para o Rio de Janeiro acarretou mudanças nas práticas de Estado, de governo e da administração para o Brasil, para Portugal e para os demais domínios portugueses. O que se indaga, aqui, é o grau de profundidade por elas alcançado, considerando-se as condições preexistentes vigentes no Brasil.

Estado português e Estado colonial no limiar de 1808

Podemos considerar esta questão sob dois ângulos: o do Estado quanto à sua estrutura e o do Estado quanto às suas relações com a sociedade, particularmente a grande permeabilidade que apresentam.

Em Portugal, a historiografia política e institucional tem chamado a atenção para o fato de existir um Estado de secretarias de governo ou ministérios, que compreendia repartições como as secretarias da Guerra, da Marinha e Ultramar e dos Negócios Estrangeiros. Ao lado dessas secretarias, cujo modelo institucional tinha sido criado ao influxo da modernização administrativa sob a égide da centralização absolutista, desde o governo de D. João V (1706-1750), continuaram existindo os antigos órgãos colegiados, originários da monarquia tradicional dos séculos XVI e XVII. Eram eles os conselhos da Guerra, Fazenda e Ultramarino (este, o mais atuante no Brasil) e as “mesas” do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordem.2

Desta forma, ficava evidente que cada vez mais se desenhava um Executivo forte, composto pelo rei e os ministros mais influentes do ponto de vista do governo; do rei e das secretarias de Estado, do ponto de vista da estrutura estatal. Na ausência do Legislativo e com a subordinação dos tribunais ao monarca, chegou-se efetivamente ao “absolutismo” que os críticos iluministas, particularmente os liberais, propunham-se derrubar ou amenizar.3 Essas formas novas, entretanto, não eliminaram – e não apenas em Portugal, mas em todas as monarquias da Europa ocidental – os antigos colegiados, em geral compostos por membros da nobreza “administrativa” que a eles chegara com os esforços de várias gerações.

Nas suas relações com a sociedade, esse Estado possuía diferentes áreas de permeabilidade, representadas pelos meios de acesso à administração pública: compra de cargo, quando existia a venalidade dos ofícios; concurso público, como na entrada para a magistratura, quando se exigia habilitação específica, profissional (formação em direito) e social (ausência de profissões manuais, “pureza de sangue”); preenchimento por eleição, no caso das câmaras municipais. A elas se acrescentava o ingresso nas ordens honoríficas (de Cristo, de Santiago, de Avis) que representavam para o seu titular um honor, não uma função pública remunerada (como no caso anterior, à exceção dos cargos eletivos municipais, que não eram remunerados).

Nessas situações, admitia-se que o fato de o indivíduo ser agraciado pelo cargo ou pela honraria implicava certo grau de distinção social, que o aproximava da nobreza. Ocupar ou ter ocupado ofícios de alguma relevância, ter exercido “cargos na república” ou ser membro de ordens honorárias eram meios de permeabilidade social que garantiam a capilaridade do sistema político e social desta sociedade de ordens ou estamentos.5 Emolumentos, pensões, tenços, aposentadorias, títulos eram as prebendas (no sentido de Weber) que sancionavam, inclusive juridicamente, a passagem de direito ou de fato do plebeu à condição de nobre ou, pelo menos, à condição de membro do setor superior do terceiro Estado.

No Brasil colonial, mutatis mutandi, esse modelo se reproduzia. No âmbito do Estado, as inovações mais significativas ocorridas no século XVIII tinham sido a atribuição definitiva do título de vice-rei ao governador-geral, a extinção do Estado do Maranhão em 1774, a criação de novas capitanias, fruto da expansão territorial, o estabelecimento de um segundo Tribunal da Relação no Rio de Janeiro, em 1752 e a criação de juntas de justiça em algumas capitanias. Nenhuma dessas inovações teve, para a estrutura do Estado colonial, o impacto das secretarias de governo na metrópole, pois consistiam no mero desdobramento de um modelo preexistente.

Ao final do século XVIII havia na colônia um vice-rei, seis capitanias gerais (São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Maranhão e Pará) e mais capitanias subalternas, dois tribunais da relação (Bahia e Rio de Janeiro), com funções judiciais, de governo e de administração, uma organização alfandegária concentrada nas capitanias portuárias e nos “registros” das capitanias mediterrâneas, as câmaras municipais e a organização do clero secular (arquidiocese da Bahia, seis dioceses, duas prelazias) e regular (ordens religiosas).

A própria organização administrativa, de caráter fortemente empírico, apresentava intercessões impensáveis num modelo cartesiano. Uma capitania subalterna, como a do Espírito Santo, por exemplo, reportava-se em determinados assuntos à capitania geral da Bahia e em outros à do Rio de Janeiro, o mesmo ocorrendo, aliás, com as demais. Nas relações entre a Igreja e o Estado, apesar de esforços dos legisladores em delimitar bem ambas as esferas, o fato se repetia, mais na prática do que na letra das normas. A estrutura alfandegária, pelos critérios e objetivos fixados à época, deixava a desejar, sendo múltiplas as situações de corrupção e contrabando.

No âmbito da sociedade vigorava o mesmo modelo estamental metropolitano. Do ponto de vista formal, menos eficaz do que em Portugal, porque os mecanismos, uma vez acionados no Brasil, dependiam dos registros cartorários das prebendas, centralizados em Lisboa. À exceção dos cargos eletivos das câmaras municipais, os demais incluíam algum tipo de registro ou autorização na metrópole.

Havia, portanto, em Portugal como no Brasil, uma sociedade e um estado de ordens, característicamente patrimonialistas na tipologia weberiana. Ao surgimento de traços de modernidade, como a atitude ilustrada de alguns políticos e intelectuais ou os primeiros efeitos concretos das transformações industriais e agrícolas, somaram-se mudanças na própria estrutura do Estado, com a consolidação de alguns cargos profissionais, de característica essencialmente burocrática, como as magistraturas ou os contábeis. Tudo isso foi suficiente para alterar profundamente o quadro patrimonialista?


Continuidade e ruptura

As forças inovadoras concentravam seus esforços, em âmbito estatal, para tornar o Estado mais profissional, quanto aos recursos humanos, e mais objetivo e racional, quanto a organograma e fluxos administrativos. Esse papel inovador foi assumido pela burocracia ilustrada, que vinha da época pombalina e até de antes. Desde fins do século XVIII ela foi emblematicamente representada, em Portugal, por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Linhares, ministro no Brasil entre 1808 e 1812, embora existam exemplos diversos de autoridades coloniais – governadores, secretários, vicereis, magistrados e bispos – imbuídos desse espírito.8

Por outro lado, forças conservadoras empenhavam-se por manter o status quo: nobreza e letrados defendiam suas pensões e tenças, clérigos defendiam privilégios da Igreja contra o regalismo e a secularização, comerciantes aferravam-se ao manto protecionista.

O meridiano entre inovadores e conservadores nem sempre é nítido, já que se trata de uma categorização ex-post facto. No plano individual, certamente era possível encontrar situações em que a pessoa preenchesse os dois papéis: um exemplo é o do Bispo de Pernambuco, Azeredo Coutinho, cuja administração teve traços de inovação, mas cujas concepções em matéria de economia política e relações entre a igreja e o Estado eram as mais conservadoras da época.

Referindo-se à realeza absoluta, Oliveira Lima constatou que o trauma da transferência para o Rio de Janeiro aproximou suas necessidades às das “classes privilegiadas”. Mas, pode-se acrescentar, se entendermos por “classes privilegiadas” as elites tradicionais que obstavam os esforços da alta burocracia ilustrada, é preciso lembrar que logo ocorreria nova separação de interesses, motivada pelas condições do Brasil e pela conjuntura internacional. Isso se evidenciou em 1815, quando da elevação da colônia a Reino Unido, medida “excepcional”, na expressão de seu principal inspirador, Silvestre Pinheiro Ferreira11 e que tinha seus opositores justamente naqueles círculos. Mais tarde, a partir de 1821, foram essas mesmas “classes privilegiadas” que, nos dois lados do Atlântico, sustentaram o “partido” recolonizador e contribuíram para a radicalização do processo político.

O Estado joanino na historiografia

A historiografia sobre o período joanino no Brasil refere-se sempre ao conjunto da época, aí incluindo, com significado variável, a questão do Estado.

Podemos, grosso modo, classificar as abordagens em relação ao tema em quatro grupos, com seus respectivos enfoques: as instituições estatais estabelecidas no Brasil foram mera reprodução das portuguesas; ocorreu uma “inversão brasileira”, destacando-se, o reposicionamento do Brasil no conjunto dos domínios portugueses e em sua relação com Portugal; desenvolveu-se a concepção de um novo império português; e ocorreu de fato, uma renovação administrativa do País.

No primeiro grupo encontram-se Varnhagen e Oliveira Lima.

Varnhagen acompanhou a crítica contemporânea de Hipólito da Costa em dois pontos principais: a transferência da Corte provocou o transplante de instituições como se fosse plagiado o Almanaque de Lisboa; as instituições eram arcaicas e muito pesadas, mesmo em Portugal. Sem deixar de reconhecer a existência de medidas positivas, como a criação das academias de marinha, de artilharia e fortificações, do arquivo militar, do Banco do Brasil e de outros órgãos, considerou mais necessária a criação de uma Universidade, de escolas de engenharia e de um ministério de terras públicas que promovesse a colonização.

Oliveira Lima, no seu clássico D. João VI no Brasil, também insistiu na reprodução das instituições, embora admitindo certo desafogo para o Brasil, que teria perdido a condição colonial, não obstante a continuidade dos órgãos estatais.

A Sílvio Romero deve-se a percepção da “inversão brasileira”, com o Brasil passando doravante a representar o papel de metrópole e Portugal o de colônia.15 Nessa mesma linha seguiram Rodolfo Garcia, e Maria Odila da Silva Dias, que considerou o processo de transferência como uma “interiorização da metrópole”. A transferência da Corte associada à idéia de fundação de um “novo império” distinto do que existiu no século XVI, para Pedro Otavio Carneiro da Cunha, ou um “poderoso império”, segundo Maria de Lourdes Viana Lyra, sublinha a concepção de uma nova entidade política, distinta da condição colonial e de sujeição à metrópole.

Por último, coube a Hélio Viana defender a tese da renovação administrativa do período joanino, atribuindo-a à presença no Brasil de ministérios e outros órgãos, à criação de comarcas e às modificações nas capitanias.

* * *

Três questões podem ser encontradas no estudo do Estado, do governo e da administração no período joanino brasileiro: o da periodização, o da permanência e mudança e o das políticas.

Periodização

Ao se considerar a estrutura do Estado joanino no Brasil a partir de 1808, uma consideração preliminar se impõe: é ele um todo monolítico ou comporta fases? Em qualquer caso, quando se encerra: em março de 1821, quando D. João VI se retira para Portugal, ou setembro de 1822, quando formalmente é declarada a independência? Este segundo marco ainda poderia ser deslocado, conforme o critério, para antes – a convocação dos representantes provinciais, por exemplo – ou para depois, com a promulgação da Constituição, também a igual título.

Quanto ao primeiro aspecto, as mudanças ocorridas ao longo do período não sustentam o ponto de vista monolítico. Max Fleiuss sugeriu a periodização mais tipicamente político-administrativa, tomando como base os ministérios: de Rodrigo de Sousa Coutinho, entre 1808 e 1812, do Conde da Barca entre 1814 e 1817 e de Tomás Antonio de Vilanova Portugal, entre 1817 e 1821.19 Cômoda por um lado, esta periodização não valoriza um corte mais estrutural sob a perspectiva de instituições estatais que permaneceram, independentemente da variação conjuntural dos ministérios. Ademais, deixa um hiato após o retorno do rei, de 1821 até a separação.

A periodização pelo Reino Unido, em 1815, pode representar melhor corte estrutural: entre 1808 e 1815 ocorre o deslocamento da sede administrativa dos domínios, que a elevação da condição política do Brasil corrobora e aprofunda, sancionando juridicamente um redimensionamento de forças geopolíticas que se desenvolvia desde 1808 (embora previsto desde antes) e que se estendeu até 1822.

Se Varnhagen viu no Reino Unido “mero ato diplomático”, outra perspectiva pode identificá-lo com uma autêntica mudança institucional, retomando o projeto de Rodrigo de Sousa Coutinho de um sistema imperial”, solução que também se discutia intensamente no âmbito do império espanhol desde a década de 1780. A posição do Ministro e doutrinador político Silvestre Pinheiro Ferreira, dirigindo- se a D. João em 1815 e sugerindo “medidas excepcionais” para enfrentar “tempos excepcionais”, é ilustrativa da convicção de parte da elite portuguesa e luso-brasileira da necessidade e da amplitude desse redirecionamento de forças.

Permanência e mudança: estrutura do governo e estrutura política-administrativa

A percepção da historiografia concentrou-se em geral na estrutura do governo joanino, o que talvez possa explicar a idéia de uma paralisia institucional.

Com efeito, se olharmos o problema do Estado sob o ângulo exclusivo da organização de governo (entendido no sentido do Executivo da era constitucional), a conclusão é de permanência. Existiram poucas modificações nos ministérios, pois em março de 1808 mudaram apenas os titulares das secretarias do Reino, Negócios Estrangeiros e Guerra e da Marinha e Ultramar, e órgãos públicos mais importantes, como a Mesa da Consciência e Ordens, a Intendência de Polícia, o Erário Régio, e o Conselho da Fazenda, não sofreram modificações relevantes.

Entretanto, na ótica da estrutura político-administrativa, existiram mudanças extremamente significativas:

a) A efetiva centralização do poder político no Rio de Janeiro, o que não acontecia antes de 1808. Sempre foi observado pela historiografia que, no período colonial, os governadores-gerais e vice-reis, quer em Salvador, quer no Rio de Janeiro, restringiam sua autoridade à capitania que governavam e às capitanias subalternas, pois as demais capitanias gerais entendiam-se diretamente com Lisboa. Esta situação alterou-se com a instalação da Corte no Rio de Janeiro, de onde passaram efetivamente a emanar os comandos governativos, numa escala até então desconhecida na colônia.

A conclusão de Capistrano de Abreu nos “Capítulos de história colonial”, assinalando o caráter fragmentário da colonização portuguesa, 21 justifica-se até janeiro de 1808. A partir daí iniciou-se o longo processo da unidade política em torno de um centro – o Rio de Janeiro – e este fato se deu, em larga medida, pela realidade concreta de existir um poder central localizado nesta capitania. Seria, assim, de todo conveniente deslocar o início desse caminho para a centralização política com a independência de 1822, para 1808, entendendo-o, rigorosamente, como um processo de média duração, culminando na Lei de Interpretação de 1840 e não como algo abrupto.

b) Maior equilíbrio regional, com a equalização das capitanias, no momento em que se tornaram capitanias autônomas, vinculadas ao Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, Piauí, Alagoas e Sergipe.

Isso significava que perdiam o status de capitanias gerais e a preeminência formal anterior, as capitanias mais tradicionais e fortes da época colonial, particularmente Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e São Paulo.

No caso de Alagoas e Rio Grande do Norte, o fato deu-se de modo explícito, como retaliação à Revolução Pernambucana de 1817. Alagoas e Sergipe, comarcas, foram transformados em capitanias. O Rio Grande do Norte, que já se constituía uma capitania subalterna, foi separado de Pernambuco.

Na administração de D. João, este processo não ocorreu somente após a sua chegada ao Brasil, pois já haviam sido emancipados a Paraíba e o Ceará (de Pernambuco, em 1799) e o Rio Grande de São Pedro do Rio de Janeiro, em 1807.

c) Maior adensamento e interiorização relativa da justiça, com a criação dos tribunais da Relação do Maranhão, em 1812 e de Pernambuco, em 1821 e o estabelecimento de novas comarcas e juizados de fora. Tratouse de uma evidente ampliação da esfera do público, onde anteriormente havia a rarefação ou mesmo a ausência do Estado, cujas funções acabavam sendo preenchidas pelo mandanismo local.

Se a interiorização relativa da justiça não eliminou o mandanismo, gerou, entretanto, uma alteração na relação de forças entre interesses privados e autoridades públicas. Ocorreu em geral uma efetiva ampliação da atuação destas, não obstante existir a força da coopação do público pelo privado, gerando soluções de compromisso que dariam a tônica das relações sociopolíticas do País por mais de um século.

No caso das relações, no período joanino esperava-se delas que atuassem não apenas no âmbito judicial, mas na assessoria política e na ação administrativa dos governos das capitanias de sua jurisdição. Este quadro seria alterado somente após a Constituição de 1824, com a separação de poderes e em 1826, com a criação do Superior Tribunal de Justiça.

As novas comarcas representavam uma importante ponta-de-lança do estado em áreas de rarefação do poder central, e foram criados por desdobramento dos existentes. Pelo menos no caso do Rio Grande do Norte, sua criação deveu-se à autonomia que a capitania obteve em relação a Pernambuco, sendo por isso desmembrada da comarca da Paraíba.

Os juizados de fora, por sua vez, tinham o mesmo papel das ouvidorias da comarca no sentido apontado, ao qual se acrescentava a presidência da Câmara Municipal, nítida e tradicional estratégia portuguesa – utilizada também no Reino – para tentar diminuir a influência das oligarquias locais.

d) Criação, pelo alvará de 10 de setembro de 1811, de juntas nas capitais das capitanias para agilizar os assuntos do Desembargo do Paço, descentralizando-os do Rio de Janeiro. Esses assuntos diziam respeito, majoritariamente, às pensões, tenças, aposentadorias e demais probendas que caracterizavam a sociedade estamental. Lembre-se que esta delegação, já ocorria anteriormente a 1808, mas restrita aos tribunais da relação da Bahia e do Rio de Janeiro, que já dispunham de uma junta (câmara) de desembargadores para o despacho dessas matérias.

As juntas do Desembargo do Paço são exemplo evidente de como conviviam sem traumas no Estado joanino a inovação, representada pelo esforço de disseminação da esfera pública em um sentido racionalizador, no espírito da “disciplina” ou “polícia” da Ilustração, com a tradição, representada pela permanência de estruturas estamentais de longa duração, típicos do Antigo Regime.


A questão das políticas estatais

Havia políticas estatais, ou pelo menos administrativas, no exercício do governo joanino?

O juízo de Oliveira Lima a respeito é dos piores. Para ele, a resposta é negativa, pois o poder continuava muito concentrado, havia o predomínio da “baixa cortesania”, corrupção e falta de seriedade em todos os domínios da administração. O autor, baseado nas informações do Correio Brasiliense, relacionou os abusos e desleixos que teriam ocorrido no nível da administração pública,25 para concluir que “a seriedade timbrava em não comparecer em um só domínio da administração”.

Os indícios são, realmente, de que os vícios da administração pública colonial continuaram intangíveis pelo período joanino, provavelmente acrescidos de novas situações provocadas pela presença da Corte. Entretanto, algumas nuanças precisaram ser observadas.

Em primeiro lugar, embora também se valha de outras fontes, como os textos de Tollenare e do cônsul francês Moler, Oliveira Lima fundamenta-se, para este juízo, em uma peça de oposição, o Correio Brasiliense, que, não obstante alguma ambigüidade, normalmente ecoava os interesses ingleses no Brasil. Pela mesma época o jornal reproduzia manifestações hostis ao governo português na Câmara dos Comuns, onde um deputado verberara a transferência para o Brasil do “mesmo apodrecido governo” de Portugal.

Em segundo lugar, o escritor pernambucano, estribado em uma visão liberal e racionalizadora do século XIX, não parece perceber as características profundamente diversas da estrutural estatal, particularmente administrativa, do Antigo Regime.

Tratava-se não apenas de uma sociedade, mas de um Estado estamental, em que ainda existia a venalidade dos ofícios públicos, implantados pela monarquia clássica desde o início da Idade Moderna, o princípio de que o próprio cargo deveria remunerar seu ocupante (e não um salário pago pelo Estado) e a concepção de que o serviço ou a gratidão da monarquia eram fatores de distinção social e, mesmo, de enobrecimento. Varnhagen seguiu diapasão mais moderado, porém foi igualmente cáustico ao reclamar da ausência de um ministério da colonização e outro para as obras públicas.

Hipólito da Costa, matriz de todos as críticas, reclamou da manutenção das práticas alfandegárias, como monopólio da Coroa, que facilitava a corrupção e o contrabando e da transferência de órgãos inteiros para o Rio de Janeiro. Em sua opinião, no primeiro caso deveria ser feito o arrendamento a particulares das alfândegas e no segundo sugeria a fusão de atribuições de diferentes órgãos, para diminuir-lhes as despesas.

Não obstante haver realmente a constatação de muitas destas situações, não se pode negar a existência de algumas políticas e ações administrativas de médio e longo alcance, embora sem as características de um planejamento mais consistente como à época pombalina.

Os exemplos são vários. Embora não criasse um ministério da colonização, como desejava Varnhagen, o governo implementou uma política de imigração com colonos estrangeiros, alterando para isso a legislação fundiária. Criou o Banco do Brasil, superando soluções empíricas para o crédito já existentes nas praças do Rio de Janeiro e de Salvador. Liberou a atividade manufatureira, revogando o alvará de 1785. Lançou os primórdios da siderurgia, com a fábrica de Sorocaba. Não fundou uma Universidade, mas criou o curso superior de medicina. Promoveu ações militares dispendiosas na Guiana e, sobretudo, em Montevidéu, mas aquela era uma retaliação previsível – e a única possível – contra Napoleão, e no sul nada mais se fazia do que continuar a tradicional política bragantina de estender o Brasil até o rio da Prata.

Avaliar as políticas e ações por suas intenções e não apenas por seus resultados, na medida em que os fracassos, mais do que o sucesso, faz emergir contradições e fraturas do sistema social, das relações econômicas e de poder, é um recurso interpretativo do historiador. Julgar o governo joanino por seu desempenho corresponde a outro tipo de análise, que transformaria o juízo do historiador no antigo e inócuo “tribunal da história”.

A estrutura do Estado joanino corresponde, portanto, a uma transição de dois universos: a passagem da sociedade estamental e do Estado de ordens para a sociedade liberal e o Estado constitucional do século XIX.

Sob essa ótica, ficam mais claras as contradições e as marchas e contramarchas que irão caracterizar as políticas e as ações de Estado, de Governo e de Administração ocorridas no Brasil entre 1808 e 1821. Os juízos críticos podem corroborar essa perspectiva.

O próprio Oliveira Lima percebeu que não poderia avaliar todo o sistema baseado apenas em críticas ao peculato é a corrupção, ao afirmar que o problema era mais do regime (de comendas, pensões e empregos) do que de esforços para diminuir os gastos públicos, e sua solução implicava em “reformas radicais”.30 Faltou-lhe o instrumental de análise que lhe permitiria constatar o fato de que essas “reformas radicais” implicavam na substituição do modelo estamental por um modelo burocrático racionalizador, que se desenhava no horizonte joanino, de forma ainda imprecisa, com a construção do Estado liberal-constitucional.

Cabe registrar, por fim, que o modelo patrimonial que existia em Portugal e no Brasil antes de 1808 prosseguiu durante o governo fluminense de D. João e permaneceria ainda no país independente. Nem a abolição formal da sociedade estamental pela Constituição de 1824 foi capaz de alterar profundamente a realidade preexistente, vinda da época colonial, embora as pressões por mudanças fossem alterando progressiva, mas lentamente, para os padrões da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, por exemplo, as regras do jogo social e político e as relações econômicas.

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