quinta-feira, 19 de junho de 2008

A construção das Pirâmides


As Pirâmides do Egito sempre foram alvo de espanto e admiração. Atualmente, aproximadamente oitenta pirâmides são conhecidas, sendo as maiores e mais bem preservadas localizadas em Gizé. Apesar de terem uma arquitetura relativamente simples, o seu tamanho impressionante alimentou o surgimento de uma série de teorias fantásticas sobre sua construção, envolvendo poderes mágicos, alienígenas e outras entidades misteriosas.

Uma das alegações por trás de todas estas especulações é a de que as grandes pirâmides são obras tão avançadas que nem a nossa engenharia moderna seria capaz de reproduzí-las. Outra idéia bastante difundida é a de que as dimensões das pirâmides esconderiam inúmeros conhecimentos que não estariam ao alcance das civilizações da época. Será?

As primeiras pirâmides

Enviar artigo Assim como muitas outras culturas, antigas e modernas, os antigos egípcios acreditavam na vida após a morte. Uma particularidade da cultura egípcia, porém, era a idéia de que a vida no plano espiritual era uma continuação da vida terrena, com as mesmas necessidades materiais. Desta forma, os egípcios colocavam em suas tumbas artigos decorativos, jóias, comida, ferramentas e outras provisões que viriam a ser úteis após sua morte.


Os egípcios comuns eram enterrados no deserto, com seus corpos simplesmente enrolados em tecido e acompanhados por poucos objetos e comida. Cidadãos mais ricos, como artesãos, podiam arcar com os custos da mumificação (a preservação do corpo também era importante para a vida após a morte) e da construção de um túmulo. Nobres e outros egípcios muito ricos eram enterrados em estruturas chamadas "mastabas" - uma câmara subterrânea embaixo de uma pequena capela na forma de um banco.

mastaba

Mas os faraós e suas rainhas mereciam mais. Por volta de 2630 a.C., a partir da estrutura básica da mastaba, o sacerdote Imhotep projetou um complexo mortuário para o faraó Djoser que viria a ser a primeira pirâmide. Empilhando seis mastabas em tamanho decrescente, Imhotep construiu uma pirâmide em degraus. Como as pirâmides mais conhecidas, continha inúmeras salas e passagens, bem como a câmara mortuária do faraó.

Pirâmide em degraus

A evolução para as pirâmides de paredes externas lisas não aconteceu sem problemas. Fracassos famosos incluem a "pirâmide torta" e a pirâmide de Meidun, ambas atribuídas ao reinado do faraó Snefru (2575-2551 a.C). A pirâmide de Meidun era originalmente composta por sete degraus, mais tarde aumentados para oito. Posteriormente os degraus foram cobertos de forma a criar uma superfície externa lisa, mas a cobertura desmoronou (não se sabe ao certo quando) devido à inclinação grande demais das paredes. A pirâmide torta, por sua vez, apresenta uma mudança brusca em sua inclinação, para qual existem duas teorias. Os arquitetos teriam se assustado com o fracasso da pirâmide de Meidun ou então decidiram acabar a pirâmide mais rapidamente.

Pirâmide de Meidun Pirâmide torta

Apesar destes percalços, foi ainda no reinado de Snefru que a primeira pirâmide verdadeira bem-sucedida foi construida - a Pirâmide Vermelha, onde ele viria a ser enterrado. Depois da Grande Pirâmide de Gizé (que seria construída pelo filho de Snefru, Quéops), a Pirâmide Vermelha tem a maior base de todas as pirâmides do Egito, mas devido à sua menor inclinação é apenas a quarta mais alta. Seu nome comum deriva da cor do calcáreo utilizado em sua estrutura. A maior parte de sua cobertura não foi preservada, mas alguns dos pedaços que sobraram contém inscrições que permitem estimar o tempo gasto na construção da pirâmide - aproximadamente 17 anos.

Pirâmide vermelha


A grande pirâmide de Quéops

Quéops, filho de Snefru, deu continuidade às tendências construtivas de seu pai de forma impressionante. Sua pirâmide, construída em Gizé, é a maior de todas as pirâmides egípcias, com uma altura original de 145 metros, permanecendo como a mais alta estrutura construída pelo homem até o século XIX. Seu peso total seria, originalmente, por volta de 6.000.000 de toneladas, sendo composta por um milhão de blocos de pedra montados ao longo de 20 anos. Revestida com uma cobertura de mármore (que foi desgastada e/ou removida ao longo do tempo) e com um bloco de metal brilhante (ouro ou uma mistura de ouro e prata) em seu ápice, a pirâmide de Quéops era cercada por um complexo de estruturas que incluiam pirâmides menores para suas rainhas e mastabas para os nobres de sua corte.


Grande Pirâmide de Quéops

Após Quéops, as pirâmides continuaram a ser construídas por mais de mil anos, mas em versões mais modestas. Seu filho, Quéfren, e seu neto, Miquerinos, construíram suas pirâmides também em Gizé. Quéfren se esforçou para ofuscar o feito de seu pai. Sua pirâmide, ainda que menor, aparenta maior tamanho devido à sua inclinação e por estar baseada em solo mais alto, sendo às vezes confundida com a Grande Pirâmide.

Pirâmides de Gizé

Ao longo dos séculos seguintes, as pirâmides passaram a ser construídas de forma mais simples e padronizada. Materiais menos resistentes levaram a seu desgaste mais rápido e a maior parte se encontra em péssimo estado. Com uma menor disponibilidade de materiais e a evolução teológica da cultura egípcia, as pirâmides foram eventualmente abandonadas e substituídas por templos mortuários como os encontrados na cidade de Tebas e no Vale dos Reis, onde foi descoberta, por exemplo, a famosa tumba do faraó Tutancamon.


Métodos de construção

Desde a época da Grécia antiga, as técnicas de construção das pirâmides têm sido objeto de amplas discussões. Poucos textos egípcios originais sobreviveram ao tempo e o nosso conhecimento sobre os métodos empregados naquela época deriva em grande parte de descobertas arqueológicas.

O primeiro relato da construção das pirâmides, neste caso da Grande Pirâmide de Gizé, foi feito pelo historiador grego Heródoto (484?-425 a.C.). Segundo Heródoto, esta pirâmide teria levado 20 anos para ser construída, por 100.000 escravos, com o uso de máquinas mecânicas. Hoje em dia, acredita-se que boa parte do relato de Heródoto seja impreciso, até porque ele visitou o Egito mais de 20 séculos depois da construção daquela pirâmide.

A construção de uma pirâmide envolvia várias etapas, incluindo o nivelamento do terreno, o alinhamento da base da pirâmide com os pontos cardeais, o corte dos blocos de pedra (e seu transporte até o local de construção) e o empilhamento dos blocos. O alinhamento da pirâmide e o mecanismo utilizado para elevar os pesados blocos de pedra são normalmente as fases consideradas mais "misteriosas", mas podem ser facilmente explicadas.

O alinhamento de uma construção em relação aos pontos cardeais ou a astros celestes não é nenhuma novidade quando falamos de estruturas antigas. Conhecimentos básicos de astronomia eram comuns a vários povos antigos, em vista de sua utilidade na agricultura ou conotações religiosas. Vários métodos simples são conhecidos para determinar a direção do norte a partir dos astros (e possivelmente os antigos usavam outros métodos nos quais ainda não pensamos) e os egípcios o faziam com um erro de menos de meio grau.

Determinar a direção do norte geográfico pode ser feito com facilidade a partir do movimento das estrelas ou do Sol. As estrelas fornecem um resultado mais preciso. Basta escolher uma estrela conveniente, marcar as direções no horizonte onde ela nasce e se põe e determinar o ponto médio entre elas. Outra opção seria basear-se em uma estrela polar, que por estar diretamente sobre o pólo permanece fixa enquanto a Terra gira. A partir da direção de referência, alinhada com o norte, a base quadrada da pirâmide era então montada usando-se novamente técnicas simples para a construção de linhas perpendiculares. Por exemplo, cordas podiam ser usadas para traçar dois círculos centrados ao longo da linha base e sua interseção definiria uma linha perpendicular à linha base.

Determinando o norte Traçando perpendiculares

As pirâmides eram, em sua maior parte, construidas de blocos de calcário retirados de pedreiras a vários quilômetros de distância. Uma vez cortados, os blocos eram transportados em trenós puxados por animais, em cima de "pistas" cobertas com barro para diminuir o atrito. Rodas seriam inúteis neste caso, já que afundariam na areia.

E como os blocos eram posicionados na estrutura da pirâmide? Em primeiro lugar, deve ser lembrado que os egípcios construíram pirâmides ao longo de aproximadamente mil anos, variando em local, dimensões e forma. Assim, o mais provável é que inúmeras variantes tenham sido empregadas, de acordo com os problemas particulares de cada construção. Heródoto acreditava que dispositivos mecânicos (alavancas, roldanas, etc) eram usados para levantar os blocos em conjunto com andaimes de madeira. Mais tarde, outro estudioso grego, Diodorus Siculus, sugeriu que grandes rampas teriam sido utilizadas, ao longo dos quais os blocos seriam puxados.

Atualmente, acredita-se que combinações dos dois métodos tenham sido utilizadas, variando de acordo com a pirâmide em questão. Sabe-se que as rampas realmente eram empregadas, já que restos destas estruturas (em alguns casos, até rampas completas) foram encontradas em vários locais. Os indícios encontrados mostram também que diferentes estilos de rampas eram usados, de acordo com a necessidade. Vários estilos, lineares e espirais, foram propostos por diferentes estudiosos. Os dispositivos propostos por Hérodoto poderiam ser usados apenas no deslocamento de peças menores e não dos blocos principais.

rampa rampa

Ao contrário do que muitos pensam, sabe-se hoje que as pirâmides não foram construídas por escravos. Acredita-se que aproximadamente 5.000 trabalhadores especializados trabalhavam ao longo do ano, apoiados por mais 20.000 trabalhadores temporários que trabalhavam apenas alguns meses por ano. Muitos desses eram provavelmente fazendeiros que ficavam ociosos durante parte do ano em função das cheias do rio Nilo.


As teorias alternativas

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Para muitos, o conhecimento obtido a partir dos estudos arqueológicos das pirâmides sobreviventes não parece ser convincente e inúmeras teorias mais criativas foram sugeridas ao longo dos anos. As variações destas teorias são tantas que apenas alguns exemplos mais representativos serão abordados neste artigo.

Estas teorias, em geral, baseiam-se na idéia de que os verdadeiros construtores das pirâmides foram extraterrestres ou membros de civilizações perdidas (como Atlântida). As justificativas empregadas pelos defensores destas teorias, dos quais os mais famosos são Erich Von Daniken e Zecharia Sitchin, incluem uma suposta impossibilidade de se construir aquelas estruturas com a tecnologia egípcia da época e a suposta existência de relações misteriosas entre as dimensões da Grande Pirâmide e constantes físicas ou matemáticas desconhecidas pelos egípicios.

As seções anteriores deste artigo abordaram como os egípcios poderiam construir as pirâmides com sua tecnologia simples. É difícil fazer o mesmo com as teorias extraterrestres, já que estas não fornecem muitas informações a respeito das técnicas de construção que teriam sido utilizadas pelos alienígenas. Escavações arqueológicas encontraram inúmeras gravuras dos egípcios usando suas ferramentas primitivas, bem como restos destas ferramentas, mas não se pode dizer o mesmo das "ferramentas" alienígenas. Se extraterrestres estiveram na Terra construindo as pirâmides, eles fizeram um bom trabalho de esconder seus rastros.

As teorias de Von Daniken, Sitchin e outros baseam-se principalmente em interpretações discutíveis de mitos antigos e não são levadas a sério pelos arqueólogos. Von Daniken acredita que a Terra tenha sido visitada regularmente por alienígenas, que seriam os deuses mencionados nos mitos e lendas de várias civilizações antigas ("Chariots of Gods: Unsolved Mysteries of the Past", disponível em português como "Eram os deuses astronautas"?). Sitchin defende uma teoria de que a raça humana (Homo sapiens) teria sido criada por engenharia genética através da combinação do DNA do Homo erectus com o DNA de uma raça alienígena habitante de um planeta ainda não descoberto no Sistema Solar. Esta raça teria criado o homem para trabalhar como escravo na mineração de ouro na Terra, eventualmente abandonando nosso planeta e deixando nossa raça para trás ("The Twelfth Planet"). As teorias egípcias destes autores podem ser encontradas em seus livros "The Eyes of the Sphinx: The Newest Evidence of Extraterrestrial Contact in Ancient Egypt", de Von Daniken e "The Stairway to Heaven (Earth Chronicles No. 2)" (disponível em português como "A escada para o céu"), de Sitchin.

Outro nome de destaque neste campo é o de Edgar Cayce, que sustentava a teoria de que as pirâmides haviam sido construídas pelos habitantes de Atlântida. Segundo Cayce, os "atlanteanos" teriam migrado para o Egito por volta de 10.000 a.C., levando com eles as crônicas dos 40.000 anos de história de sua civilização. Estas crônicas estariam guardadas em uma pirâmide subterrânea ainda não descoberta, perto da Esfinge. As teorias de Cayce podem ser encontradas em um livro escrito por seu filho, "Mysteries of Atlantis Revisited".

A localização e as dimensões da Grande Pirâmide são outra fonte de especulações. Robert Bauval, autor de "The Orion Mystery: Unlocking the Secrets of the Pyramids" sustenta a teoria de que as três pirâmides de Gizé foram construídas de forma a reproduzir a posição relativa das três estrelas do chamado cinturão de Órion, uma constelação que teria importância religiosa para os egípcios. Além disso, a posição das pirâmides em relação ao rio Nilo seria uma reprodução da posição daquelas estrelas em relação à Via Láctea. Mas o próprio Bauval percebeu que, devido à mudança das posições das estrelas no céu com o passar dos séculos, esta coincidência com o cinturão de Orion não existia na época da construção das pirâmides, mas sim por volta de 10.500 a.C. (8.000 antes delas serem construídas). A conclusão de Bauval: as pirâmides de Gizé foram planejadas oito mil anos antes de serem construídas! Neste caso, mais surpreendente que a capacidade dos egípcios de construir as pirâmides seria sua capacidade de arquivar seus projetos... Bauval prossegue então para várias conclusões a respeito de relações culturais entre Órion e deuses gregos, apesar de as e strelas em questão só terem sido grupadas no que chamamos de constelação de Órion pelos gregos, dois mil anos depois. Uma teoria mais simples para a posição relativa das pirâmides é apresentada por Derek Hitchins, que chama a atenção para o fato de que as pirâmides estão perfeitamente alinhadas, se ao invés de considerarmos suas diagonais, considerarmos os seus cantos. Segundo Hitchins, a localização das pirâmides estaria na verdade relacionada com sua visibilidade a partir do rio Nilo, por onde viajantes chegariam à região.

Pirâmides de Gizé Cinturão de Órion

As dimensões da Grande Pirâmide fornecem especulações igualmente fracas. Uma boa análise destas teorias pode ser encontrada no livro "Fads and Fallacies in the Name of Science", de Martin Gardner. Dois tipos de teorias podem ser encontradas. O primeiro relaciona dimensões da pirâmide com distâncias astronômicas (distância da Terra ao Sol, diâmetro da Terra, etc) que seriam desconhecidas pelos egípcios. Estas distâncias teriam sido inseridas propositalmente no projeto pelos construtores reais das pirâmides. Mas como Gardner explica, qualquer estrutura complexa como a Grande Pirâmide fornece uma quantidade tão grande de medidas que, com um pouco de paciência, é sempre possível encontrar estas coincidências. Além disso, as medidas originais da Grande Pirâmide não são conhecidas com exatidão, bem como as unidades de medida usadas pelos egípcios, e diferentes pesquisadores apresentam diferentes valores. E os dados científicos aos quais elas são comparadas também fornecem múltiplas oportunidades. Por exemplo, a distância da Terra ao Sol não é constante, então podemos usar o menor valor, o maior valor, a média, o valor em uma determinada data simbólica, etc. Um exemplo bem humorado de como isto ser feito pode ser encontrado no site Humor na Ciência.

Outro tipo de coincidência encontrada nas dimensões da Grande Pirâmide refere-se a constantes matemáticas como pi e a razão áurea. Mas mais uma vez, isto não é surpresa. Jim Loy mostra como estas constantes podem ser encontradas em praticamente qualquer pirâmide, com uma razoável exatidão. Por exemplo, em uma pirâmide que tenha a razão entre sua altura e a largura da base igual a 0,6 a razão entre sua altura e a diagonal da base será um quarto da razão áurea (e a razão entre a altura e a largura da base de uma de suas faces triangulares é igual a pi/4). No caso da Grande Pirâmide, que tem uma razão altura/largura da base igual a 0,636, o inverso desta razão é igual a pi/2.


Conclusão

Por mais interessantes que sejam as teorias fantásticas sobre a construção das pirâmides egípcias, fica claro que não existe nada de inexplicável em sua existência. A forma piramidal é a mais simples para a construção de grandes estruturas e as pirâmides remanescentes mostram claramente a evolução técnica dos engenheiros egípcios. A Grande Pirâmide não é uma estrutura isolada, surgida misteriosamente do nada, e sim o resultado de gerações de aperfeiçoamento de técnicas simples de construção. Ainda que várias dúvidas persistam sobre os detalhes de sua construção, as teorias alternativas na verdade levantam mais perguntas do que respostas.

Talvez por estarem acostumados às facilidades da tecnologia moderna, muitas pessoas tendem a achar que os povos antigos eram incapazes de feitos grandiosos com seus recursos técnicos limitados. Ao contrário, eles fornecem mais uma demonstração da inventividade e capacidade humana e é injustificável sugerir que os egípcios seriam incapazes de construir uma pirâmide sem a ajuda de extraterrestres, fadas ou outros seres fantásticos.


http://www.projetoockham.org

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Uma discórdia familiar


Irmãos de sangue e parceiros no ódio, árabes e judeus digladiam-se na Terra Santa desde o final do século XIX. É um trágico e visceral embate que tem tudo para acabar mal.

Reza o Velho Testamento que Abraão recebeu de Deus, por volta dos 75 anos de idade, o chamado para se mudar de mala e cuia para os rincões de Canaã, com a promessa de que seus descendentes dariam origem ali a uma grande nação. Dez anos depois, porém, já estabelecido na nova terra, o longevo migrante ainda não havia conseguido gerar a tão esperada prole. Sara, a esposa, o instigou a desposar sua serva, a egípcia Agar, para fazer valer o desígnio divino – união que produziu o menino Ismael. Quando o rapagote completava seu 13º aniversário, Abraão, já com 99 anos, teve outro encontro com Deus, que reiterou a promessa feita anteriormente e garantiu que a posteridade de Abraão sairia das entranhas de Sara. Dito e feito: no ano seguinte veio ao mundo Isaac, filho do centenário porém fecundo patriarca.

Na festa de apresentação de Isaac, contudo, Sara viu o primogênito zombando do caçula, e ordenou ao marido que expulsasse Agar e Ismael de seus domínios. A idéia de desterrar o sangue do seu sangue não agradou a Abraão, que apenas levou a cabo a ação por ter a garantia de Deus que seu filho com a escrava também teria um destino fabuloso, iniciando outra grande nação. Assim, fornecendo um pão e um odre de água a Agar e Ismael, o patriarca mostrou-lhes o caminho da rua logo na manhã seguinte. Ambos erraram por algum tempo pelo deserto da Bersabéia, até que Ismael se fixou no deserto da Arábia, produzindo doze filhos – as doze tribos ismaelitas, ancestrais do povo árabe. Do outro lado da família, em Canaã, seu irmão Isaac teve como prole Esaú e Jacó. Os doze herdeiros deste último (rebatizado mais tarde de Israel) compuseram as doze tribos que deram origem ao povo hebreu.

Milênios depois da desavença fundadora entre árabes e judeus, a cizânia entre irmãos voltou a explodir de forma figadal na Palestina, território que engloba a terra mitologicamente prometida por Deus a Abraão. O cenário bélico que hoje se vê no recém proclamado estado de Israel é resultado de uma série de conflitos que remontam ao terceiro quarto do século passado, quando a ideologia sionista, que defendia a criação de um estado judeu independente na Palestina, começou a se propagar pelo mundo e levar os judeus em comboio de volta para o Oriente Médio. Por volta de 1880, antes mesmo que Theodore Herzl organizasse as idéias sionistas em livros e congressos, os primeiros imigrantes já desembarcavam na Palestina, então uma província do Império Otomano, na primeira das muitas ondas de imigração hebraica – movimentos conhecidos como Aliyah, ou "ascensão".

Com elas, em pouco mais de 30 anos, o número de judeus na Palestina quase quadruplicou: de 24.000 em 1881 para 85.000 em 1914. A maioria desses pioneiros chegava em fuga do império russo, onde reinavam o anti-semitismo e os temíveis pogroms, ataques praticamente oficializados contra as minorias. Os imigrantes judeus se enraizaram no Oriente Médio em comunidades agrícolas, em terrenos comprados de senhores de terras otomanos e árabes. Mesmo estabelecida de forma legal, a presença dos pioneiros causou desde o primeiro dia uma tensão latente entre judeus e árabes palestinos. Assaltos destes últimos contra assentamentos hebreus levaram seus líderes a montar, por volta de 1910, uma força de defesa, batizada Hashomer (guardiões), que viria a ser o embrião do exército judeu.

O ápice das hostilidades - Com a eclosão da Grande Guerra, em agosto de 1914, milhares de árabes e judeus, colocando-se do lado das forças aliadas, pegaram em armas na esperança de que o domínio otomano na Palestina chegasse ao fim. O clima beligerante fortaleceu o sentimento nacionalista dos árabes, que ganhou ainda mais corpo depois da ira generalizada que se sucedeu ao anúncio da Declaração de Balfour, em 1917 – na qual a Grã-Bretanha afirmava estar pronta para apoiar a criação do estado judeu na Palestina, possibilidade jamais admitida pelos árabes. Com o fim da guerra e a concessão do mandato na Palestina à potência européia, uma escalada de violência tomou conta da região, para desespero dos súditos da rainha, perdidos em meio ao fogo cruzado entre os locais. Ataques de árabes a judeus, como o de Nabi Musa, na Cidade Velha de Jerusalém, em 1920, ou em Jaffa, no ano seguinte, ou ainda no chamado massacre de Hebron, em 1929, terminavam com dezenas de mortos e feridos.

Mesmo com as restrições da Grã-Bretanha à entrada de judeus na Palestina, oficializada gradativamente nos diversos Livros Brancos (políticas que limitavam a imigração), o plano sionista de montar seu estado não arrefeceu – pelo contrário. Em compensação, na mesma medida seguiram as campanhas árabes, insufladas por líderes religiosos como o Grande Mufti de Jerusalém e milícias como a Mão Negra. Eram respondidas à altura por ataques de grupos armados judeus, notadamente o Irgun. As hostilidades alcançaram seu ápice na chamada Revolta Árabe na Palestina, iniciada em 1936. Os revoltosos queriam a evacuação dos britânicos, eleições imediatas e o fim da imigração judaica. A violência levou à formação da Comissão Peel, que, ao final de um ano de deliberações, recomendou a partilha da Palestina.

O plano, no entanto, foi recusado pelo governo bretão e pelos árabes, e a onda de combates, que havia diminuído, recrudesceu até 1939, quando a revolta foi encerrada por seus líderes sem atingir seu objetivo. Apesar disso, seus mentores consideraram que o movimento teve como mérito fortalecer a identidade árabe-palestina – contra, obviamente, os inimigos comuns (britânicos e judeus). Desde então, a violência entre os antagonistas tem sido incessante. Ataques-surpresa de ambas as partes (não raro covardes, vitimando populações civis) vêm ocorrendo em ritmo espantoso desde o início desta década.

Não houve pausa nem mesmo durante a eclosão da II Grande Guerra, travada entre os Aliados e o Eixo – que representou, em meio à escaramuça na Palestina, um novo fardo para os judeus, atormentados pelos horrores nazistas e sua infausta "solução final". Agora, com a definitiva saída de cena da Grã-Bretanha e a proclamação do estado de Israel, árabes palestinos e judeus engalfinham-se de frente, sem intermediários, em um bate-barba consangüíneo como não se via havia muito tempo. Um choque de ódio que remonta, mais do que ao litígio entre Ismael e Isaac, ao serpentífero confronto de uma outra dupla de irmãos, Caim e Abel. Que esta história tenha um final diferente.

Fonte: www.veja.com.br