"As instituições devem ser moderadas pelas tradições"
1- O Estado é um mal necessário: seus poderes não devem ser multiplicados além do que é necessário. Nós podemos chamar esse princípio o "rasoir libéral" (em analogia com o rasoir d'Ockham", o famoso princípio segundo o qual as entidades não devem ser multiplicadas além do que é necessário). Afim de mostrar a necessidade do Estado, eu não me refiro à concepção hobbesienne [cf.Léviathan, I, ch.XIII] de homo homini lupus [o homem é um lobo para o homem]. Ao contrário, sua necessidade pode ser mostrada mesmo se nós supomos que homo homini felis, ou mesmo que homo homini angelus, em outros termos, se nós supomos que por causa de sua bondade angélica, ninguém prejudica uma outra pessoa.
Em um tal mundo, ainda existiriam homens mais ou menos fortes, e os mais fracos não teriam nenhum direito legal a serem tolerados pelos mais fortes, mais deveriam ter gratidão de serem assaz bons para tolera-los. Os que (fortes ou fracos) pensam que isso não é um estado de coisas satisfatório, e que toda pessoa deve ter um direito a viver, e uma pretensão [claim] legal a ser protegida contra o poder dos fortes, concederão que nós temos a necessidade de um Estado que proteja os direitos de todos. É fácil mostrar que esse Estado constituirá um perigo constante [...], se isso for necessário. Para que o Estado possa exercer sua função, ele deve ter mais poder que nenhum outro indivíduo particular ou nenhuma organização pública, e se bem que nós possamos criar instituições que diminuem o perigo que esses poderes sejam mal utilizados, nós não poderemos jamais diminuir esse perigo completamente. Ao contrario, a maioria dos cidadãos terão que pagar em troca da proteção do Estado, não somente sob a forma de impostos, mas mesmo sob a forma de certas humilhações, por exemplo, quando eles estão nas mãos de funcionários brutais.
2- A diferença entre uma democracia e uma tirania é que em uma democracia, os governantes podem ser rejeitados sem efusão de sangue.
3. A democracia não pode conferir nenhum benefício aos cidadãos. Ela não pode fazer nada, só os cidadãos podem agir. Ela é apenas um contexto no qual os cidadãos podem agir de maneira mais ou menos coerente e organizada.
4. Nós somos democratas não porque a maioria sempre tem razão, mas porque as tradições democráticas são as menos negativas que nós conhecemos. Se a maioria se decide em favor de uma tirania, um democrata não deve pensar que existe uma contradição fatal na sua concepção, mas que a tradição democrática no seu país não era suficientemente forte.
5. As instituições não são suficientes se elas não forem moderadas pelas tradições, pois elas são sempre ambivalentes.
6. Uma utopia liberal, um Estado racionalmente criado em uma table rase sem tradições, é impossível. O liberalismo exige que as limitações da liberdade de cada um tornadas necessárias pela vida em sociedade devem ser minimizadas e tornadas iguais para todos na medida do possível (Kant)
Mas como aplicar um tal princípio a priori na vida real? Todas as leis, sendo universais, devem ser interpretadas a fim de serem aplicadas, e isso necessita certos princípios de pratica concreta, que só podem ser estabelecidos por uma tradição viva.
7. Os princípios liberais podem ser descritos como princípios de avaliação e se necessário de modificações das instituições. Nós podemos dizer que o liberalismo é uma doutrina "evolucionária" em vez de revolucionária [.....]
8. Entre essas tradições, nós devemos colocar em primeiro o que nós podemos chamar o "contexto moral" (que corresponde ao "contexto legal") de uma sociedade. Isso compreende o sentido tradicional da justiça ou equidade (fairness), ou o grau de sensibilidade moral que a sociedade alcançou. Esse contexto serve de base para tornar possíveis os compromissos equitáveis entre os interesses em conflito. Ele não é ele mesmo intocável, mas ele muda relativamente lentamente. Nada é mais perigoso que sua destruição, que foi conscientemente calculada pelos nazistas, e que só pode conduzir ao niilismo [.....]
- "Public Opinion And Liberal Principes" (1954), Trad. Originale. A. Boyer, In Conjectures And Refutation, Londres, RKP, 1963 -
A sociedade aberta
Karl Popper (1902- 1994) é reconhecido como um dos filósofos mais importante das ciências do século XX, mas sua contribuição ao pensamento liberal é da mesma importância. Publicado em 1954, o artigo acima ilustra perfeitamente o liberalismo poppérien, onde o Estado é considerado como necessário mesmo se é preciso desconfiar dele, e onde o reformismo deve ser prudente.
Para Popper com efeito, não se trata de promover o bem, mas de tentar eliminar o mal, e isso, passo a passo, para estar apto para aprender através seus próprios erros. Popper aplica ao liberalismo o mesmo princípio aplicado às ciências: a falsifiabilidade, o fato que uma teoria que pretende falar do mundo deve poder ser reformada pela experiência. Para Popper, nós devemos deixar à natureza e à sociedade a possibilidade de responder "não" às proposições que nós fazemos para descreve-las ou transformá-las. O debate contraditório e o método das hipóteses audaciosas e múltiplas estão no centro dessa concepção, que vê na "cooperação amigavelmente hostil dos sábios" o motor do progresso dos conhecimentos.
Governar, é discutir.
O pluralismo e a liberdade da discussão crítica ocupou o mesmo lugar no seio de sua teoria política. Esta é focalizada na idéia de "sociedade aberta" - para retomar o título de sua primeira obra política, La société ouverte et ses ennemis (1945) - onde as tradições e as instituições podem ser reconsideradas e melhoradas em nome das normas morais (liberdade, justiça).
Esse tipo de sociedade aparece com a democracia athénienne, mas ela é, sobretudo o produto da tradição liberal de qual Popper é relacionado, isto sem ignorar certas bases morais da crítica socialista. Ele acredita, com efeito, na possibilidade, institucional da democracia representativa onde os dirigentes podem ser substituídos sem violência. Não se trata para ele de "fazer a felicidade" dos cidadãos mas de criar um meio institucional de maneira que nós possamos melhorar as condições de existência das pessoas desfavorizadas, sem por isso sacrificar as liberdades individuais. Nenhuma autoridade sendo infalível, é através da deliberação pública e contraditória que a sociedade pode esperar avançar. Tudo o que nós precisamos para isso, é de estar pronto para aprender dos outros através a discussão racional "se a torre de Babel não tivesse existido, nós teríamos que tê-la inventado", escreve Popper. O liberal não sonha de um consensus perfeito da opinião, mas da "fertilização mútua" das opiniões através a confrontação delas. È preciso promover a tradição do "governo pela discussão", "a capacidade de aceitar compromissos".
Um pouco mais tarde, Popper reconheceu que mesmo se o Estado minimal era um bom ideal, uma certa dose de "paternalismo" era compatível com ele (Ètat paternaliste ou Ètat minimal, 1988).
Pensadores como Raymond Aron, financeiros como George Soros, mas também homens políticos bem diferentes uns dos outros como Helmut Kohl, Edgar Faure ou Mikhïl Gorbatchev reconheceram ter-se inspirado da obra de Popper.
Sua noção de sociedade aberta e a crítica que ele faz do marxismo e do socialismo que se pretende científico foram uma das mais potentes máquinas da guerra liberal do século XX contra os totalitarismos e as utopias.
1- O Estado é um mal necessário: seus poderes não devem ser multiplicados além do que é necessário. Nós podemos chamar esse princípio o "rasoir libéral" (em analogia com o rasoir d'Ockham", o famoso princípio segundo o qual as entidades não devem ser multiplicadas além do que é necessário). Afim de mostrar a necessidade do Estado, eu não me refiro à concepção hobbesienne [cf.Léviathan, I, ch.XIII] de homo homini lupus [o homem é um lobo para o homem]. Ao contrário, sua necessidade pode ser mostrada mesmo se nós supomos que homo homini felis, ou mesmo que homo homini angelus, em outros termos, se nós supomos que por causa de sua bondade angélica, ninguém prejudica uma outra pessoa.
Em um tal mundo, ainda existiriam homens mais ou menos fortes, e os mais fracos não teriam nenhum direito legal a serem tolerados pelos mais fortes, mais deveriam ter gratidão de serem assaz bons para tolera-los. Os que (fortes ou fracos) pensam que isso não é um estado de coisas satisfatório, e que toda pessoa deve ter um direito a viver, e uma pretensão [claim] legal a ser protegida contra o poder dos fortes, concederão que nós temos a necessidade de um Estado que proteja os direitos de todos. É fácil mostrar que esse Estado constituirá um perigo constante [...], se isso for necessário. Para que o Estado possa exercer sua função, ele deve ter mais poder que nenhum outro indivíduo particular ou nenhuma organização pública, e se bem que nós possamos criar instituições que diminuem o perigo que esses poderes sejam mal utilizados, nós não poderemos jamais diminuir esse perigo completamente. Ao contrario, a maioria dos cidadãos terão que pagar em troca da proteção do Estado, não somente sob a forma de impostos, mas mesmo sob a forma de certas humilhações, por exemplo, quando eles estão nas mãos de funcionários brutais.
2- A diferença entre uma democracia e uma tirania é que em uma democracia, os governantes podem ser rejeitados sem efusão de sangue.
3. A democracia não pode conferir nenhum benefício aos cidadãos. Ela não pode fazer nada, só os cidadãos podem agir. Ela é apenas um contexto no qual os cidadãos podem agir de maneira mais ou menos coerente e organizada.
4. Nós somos democratas não porque a maioria sempre tem razão, mas porque as tradições democráticas são as menos negativas que nós conhecemos. Se a maioria se decide em favor de uma tirania, um democrata não deve pensar que existe uma contradição fatal na sua concepção, mas que a tradição democrática no seu país não era suficientemente forte.
5. As instituições não são suficientes se elas não forem moderadas pelas tradições, pois elas são sempre ambivalentes.
6. Uma utopia liberal, um Estado racionalmente criado em uma table rase sem tradições, é impossível. O liberalismo exige que as limitações da liberdade de cada um tornadas necessárias pela vida em sociedade devem ser minimizadas e tornadas iguais para todos na medida do possível (Kant)
Mas como aplicar um tal princípio a priori na vida real? Todas as leis, sendo universais, devem ser interpretadas a fim de serem aplicadas, e isso necessita certos princípios de pratica concreta, que só podem ser estabelecidos por uma tradição viva.
7. Os princípios liberais podem ser descritos como princípios de avaliação e se necessário de modificações das instituições. Nós podemos dizer que o liberalismo é uma doutrina "evolucionária" em vez de revolucionária [.....]
8. Entre essas tradições, nós devemos colocar em primeiro o que nós podemos chamar o "contexto moral" (que corresponde ao "contexto legal") de uma sociedade. Isso compreende o sentido tradicional da justiça ou equidade (fairness), ou o grau de sensibilidade moral que a sociedade alcançou. Esse contexto serve de base para tornar possíveis os compromissos equitáveis entre os interesses em conflito. Ele não é ele mesmo intocável, mas ele muda relativamente lentamente. Nada é mais perigoso que sua destruição, que foi conscientemente calculada pelos nazistas, e que só pode conduzir ao niilismo [.....]
- "Public Opinion And Liberal Principes" (1954), Trad. Originale. A. Boyer, In Conjectures And Refutation, Londres, RKP, 1963 -
A sociedade aberta
Karl Popper (1902- 1994) é reconhecido como um dos filósofos mais importante das ciências do século XX, mas sua contribuição ao pensamento liberal é da mesma importância. Publicado em 1954, o artigo acima ilustra perfeitamente o liberalismo poppérien, onde o Estado é considerado como necessário mesmo se é preciso desconfiar dele, e onde o reformismo deve ser prudente.
Para Popper com efeito, não se trata de promover o bem, mas de tentar eliminar o mal, e isso, passo a passo, para estar apto para aprender através seus próprios erros. Popper aplica ao liberalismo o mesmo princípio aplicado às ciências: a falsifiabilidade, o fato que uma teoria que pretende falar do mundo deve poder ser reformada pela experiência. Para Popper, nós devemos deixar à natureza e à sociedade a possibilidade de responder "não" às proposições que nós fazemos para descreve-las ou transformá-las. O debate contraditório e o método das hipóteses audaciosas e múltiplas estão no centro dessa concepção, que vê na "cooperação amigavelmente hostil dos sábios" o motor do progresso dos conhecimentos.
Governar, é discutir.
O pluralismo e a liberdade da discussão crítica ocupou o mesmo lugar no seio de sua teoria política. Esta é focalizada na idéia de "sociedade aberta" - para retomar o título de sua primeira obra política, La société ouverte et ses ennemis (1945) - onde as tradições e as instituições podem ser reconsideradas e melhoradas em nome das normas morais (liberdade, justiça).
Esse tipo de sociedade aparece com a democracia athénienne, mas ela é, sobretudo o produto da tradição liberal de qual Popper é relacionado, isto sem ignorar certas bases morais da crítica socialista. Ele acredita, com efeito, na possibilidade, institucional da democracia representativa onde os dirigentes podem ser substituídos sem violência. Não se trata para ele de "fazer a felicidade" dos cidadãos mas de criar um meio institucional de maneira que nós possamos melhorar as condições de existência das pessoas desfavorizadas, sem por isso sacrificar as liberdades individuais. Nenhuma autoridade sendo infalível, é através da deliberação pública e contraditória que a sociedade pode esperar avançar. Tudo o que nós precisamos para isso, é de estar pronto para aprender dos outros através a discussão racional "se a torre de Babel não tivesse existido, nós teríamos que tê-la inventado", escreve Popper. O liberal não sonha de um consensus perfeito da opinião, mas da "fertilização mútua" das opiniões através a confrontação delas. È preciso promover a tradição do "governo pela discussão", "a capacidade de aceitar compromissos".
Um pouco mais tarde, Popper reconheceu que mesmo se o Estado minimal era um bom ideal, uma certa dose de "paternalismo" era compatível com ele (Ètat paternaliste ou Ètat minimal, 1988).
Pensadores como Raymond Aron, financeiros como George Soros, mas também homens políticos bem diferentes uns dos outros como Helmut Kohl, Edgar Faure ou Mikhïl Gorbatchev reconheceram ter-se inspirado da obra de Popper.
Sua noção de sociedade aberta e a crítica que ele faz do marxismo e do socialismo que se pretende científico foram uma das mais potentes máquinas da guerra liberal do século XX contra os totalitarismos e as utopias.
- Alain Boyer, autor de Introdução à leitura de Karl Popper ( PENS, 1994).
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