quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Hobbes, Rousseau e Hume e os Dilemas da Cooperação


Desde a Antiguidade há uma correta percepção de que a vida em sociedade se justifica pelos ganhos decorrentes da cooperação entre os agentes. A despeito disso, há inúmeras situações em que os agentes escolhem voluntariamente não cooperar, abrindo mão dos ganhos potenciais da cooperação. É o que já afirmavam Tucídides na Guerra do Peloponeso e Aristóteles na Política.1 Como explicar esse comportamento?

As desventuras do amor: um jogo de enganos e desenganos?

A ópera Tosca, de Giacomo Puccini, mostra que o conflito entre a busca do próprio interesse e os ganhos da cooperação nem sempre tem solução positiva, como nos lembrou Matt Riddley em As origens da virtude.2

Honrar ou deixar de honrar o pactuado? Na ópera, Tosca se vê diante de um terrível dilema. O seu amante, Cavaradossi, foi condenado à morte por Scarpia, o chefe de polícia. Scarpia oferece a Tosca um acordo. Em troca de Tosca entregar-se a ele, Scarpia se compromete a salvar a vida do amante da heroína, ordenando ao pelotão de fuzilamento que use balas de festim. Tosca decide enganar Scarpia concordando com o pedido, mas mortalmente o apunhala depois que o chefe de polícia ordena o uso de balas de festim. Ela assim o faz, para descobrir tarde demais que Scarpia também decidira enganá-la. O pelotão de fuzilamento não usou balas de festim; Cavaradossi (o amante) morre. Tosca comete suicídio, terminando os três, mortos.3 Às vezes, não cooperar tem conseqüências funestas.

A história de Tosca, Cavaradossi e Scarpia é um exemplo particular de um problema geral, analisado pela chamada “teoria dos jogos” – o estudo sistemático da escolha racional interdependente. Ela é usada para explicar, prever e avaliar o comportamento humano em contextos em que os resultados da ação dependem das escolhas dos vários agentes envolvidos e onde as escolhas de cada um dependem das escolhas dos demais. Exemplos singelos são os jogos de dama ou de xadrez; menos singelo é o “jogo” de enganos e desenganos em que se envolveram Tosca, Cavaradossi e Scarpia.

Fazemos diuturnamente escolhas imbricadas com decisões de terceiros. Às vezes, os interesses das partes coincidem. Esse é o caso de dois ciclistas pedalando em direções opostas em um caminho estreito. Ambos têm interesse de evitar a colisão. Cada ciclista tem a opção de desviar-se para a direita, para a esquerda ou manter o curso. O resultado – colisão ou desvio – depende, evidentemente, não só de terem um interesse comum em não colidir como das decisões que tomarem. Para evitar a colisão, basta apenas que um dos ciclistas sinalize ao outro a sua decisão. Estamos, portanto, diante de um jogo cooperativo. O “jogo” em que se envolveram Tosca, Cavaradossi e Scarpia é um jogo de interesses opostos, conflitantes.

O “Dilema do Prisioneiro”

O “Dilema do Prisioneiro” talvez seja o jogo conflitante mais conhecido. 4 O nome vem de uma “historinha” que lhe deu origem, da qual há inúmeras versões. Uma delas a seguinte: Duas pessoas são presas por roubo e colocadas em celas separadas. Cada uma tem a opção de confessar o crime ou não. O promotor explica as conseqüências das opções de cada um de confessar ou não o crime: se ambos confessarem, ambos serão condenados a três anos de cadeia. Se ambos não confessarem, o resultado será ainda a prisão, porém por um ano (talvez porque as evidências apresentadas sejam frágeis). Mas o promotor pode interceder com o juiz para oferecer o benefício da delação premiada se um dos presos confessa e o outro não. Nesse caso, o juiz suspenderia a sentença em favor de quem confessou. Quem não tivesse confessado seria punido exemplarmente com cinco anos de cadeia.

Se cada um dos presos pretende apenas atender o seu interesse próprio (evitar a prisão), ambos acabam confessando. Em decorrência, ambos são condenados a três anos de cadeia; ficariam apenas um ano presos se “cooperassem” um com o outro – isto é, se não confessassem. Aqui, a falta de cooperação teve também conseqüências funestas.

Se o leitor considera o exemplo simples demais, poderá considerar uma situação aparentada com a do “dilema do prisioneiro”, mas com muitos “jogadores”. O exemplo que vem de pronto à mente é o da “Tragédia dos Comuns”, descrita no artigo seminal de Garret Hardin e, complementado aqui, pelo também seminal artigo de Ronald Coase.5 Um fazendeiro cultiva trigo em suas terras e o vizinho cria bois nas suas. Não há uma cerca separando as duas propriedades. Se as vacas podem pastar livremente na plantação de trigo, produz-se carne demais e trigo de menos; o oposto pode ocorrer se é colocada uma cerca, separando as duas propriedades. Se não houvessem custos de negociação envolvidos, os dois proprietários de terra poderiam negociar e chegar a um acordo que permitisse limitar o número de reses pastando nas duas propriedades e maximizar a renda dos dois, com a produção “ótima” – isto é, de valor máximo – de carne e trigo.

A fábrica que lança detritos no lar e impede que as roupas sequem limpas no terreno de uma lavanderia vizinha é outro exemplo de “dilema do prisioneiro” do mundo real. Ou, na ausência de direitos de propriedade bem definidos (terras da União?), a floresta amazônica vai sendo derrubada, pela madeira ou por espaço para plantar soja ou criar gado. Em todos esses casos, o problema é exaurir ou conservar um recurso escasso.

Os “dilemas” têm solução?

Por que Tosca, Cavaradossi e Scarpia, e os dois prisioneiros, não foram capazes de encontrar uma solução cooperativa para os seus dilemas?

Quem sabe, porque talvez não haja solução no caso deles. Garrett Hardin, citado há pouco, quando presidente da Seção do Pacífico da Associação Americana para o Progresso da Ciência, iniciou certa vez uma conferência com as seguintes palavras:6

No final de um penetrante artigo sobre o futuro da guerra nuclear, Wiesner e York concluíram que “ambos os lados da corrida armamentista estão diante do dilema de aumentar progressivamente o poder militar e progressivamente reduzir a segurança nacional. É nossa conclusão profissional que esse dilema não tem solução técnica. Se as grandes potências continuarem a buscar soluções apenas na área de ciência e tecnologia, o resultado será uma situação pior ainda” (ênfase no original).7

Se não é na ciência e tecnologia, onde encontrar uma solução para o dilema? O leitor atento terá observado que não haveria uma segunda oportunidade para Tosca: o blefe levou à morte os três personagens e dela não há retorno. Da mesma forma, após a confissão, os dois prisioneiros não mais teriam a opção do perjúrio para reduzir as penas.

O que ocorreria, contudo, com outras situações (“jogos”) em que fosse possível repetir as interações entre os agentes? Afinal, um grande número – talvez o maior número dos casos da vida real – trata de interações repetitivas entre as pessoas, na vida familiar, no trabalho, na política. Convivemos com nossa família, trabalhamos com os mesmos colegas e votamos a cada quatro anos. Essa constante interação deve criar algum tipo de confiança entre os agentes, que lhes permita com mais segurança cooperar. Pelo menos, com relação às situações de interação única, em que as bases dessa confiança são mais frágeis.

Diversos experimentos com grupos jogando com programas de computador mostram que assim ocorre nessas simulações. Se sabemos que vamos interagir repetitivamente com as mesmas pessoas, tendemos a cooperar e a manter nossas promessas.8 O mesmo parece ser o caso no mundo biológico, se estiver certo Richard Dawkins em seu livro O gene egoísta.9

Hobbes, Rousseau e Hume e os dilemas da cooperação

O que teriam a nos dizer Thomas Hobbes (1588-1679), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e David Hume (1711-1776) a respeito dos dilemas da cooperação?10

Comecemos por Rousseau. O tema da cooperação é tratado por ele no Discurso sobre a desigualdade (1755) na famosa passagem sobre a tribo de caçadores.11 Rousseau descreve uma sociedade primitiva de caçadores, em que os homens vão à caça de um cervo. Ninguém é capaz, sozinho, de caçar um cervo. Para ser bem-sucedida, a técnica de caça consiste em formar um amplo círculo em torno do terreno em que se encontra o animal e em caminhar em direção ao centro do círculo, até que o animal seja forçado a tentar escapar do cordão de caçadores. Se tudo correr bem, o animal será morto ao tentar escapar. Diz Rousseau:

Dessa forma, os homens podem ter imperceptivelmente adquirido alguma idéia geral de empreendimentos mútuos, e das vantagens de realizá-los: isto é, na medida de seus interesses presentes e aparentes: já que estavam longe de se preocupar com o futuro distante, e dificilmente se preocupariam com o amanhã.

Se pretendiam caçar um cervo, cada um percebia que, para ser bemsucedido, ele deve ter em mente a necessidade de permanecer fielmente em seu posto: mas se ocorre que um coelho passa ao alcance de um dos caçadores, sem dúvida ele sairia em perseguição ao roedor sem qualquer escrúpulo. E, tendo alcançado a sua presa, pouco se importaria com o fato de que seus companheiros perderam a sua.12

Extraordinária antevisão. Nela, Rousseau está nos dizendo diversas coisas. Primeiro que os “selvagens” já haviam compreendido os benefícios da cooperação; que “descontavam o futuro” e que não se importavam muito com a questão da reputação; e que cada caçador abandonaria a caça do cervo, de maior retorno, se tivesse a oportunidade de capturar um coelho que lhe passasse perto. Por “descontar o futuro”, preferiam um coelho certo (de pequeno valor) à possibilidade vaga de uma parte de um cervo (de maior valor). Mais importante de tudo, embora reconhecessem o valor da cooperação, estavam dispostos a “desertar” da ação cooperativa ao menor incentivo na direção contrária.

Visto pela linguagem moderna, essa passagem inspirou o jogo conhecido como “A Caça ao Cervo”.13 As hipóteses do jogo são as seguintes: os caçadores têm a opção da caça ao cervo ou da caça ao coelho. As chances de caçar um coelho não dependem do que façam os demais caçadores. Não há possibilidade de alguém caçar sozinho um cervo. A probabilidade de ser bem-sucedido na caça ao cervo aumenta com o número de caçadores envolvidos. Um cervo vale muito mais que um coelho. O dilema de cada caçador está em se manter junto aos demais caçando o cervo ou abandonando o grupo, para caçar um coelho.

A situação aqui é diferente da observada no “dilema do prisioneiro”. No “dilema”, o conflito ocorre entre a racionalidade individual – que aconselha confessar – e o benefício mútuo. A cooperação no ‘dilema’ requer a suspensão da racionalidade individual e a escolha por menos, em lugar de mais. É como se a decisão do outro não tivesse valor sobre a decisão de cada um.

Na “caça ao cervo”, a escolha racional de cada um depende do que julgar que os outros vão fazer. Só vale a pena fazer parte de um grupo para cercar e abater um cervo se os demais tiverem o mesmo objetivo – da mesma forma que só vale a pena jogar futebol, com o objetivo de ganhar, se todo o time pretende ganhar.

Por essa característica, a caça ao cervo envolve uma decisão de risco, já que não é possível saber de antemão se todos vão cooperar ou não. Por outro lado, a decisão de caçar um coelho não tem risco, já que os potenciais ganhos envolvidos são independentes da decisão dos demais. O preço dessa opção pelo não risco é abster-se do ganho potencial de uma caça ao cervo bem-sucedida. Portanto, diferentemente do “dilema do prisioneiro”, na caça ao cervo os caçadores racionais se deparam com o dilema do benefício mútuo versus o risco pessoal.

Consideremos agora Hobbes. No “estado de natureza”, aquela situação de “guerra de todos contra todos”, nos diz Hobbes, a vida é “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.14 Não há espaço para a cooperação entre os indivíduos; pior, não há também incentivos para a justiça – cuja natureza “consiste no cumprimento dos pactos válidos”, isto é, das promessas e contratos.

É o que Hobbes nos diz no Capítulo 15 do Leviatan, que trata da justiça e da injustiça. Diz ele:

Em seu foro íntimo, o Tolo diz que a justiça é coisa que não existe, e às vezes dizem-no também com a língua, alegando com toda a seriedade que, estando a conservação e a satisfação de cada homem entregue ao seu próprio cuidado, não pode haver razão para que cada um deixe de fazer o que supõe conduzir a esse fim, e que fazer ou deixar de fazer, cumprir ou deixar de cumprir os pactos (covenants) não é contra a razão, nos casos em que contribui para o próprio benefício. Não pretendem, com isso, negar que existem pactos, e que os pactos são umas vezes desrespeitados e outras são cumpridos, e que seu desrespeito pode ser chamado de injustiça, e sua observância, justiça. Perguntam se a justiça, pondo de lado o temor a Deus porque esses mesmos tolos disseram em seu foro íntimo que Deus não existe, não poderá às vezes concordar com aquelamesma razão que dita a cada um seu próprio bem, sobretudo quando ela produz um benefício capaz de colocar um homem numa situação que lhe permite desprezar, não apenas os ultrajes e censuras, mas também o poder de outros homens.15

E diz mais adiante:

Quem declarar, portanto, que considera razoável enganar aos que o ajudam não pode razoavelmente esperar outros meios de salvação senão os que dependem de seu próprio poder. Então, quem quebra seu pacto, e ao mesmo tempo declara que pode fazê-lo de acordo com a razão, não pode ser aceito por qualquer sociedade que se constitua em vista da paz e da defesa, a não ser devido a um erro dos que o aceitam.16

De acordo com Hobbes, o problema do Tolo é ignorar o futuro. Ao fazê-lo, age como o selvagem caçador de Rousseau. Não deveria surpreender; ambos estão no mesmo “estado de natureza”.

Consideremos, por fim, Hume. A sua conhecida “convenção” dos remadores acha-se inserida no seguinte trecho:

E isso pode ser apropriadamente chamado um convenção ou acordo entre eles, embora sem a interposição de uma promessa; já que as ações de um de nós têm como referência as do outro e são desempenhadas sob essa suposição, a de que algo seja desempenhado pela outra parte. Dois homens que remam em um bote o fazem por um acordo ou convenção, embora nada tenham prometido um ao outro.17

As opções entre os remadores (“promitentes”) são remar ou não remar. Obviamente, a melhor opção para os dois é remar (supostamente, na mesma direção). Quando ambos decidem cooperar (remar), estão na mesma situação dos caçadores em busca do abate de um cervo. Mas um deles pode decidir não remar, o que torna irrelevante a decisão do outro de remar ou não. E, se você opta por remar, estará no pior dos mundos possíveis, em uma situação similar a do caçador de cervos que é abandonado pelos demais.

Também a conhecida passagem do dreno do pântano, nesse fundamental livro terceiro do Tratado de Hume, emplifica uma “caça ao cervo”:

Dois vizinhos podem concordar em drenar um pântano, que possuem em comum; porque é fácil para eles saber o que se passa na mente um do outro, e cada um pode perceber que a conseqüência imediata de alguém deixar de cumprir a sua parte é o abandono do projeto como um todo. Mas é difícil, de fato impossível, que milpessoas concordariam com uma tal ação. 18

Nesta passagem está novamente colocado o problema da cooperação, mas se introduz também a questão da confiança entre os parceiros, que para Hume é inversamente proporcional ao número dos participantes e ao conhecimento que eles têm de si próprios.19

Um último exemplo, é extraído desta vez do capítulo do Tratado apropriadamente intitulado “Das obrigações decorrentes de promessas”. Nele, Hume questiona a racionalidade de honrar compromissos ou de confiar que outros venham a honrá-los. 20

Dois fazendeiros vizinhos esperam uma grande safra de milho. Cada um dos fazendeiros se dá conta de que, quando seu milho amadurecer, ele precisará da ajuda do vizinho para a colheita, caso contrário uma parte substancial da sua colheita vai apodrecer no campo. Como o milho de cada um dos fazendeiros amadurecerá em momentos diferentes, os dois fazendeiros poderão colher todo o milho das duas fazendas caso venham a se ajudar mutuamente na colheita. Contudo, Hume nos assegura de que um raciocínio prudente leva os fazendeiros a trabalhar cada um somente em sua propriedade, sabendo que poderiam ter usufruído de um substancial benefício mútuo se tivessem trabalhado juntos!

Com a palavra Hume, justificando o comportamento “egoísta” de cada um dos fazendeiros:

O seu milho está maduro hoje; o meu estará maduro amanhã. É proveitoso para nós dois que eu trabalhe contigo hoje, e que me ajudes amanhã. Não tenho qualquer afeição por vós, e sei que nutres por mim o mesmo sentimento. Não pretendo, portanto, fazer qualquer esforço em seu favor; e se por acaso eu decidisse trabalhar contigo por minha própria conta e risco, na expectativa de um retorno, sei que me desapontarias, e que em vão dependeria de sua gratidão. Portanto, deixo-o trabalhar sozinho: tu que me trates da mesma maneira. As estações mudam; e ambos perdemos nossas colheitas por falta de confiança e segurança mútuas.21

Em vista do exposto anteriormente, não é difícil perceber que o “dilema do fazendeiro” descrito acima é formalmente similar à proposição do Tolo de Hobbes, com uma diferença. Recorde-se que o Tolo afirma que é irracional manter compromissos mutuamente benéficos que requerem de alguém servir a outro depois que este já honrou seu compromisso, atendo-se ao acordado. Já em Hume, trata- se de uma posição ex ante qualquer ação por qualquer das partes.

À guisa de conclusão: muitos dilemas têm solução

Quando o “jogo do fazendeiro” é jogado uma única vez por agentes que sabem que ambos agirão para obter o maior benefício individual, o “dilema do fazendeiro” tem uma única solução, correspondente à conclusão de Hume de que os fazendeiros estão condenados, cada um, a ver o seu milho apodrecer no campo.22

Contudo, observamos no mundo à nossa volta mais cooperação que conflito. Foi essa cooperação que promoveu o progresso e tornou possível a civilização. Como explicá-la?

As observações do último parágrafo já indicam o caminho para a solução de muitos dilemas: “quando o ‘jogo do fazendeiro’ é jogado uma única vez...” Jogos repetitivos têm outra característica, permitindo a emergência da confiança entre os agentes.

Hume constata que no “dilema dos fazendeiros” os agentes são vizinhos e assim permanecerão talvez pela extensão de suas vidas; e que cada colheita está inserida em um contexto temporal mais amplo, iterativo, que ocorre anualmente. Esse fato, em si, não explica a cooperação. A segunda premissa é que deve desenvolver-se entre os agentes uma confiança mútua que permita que os ganhos da cooperação sejam obtidos. A chave para o desenvolvimento dessa confiança são as convenções ou normas de uma comunidade com relação a promessas, que torna possível a interação entre agentes racionais auto-interessados. Para tanto, o ponto-chave para manter as promessas feitas são as sanções aplicáveis aos que as descumprirem. Diz Hume:

Aprendo a prestar um serviço a um terceiro, sem ter por ele qualquer afeto; porque antevejo que ele me retornará o serviço, na expectativa de outro da mesma espécie e de forma a manter a mesma correspondência de bons ofícios comigo e com os outros. Consequentemente, depois de servi-lo, e de posse da vantagem resultante de minha ação, ele é induzido a desempenhar a sua parte, antevendo as conseqüências de sua negativa.23

No fim das contas, o primeiro fazendeiro do “dilema” não estará sendo irracional se ajudar o segundo a colher seu milho; mas o segundo deverá pensar muito, antes de deixar de reciprocar o favor recebido. Está em jogo não somente o seu relacionamento com o vizinho, mas a sua reputação perante toda a comunidade.

Se cada fazendeiro elege cooperar na medida em que espera que o outro fazendeiro faça o mesmo, e isso é de conhecimento dos dois, os fazendeiros estarão seguindo uma convenção de cooperação condicional. Para Hume, uma convenção é um padrão de comportamento social mutuamente benéfico apoiado nas expectativas dos agentes de que todos agirão de forma cooperativa. Nas palavras de Hume:

Cada membro da sociedade é sensível aos seus interesses: cada um expressa esse sentimento aos seus co-cidadãos, juntamente com a decisão de ajudá-los sob a condição de que os outros façam o mesmo. Nada mais é necessário para induzir qualquer deles a desempenhar um ato de justiça, na primeira oportunidade. Isso se torna um exemplo para os outros. E assim a justiça se estabelece por si mesma por um tipo de convenção ou acordo; isto é, por um senso de interesse, supostamente comum a todos, sob o qual cada ato individual é feito na expectativa de que os outros façam o mesmo.24

Por definição, uma convenção é auto-aplicável; como cada um espera que o outro se atenha à sua ponta da convenção, essa é uma razão suficiente para que todos os agentes sigam a convenção.25 Não é necessário o Soberano hobbesiano para impor o contrato social.

O contrato, pensa Hume, não pode explicar a força de nossas obrigações morais porque estas se baseiam na obrigação que temos de manter nossas promessas. Em um ensaio clássico, Do Contrato Original, Hume argumenta que a tradição do contrato social se baseia na idéia de que se deve obedecer ao Soberano porque assim o prometemos. 26 Essa explicação, para ele, é vazia, porque não responde à questão mais básica do porque devemos honrar nossa palavra.

Essas considerações esgotam a questão? Seguramente não, de acordo com Hume. Um malandro percebe que a cooperação mútua traz grandes benefícios, mas também percebe que às vezes ele pode prosperar mais ainda pelo engano, sem ameaçar o esquema de cooperação mútua (no jargão moderno, se comportando como um free rider). O malandro concorda que “a honestidade é a melhor política, em geral”, mas também vê que pode nem sempre ser a melhor política para si. Escreve Hume:

Que a honestidade é a melhor política, pode ser uma boa regra geral, mas pode ter muitas exceções; e ele, pode-se talvez pensar, se conduz com a máxima sabedoria, se observa a regra geral, e tira vantagem de todas as exceções.27

Hume não nos dá uma solução para esse conflito remanescente de free riding entre o interesse próprio e os ganhos da cooperação mútua. Considera que o malandro sacrifica o “bem comum” por “brinquedos sem valor e enfeites”, em suas palavras. E, como filósofo moral, apenas exorta o comportamento cooperativo, no fundo sabendo que a natureza humana fez de todos seres imperfeitos.

Notas

1 Tucídides. A guerra do Peloponeso, Livro I, seção 141; Aristóteles, Política, Livro II, Capítulo III, 1261b.

2 Matt Riddley. The Origins of Virtue: Human Instincts and the Evolution of Cooperation. New York: Penguin, 1996, p. 53.

3 Idem, ibidem.

4 O jogo foi desenvolvido na década de 1950 na RAND Corporation. Seu objetivo era a análise das opções estratégicas de defesa dos Estados Unidos em uma possível guerra nuclear. Seus autores foram Merrill Flood e Melvin Dresher. O nome que consagra o jogo foi dado por Albert W. Tucker, que o formalizou.

5 Garret Hardin. The Tragedy of the Commons, Science 162, 13 de dezembro de 1968, p. 1243-1248; Ronald Coase, The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics, 3, outubro de 1960, p. 1-44. A solução de uma “tragédia dos comuns” produz uma solução diferente do exemplo do “dilema do prisioneiro”, como constatarão os praticantes da teoria dos jogos. Mais apropriadamente, as “tragédias dos comuns” – e especialmente os casos envolvendo poluição – podem ser mais bem caracterizados como situações de free riding.

6 Utah State University, Logan, 25 de junho de 1968. A conferência deu origem ao artigo mencionado na nota anterior.

7 J. B. Wiesner e H. F. York, Sci. Amer. 211 (n. 4). 27, 1964.

8 Robert Axelrod. The Evolution of Cooperation. New York: Basic Books, 1984. No programa de jogo chamado “Tit-for-Tat”, a estratégia é simples: os parceiros cooperam na primeira rodada e subsequentemente cada jogador repete a jogada anterior do parceiro. Com essa estratégia os parceiros atingiram o maior escore em simulações nas simulações de estratégias alternativas com computadores efetuadas por Axelrod.

9 Richard Dawkins. The Selfish Gene. New York: Oxford University Press, 1989.

10 O tratamento segue aqui o de Brian Skyms. Evolution of the Social Contract. Cambridge: University Press, 1996.

11 Jean-Jacques Rousseau. A Discourse on Inequality [1755]. Harmondsworth: Penguin, 1984, Parte 2, 8º parágrafo.

12 Rousseau, op. cit., p. 111.

13 Stag Hunt, na literatura em inglês.

14 Thomas Hobbes. [1651] Leviathan. Harmondsworth: Penguin Classics, 1982, Cap. 13. Edição brasileira: São Paulo, Martin Claret, 2006.

15 Hobbes, op. cit., Capítulo 15, p. 112 da edição brasileira.

16 Hobbes, op. cit., p. 113.

17 David Hume. Treatise, III.2.2.

18 David Hume. Treatise, III.2.7.

19 É impossível deixar de mencionar nesse ponto o poema de Robert Frost, “Mending Wall”, corroborando a afirmação de Hume.

20 David Hume. Treatise, III.1.5.

21 David Hume. [1739] A Treatise of Human Understanding. New York: Oxford University Press, 2007. Livro III, Parte I, Seção V. Hume antecipou, nessa passagem, o que veio a ser conhecido, já na década de 1950, pelo pitoresco nome de “dilema do prisioneiro assíncrono”. Ver: Brian Skyrms. The Stag Hunt and the Evolution of Social Structure. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

22 Peter Vanderschraaf. Hume’s game-theoretic business ethics. Business Ethics Quarterly 9, nº 1, janeiro de 1999, p. 47-67.

23 Hume, Treatise, III.2.5.

24 Hume, Treatise, III,2.2.

25 Ver, a respeito, Brian Skyms, “The Shadow of the Future”. In: Jules L. Coleman e Christopher W. Morris. Commitment and Social Justice: Essays for Gregory Kavka. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 12-22.

26 David Hume. Essays, Moral, Polítical, and Literary. Indianápolis: Liberty Fund, 1987, Parte II, Ensaio 12.

27 David Hume. Enquiry Concerning the Principles of Morals. New York: Oxford University Press, 1975, Seção III, Parte II.

Palestra pronunciada em 15 de maio de 2007 pelo Dr. Roberto Fendt.


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