domingo, 24 de junho de 2007

Emmanuel Kant, o humanista

A filosofia de Kant é uma resposta ao mundo desencantado que fizeram emergir as descobertas do século XVIII. Cabe ao homem, nos limites de sua "finitude", de dar novamente um senso ao mundo, do ponto de vista do conhecimento, da moral e dos fins políticos.


O senso e o impacto da obra de Emmanuel Kant ( 1724 - 1804 ) são imperceptíveis se nós não procurarmos medir em primeiro ligar o sismo intelectual e moral que representa a passagem do universo da cosmologia grega ao universo da fìsica moderna, à ruptura abissal que separa o "mundo fechado dos Antigos do universo infinito" (1) de Galilée e Newton. Pois é após essa ruptura que Kant pensa, e sua filosofia sò tem um ùnico objetivo: construir um edifìcio novo, o do humanismo moderno, sobre as ruìnas de uma ordem còsmica desaparecida para sempre.

Nota 1 = Expressões emprestadas a Alexandre Koyré (Du monde clos à l'univers infini, Gallimard, 1957).


Do mundo fechado ao infinito

Em menos de um século e meio, com efeito - durante o perìodo que se estende da publicação da obra de Copernic sobre "As revoluções das òrbitas celestes (1543) a obra des "Philosophie naturalis principia mathematica" (1687) de Newton, passando pelos "Princìpios da filosofia " de Descartes (1644) e a publicação das teses de Galilée sobre as revelações da terra e do sol ( 1632 ) - uma revolução cientìfica sem precedente na història da humanidade realizou-se.Não foi apenas o homem "que perdeu seu lugar no mundo", mas o mundo ele mesmo, esse famoso cosmos grego, que volatilizou-se puramente e simplesmente. Para se ter uma idéia do que os Gregos chamavam cosmos, é preciso representar-se o todo do universo como se tratasse de um ser organizado e animado. Para os estòicos, por exemplo, a ordem còsmica não era somente uma organização magnifìca, mas era tambem uma ordem anàloga a de um ser vivo. O mundo material, o universo inteiro era para eles como um gigantesco animal de quem cada elemento - cada orgão - teria sido admiravelmente concebido e agenciado em harmonia com o conjunto universal.
Eis o que a fìsica dos Antigos convidava os homens a reconhecer e que a ética os ordenava imperativamente de imitar.
Mas após a revolução cientìfica, o universo é apenas um caos infinito, desencantado e sem outro valor que aquele que nòs lhe damos, um campo de forças que se organizam, certo, mas no choque, sem nenhuma harmonia nem significação. Então não existe mais nada na natureza que nòs possamos imitar no plano moral, pois nòs não podemos ver como o silêncio desses espaços infinitos que terrorizam o libertino de Pascal poderiam servir seja no que for de modelo ético para seres humanos doravante desemparados.
Eis então a razão das questões inéditas que animam as obras principais de Kant.

Da contemplação a construção

Primeiro na "Crìtica da razão pura" (1781) : se o mundo é apenas um caos, um tecido conflituoso de forças, é doravante "do exterior", pela força de seu espìrito, que o sàbio deverà re-introduzir uma ordem e um senso no real. Isso serà por excelência, a nova tarefa da ciência moderna, que não reside mais na contemplação, no que os Gregos chamam a "theoria", mas em um trabalho, na elaboração ativa, e verdadeiramente na construção de leis que permitem de dar novamente coerência a um universo desencantado. Por exemplo, com o princìpio de causalidade, o sàbio "moderno" vai tentar estabelecer os elos "lògicos" entre certos fenômenos que ele considera como efeitos, certos outros fenômenos nos quais ele consegue, graças ao método experimental, a descobrir causas. Eis a razão pela qual a "Crìtica da razão pura" começa com uma interrogação em aparência puramente "técnica", para não dizer bizantina, mas na verdade de uma profundeza abissal, tocando nossa capacidade a fabricar "sìnteses", "julgamentos sintéticos". A fòrmula designa simplesmente a nova concepção das leis cientìficas que vão receber por missão de estabelecer ligações (etimologicamente, sintetizar quer dizer botar junto) coerentes e esclarecedoras entre fenômenos em que a ordenação não é mais dada, mas construìda. Revolução intelectual sem precedente: a noção grega de contemplação vai fazer um lugar a noção de um trabalho do espìrito, de uma atividade de sìntese, de "conexão" pela qual o sàbio autêntico consegue "fabricar" as leis cientìficas.
Mas nessas condições tambem, dependendo da interpretação da questão moral que aborda a "Crìtica da razão pràtica" (1788) muda, tambem ela, completamente. À interrogação clàssica "o que devo fazer?" nenhum outro critério natural saberia doravante responder. Como, com efeito, considerar por modelo a ordem còsmica se não podemos encontra-la? Não somente a natureza não tem mais nada de bom em si, mas é preciso estar em oposição para com ela e combatê-la sem trégua para alcançar o bem.
E isso é verdade tanto em nòs mesmos quanto fora de nòs mesmos. Vejam, por exemplo, o tremor de terra de Lisboa que, em 1755, fez em algumas horas vàrios milhares de mortos.
Estaria mesmo nessa tragédia o sinal do maravilhoso cosmos que os Antigos acreditavam ver em torno deles ?
Seria essa natureza, hòstil e malevolente, que nòs deveriamos ter por modelo ?
E em nòs mesmos, as coisas se possìvel, são piores ainda : se eu escuto minha natureza, é incessantemente e com força o egoìsmo mais decidido que fala em mim, que me comanda de seguir meus interesses particulares desprezando os interesses dos outros. Como eu poderia um instante me persuadir que eu poderei alcançar o bem comum, o interesse geral, escutando essa natureza cruel?
A verdade, é que com ela, os outros podem sempre esperar.....
Eis a razão crucial da ética no universo moderno que fez seu luto das cosmologias antigas : em qual entidade enraizar uma nova ordem, um outro cosmos se preferirmos, que seja ao mesmo tempo antinatural e irreligioso? Resposta que funda o humanismo moderno tanto no plano moral que polìtico e jurìdico: sobre a ùnica vontade dos homens, a condição que eles aceitem de se auto-limitar compreendendo que a liberdade deles, as vezes, deve cessar onde começa a liberdade de outrem.


O reino dos fins

Essa "segunda natureza" que se trata de instaurar, Kant a designarà sob a expressão do "reino dos fins". Pois seu princìpio supremo, é o respeito de outrem, que nòs não devemos jamais tratar como um simples meio. Pois é nisso, justamente, a coisa mais natural do mundo e que supõe um esforço em si mesmo, uma vontade que se arranca das inclinações egoìstas. Eis a razão pela qual a lei moral se impõe a nòs mesmos sob a forma de um imperativo, de um dever: justamente porque ela não é natural, mais supõe esforços ou, como diz Kant, uma "boa vontade", verdadeiramente uma "vontade boa". Como o conhecimento, que não é mais "theoria", contemplação, mas trabalho de sìntese dos fenômenos entre eles no seio de leis construìdas pelo espìrito humano, esse novo cosmos tambem é um universo moral "artificial", inteiramente a construir e de maneira alguma dado nem garantido com antecedência, um mundo onde o homem, longe de ser o fragmento minùsculo de uma totalidade que lhe engloba de todas as partes, torna-se um "fim em si" - e não mais um meio, um ser que nòs não poderìamos instrumentalizar se o grande Todo o exigisse, mas o alpha e o oméga de todo valor e de toda dignidade moral. Com Kant, nòs deixamos o universo dado todo feito e aprimorado pela natureza para entrar em um mundo de parte em parte forjado pelos e para os seres humanos - em que, é claro, reside o advento da democracia que està em jogo no nascimento desse novo paradigma intelectual e moral. Uma aventura que, para o melhor e para o pior, ainda é nossa atualmente.


- Luc Ferry, filòsofo, antigo ministro, presidente do Conselho de anàlise da sociedade ( CAS ), autor, entre outros, de " L'Homme - Dieu ou le Sens de la vie" ( LGF , 1997), de "Qu'est-ce qu'une vie réussie?" (LGF,2005) e "D'Apprendre à vivre: traité de philosophie à l'usage des jeunes générations " ( Plon, 2006 ).

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