segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Progresso e projeto da natureza - Kant

"A natureza quer que o direito obtenha o poder supremo"



Fica agora a questão que interessa o essencial do projeto da paz perpétua: que faz a natureza nesse projeto, relativamente ao fim que a própria razão do homem se propõe como dever? O que ela faz, por conseguinte para favorizar seu projeto moral? Como ela garante que, o que o homem deveria fazer de acordo com as leis de liberdade, mas não o faz, ele o fará com certeza, sem prejudício dessa liberdade, através uma coação da natureza, e isso de acordo com as condições do direito público, do direito dos Estados, do direito das pessoas e do direito cosmopolítico? [....]
Mesmo se o povo não fosse obrigado, sob o efeito de uma dissensão interior, a se submeter à coação de leis públicas, a guerra, do exterior, o obrigaria, portanto. [....] Ora a constituição republicana é a única que seja perfeitamente adequada aos direitos dos homens, mas ela também é a mais difícil a fundar e mais ainda a conservar. [....] Todavia, a natureza vem ajudar a vontade universal, fundada na razão, vontade venerada mas impotente na pratica, e isso justamente através essas inclinações egoístas; assim basta uma boa organização do Estado (que é, sem nenhuma dúvida ao alcance do poder dos homens) para voltar umas contra as outras as forças dos homens de uma maneira tal que uma ou impeça o efeito destruidor das outras, ou o suprima; dessa maneira para a razão, o resultado é o mesmo que se as forças opostas não existissem, e assim o homem, mesmo se ele não é moralmente bom, é obrigado de ser pelo menos um bom cidadão. O problema da instituição do Estado, tão difícil que ele pareça, não é insolúvel, mesmo para um povo de demônios (esperando que ele tenha um entendimento) e se enuncia: nós podemos considerar os povos na qualidade de Estados como particulares que, no seu estado de natureza (quer dizer na independência com relação às leis exteriores), já se lesam pela única coexistência deles como: "organizar uma multidão de seres razoáveis que todos juntos exigem, para a conservação deles, leis universais, de quais, no entanto cada um inclina secretamente a se excluir, e estabelecer a constituição deles de maneira tal que, se bem que as suas intenções privadas se oponham entre elas, elas sejam, no entanto impedidas, e dessa maneira, na conduta pública deles, o resultado é o mesmo que se eles não tivessem tido más intenções". É preciso que um tal problema possa ser resolvido. Pois o problema não requer o melhoramento moral dos homens, mas apenas de saber como nós podemos possibilitar em benefício dos homens o mecanismo da natureza para dirigir no seio de um povo o antagonismo de suas intenções hostis, de uma maneira tal que eles se obriguem mutuamente eles mesmos a se submeter às leis de coação, e produzam dessa maneira o estado de paz, onde as leis disponham de uma força. Se nós olhamos os Estados efetivamente existentes e organizados ainda muito imperfeitamente, nós vemos que eles já se aproximam muito portanto no comportamento exterior deles do que a idéia do direito prescreve, mesmo se a moralidade interior não é evidentemente a causa (da mesma maneira não é preciso esperar a moralidade na boa constituição do Estado, mas ao contrario dessa última em primeiro, a boa formação de um povo); por conseguinte, a razão pode utilizar o mecanismo da natureza, através as inclinações egoístas que agissem naturalmente umas sobre as outras igualmente exteriormente, como de um meio para colocar o seu próprio fim, a saber a prescrição do direito, e, por conseguinte, igualmente, na medida em que isso depende do Estado ele mesmo, para promover e assegurar a paz interior e também a paz exterior - é preciso então dizer aqui: a natureza quer irresistivelmente que o direito obtenha para acabar o poder supremo.

- Vers la Paix Perpétuelle, Annexe 1 ("De la Garantie de la Paix Perpétuelle") - Kant - Trad. F.Proust, & Garnier - Flammarion.


Progresso e projeto da natureza

A paz perpétua, fundada no futuro republicano dos Estados, constitui segundo Kant o objetivo final da humanidade. "A razão moralmente prática, escreve ele no livro a Doctrine du droit (1796), exprime em nós seu veto irresistível: não deve existir guerra, nem aquela que pode intervir entre mim e você no estado de natureza, nem a que pode surgir entre nós na qualidade de Estado". A filosofia política deve em conseqüência se interrogar sobre a possibilidade do progresso: na Idée d'une histoire universelle au point de vue cosmopolitique (1784), Kant concebe a hipótese de um "plano escondido da natureza" que permitiria de esperar a realização futura do ideal da razão, e isso, apesar da ausência de "boa vontade" dos homens.


A Revolução em debate

Em 1795, quando Kant redige o texto acima, ele retoma essa problemática para responder aos adversários da Revolução francesa. Estes puseram, com efeito, um realismo conservador, demonstrado na consideração da natureza humana e da história, ao idealismo dos filósofos, explicando o desvio terrorista da Revolução pela vontade de fundar uma nova ordem política a partir de princípios abstratos. O chefe do grupo do Iluminismo devia então mostrar que "o que vale em teoria por razões racionais, vale igualmente na pratica". O argumento desenvolvido aqui, ou seja, do "projeto da natureza", concebe a possibilidade de um desenvolvimento do bem a partir do mal. Mesmo um "povo de demônios" pode conseguir instituir um Estado assegurando a coexistência das liberdades na medida em que, para fazer isso, "o melhoramento dos homens" não é requerido; a inteligência pode ser suficiente, pois o interesse evidente dos homens é de fazer o necessário para que o mecanismo dos interesses e das paixões produza não a discórdia, mas uma emulação na paz civil.
A própria guerra favorece o aparecimento da constituição republicana e da paz perpétua: a necessidade de segurança leva os povos a instituir o Estado, pois, para reforça-lo, a reforma-lo no espírito do Iluminismo; ademais, a diversidade das línguas e das religiões, principal motivo das guerras, faz obstáculo a falsa solução de paz pelo império, preservando dessa maneira as chances de ver se constituir uma federação de Estados livres. O realismo defende então a possibilidade do progresso moral da humanidade: este, escreve Kant, "pode ser interrompido, mas jamais rompido".
Por progresso moral, é preciso compreender a instauração, a conservação e o progresso de um sistema jurídico obrigando os homens a agir pela conformidade ao dever mesmo se eles seriam incapazes de agir pelo dever; a moralidade das condutas, dizendo de outra maneira, não pressupõe a moralização das intenções.


Uma hipótese da razão

Kant recusa a pretensão de conhecer o senso da história, que poderia supor a negação da finitude radical: o espírito humano, que não pode se abstrair de sua condição spatio-temporelle, pode simplesmente conceber a idéia de um ponto de vista sobre a história considerada na sua totalidade, sem poder jamais alcançar a mínima certeza. A fórmula segundo a qual “a natureza quer irresistivelmente que o direito obtenha para acabar o poder supremo" não tem, aos olhos de Kant, nenhum valor científico: ela só tem sentido na medida em que nós a colocamos no ponto de vista da providência, de qual o filósofo afirma que ele se situa "além de toda sabedoria humana". A necessidade do progresso só tem então para Kant o statut de uma "hipótese da razão": ela fornece o fio condutor permitindo de pensar a história a fim de descobrir as razões de esperar a realização do ideal da razão, e de exorcizar dessa maneira a dúvida cética que paralisa a ação.

- E.D.

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