J. Bernardo Cabral - Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (1981/1983). Relator-Geral da Assembléia Nacional Constituinte (1987/1988). Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados (1989). Ministro de Estado da Justiça (15.03.90 a 09.10.90). Senador. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal 1997/1998 e 2001/2002)
1. O Socialismo: vertente totalitária e democrática. 2. O Liberalismo: experiências de resistência aos regimes absolutistas. 3. A Doutrina Liberal. 4. Conclusão: sinais de convergência.
1) O Socialismo
Neste momento de crise, quando as perspectivas do País tornam-se incertas, é, sem dúvida, fundamental rememorar, ainda que de forma condensada, a grande polêmica que atravessou o século XX, travada entre as principais doutrinas políticas da modernidade: de um lado, o Socialismo, tanto na sua vertente totalitária, quanto na democrática, esta última mais conhecida como SocialDemocracia; de outro lado, o Liberalismo, surgido a partir das experiências de resistência aos regimes absolutistas, que chega a este novo milênio dotado de renovada legitimidade, conferida pela eficácia demonstrada no trato das grandes questões sociais e econômicas do nosso tempo.
Abordarei em primeiro lugar, alguns pontos da história e da doutrina do Socialismo, na sua vertente comunista, que, no século XX, chegou a gerir os destinos de uma significativa parcela da população mundial.
Em seguida, examinarei o desempenho daqueles que diligenciaram na realização das metas socialistas por meios exclusivamente democráticos, ou seja, a denominada Social-Democracia, corrente que obteve um sucesso significativo na maior parte dos países da Europa Ocidental, associando à sua gestão o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social.
Finalmente, discutirei a Doutrina Liberal, tentando enfatizar os pontos que, a meu ver, tornaram-na relativamente imune aos efeitos da crise contemporânea, que está eliminando o comunismo e pondo em xeque o Estado de Bem-Estar Social.
O Socialismo foi definido de diversas maneiras, ao longo de sua história. Para alguns, seria caracterizado pela preocupação com as classes desprivilegiadas da sociedade. Outros vêem como seu traço marcante a oposição à propriedade privada. Não há dúvida de que essas e outras características são comuns ao pensamento socialista. Considero, no entanto, mais fecundo definir o Socialismo, não porum traço ou conjunto de traços, e sim, como o fez o grande sociólogo francês Emile Durkheim, por uma tensão entre dois princípios coexistentes: a demanda por racionalidade econômica e a exigência de justiça social.
Demanda por racionalidade, na medida em que o caráter caótico da produção capitalista manifestou-se desde cedo. Períodos de bonança eram interrompidos por crises recorrentes durante as quais o excesso de bens convivia com a incapacidade de compra, e, portanto, com a miséria. A superação desse círculo vicioso consistiria na subordinação da propriedade privada, ou seja, um movimento que iria da autonomia dos capitalistas individuais para um planejamento racional centralizado.
Exigência de justiça social, na medida em que a mesma propriedade privada impunha uma distribuição desigual de bens, serviços e oportunidades de vida.
No pensamento socialista os dois aspectos são inseparáveis; na verdade, a justiça seria uma decorrência necessária da introdução da racionalidade na vida econômica. Foi preciso o transcurso de todo o século XX para demonstrar que justiça e racionalidade nem sempre são coincidentes, podendo, inclusive, ser excludentes.
Discorrer aqui, pormenorizadamente, sobre a história do movimento socialista seria desnecessário e extrapolaria os limites desta reflexão. Limitar-me-ei, portanto, a assinalar alguns pontos de inflexão, aqueles que julgo mais carregados de conseqüências para a história do século passado.
O Socialismo surge como tentativa de superar as mazelas da Revolução Industrial. Data, portanto, do último quartel do século XVIII. Excluí de nossa periodização todas as obras dos pensadores comunistas utópicos, de Platão a Campanella, pois estes estavam preocupados primordialmente com a questão da construção de uma sociedade justa, faltando-lhes a dimensão da racionalidade na produção de riquezas.
Isto posto, é possível delimitar, na história do Socialismo, um primeiro período que se estenderia de suas primeiras manifestações até o ano de 1848. Esse ano é tomado como marco em função da participação dos trabalhadores nos movimentos revolucionários que eclodiram na Europa e também por nele ter-se dado a publicação do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que marcaria a feição posterior do movimento.
O segundo período apresentaria como limites os anos de 1848 e de 1914. No seu curso, o Marxismo consolida-se como tendência dominante do Socialismo, por deslocar a vertente anarquista, no âmbito da Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1863. A partir daí, o Marxismo foi-se impondo como a única versão legítima do Socialismo, a única que teria como fundamento as bases sólidas da ciência. É nesse período, ainda, que os diferentes partidos socialistas europeus, já denominados, em geral, social-democratas, convertem-se em partidos eleitoralmente significativos. Houve um incremento exponencial dos votos socialistas a partir da conquista do sufrágio universal. Em 1890, a social-democracia alemã chegou à condição de partido mais votado, no que foi seguida por seus congêneres da Bélgica, Escandinávia e Áustria.
A essa altura, o Socialismo constituía-se em um expressivo movimento de massas animado por uma mesma interpretação da sociedade e da História, desenvolvida por Marx.
Suas idéias centrais são:
1 – O Materialismo: postula a primazia do ser sobre a consciência dos homens, ou seja, a consciência dos homens depende da forma como provêem suas necessidades materiais.
2 – A Dialética: consiste no reconhecimento do caráter contraditório da realidade social manifesta na centralidade da luta de classes.
3 – A Direção da História: a História da Humanidade é vista como um processo evolutivo, uma vez que o desenvolvimento tecnológico define, em última análise, a estrutura de classes de cada sociedade e esse desenvolvimento é cumulativo.
4 – O Fim da História: a própria evolução da sociedade de classes apontaria para o seu fim. A divisão da sociedade em classes teria fim e uma nova era teria início. A simplificação dos conflitos de classe levaria à expropriação do patronato, não em benefício de uma nova classe dominante, mas em benefício de todos.
5 – O Caminho: a consecução dessa meta exigiria, no entanto, um momento de transição durante o qual os trabalhadores utilizariam a coerção contra os interessados na manutenção ou restauração da antiga ordem. Nesse período o Estado assumiria o controle do sistema produtivo e injetaria racionalidade na produção mediante o planejamento centralizado.
A primeira oportunidade de testar empiricamente a validade desse corpo teórico socialista ocorreu nos desdobramentos da Revolução Russa de 1917. Instituiu-se, então, um regime unipartidário comandado por uma fração do antigo Partido Social Democrata Russo, os Bolcheviques. A propriedade privada sobre os meios de produção foi abolida com a sua passagem para as mãos do Estado, processo particularmente violento no caso da coletivização da agricultura efetuada por Stalin, na década de 1930. A política passou a ser monopolizada pelo partido no poder, que não se constrangeu em usar a coerção em doses maciças, primeiro contra os partidários do antigo regime, depois contra os demais partidos oposicionistas e, finalmente, contra os dissidentes do próprio Partido Comunista.
A aplicação da receita socialista em toda a sua integridade teve como resultado a instauração de um regime autoritário, quando não francamente totalitário. Como esse resultado pode ser encarado? Como um desvio em relação ao projeto original, ou fiel ao espírito dos textos de Marx, como uma etapa necessária ao estabelecimento de uma sociedade efetivamente livre?
Parece-me que os acontecimentos da última década não deixam dúvida a respeito. Enquanto o mundo comunista persistia era possível pensar que nos encontrávamos frente a uma etapa necessária da construção de uma sociedade justa e abundante. A ausência de democracia ainda podia ser vista como uma conseqüência da pressão dos países capitalistas sobre o bloco socialista e bastaria um esforço de auto-reforma do sistema para que o rumo correto fosse retomado. Por um momento, essas esperanças pareceram concretizar-se nos processos que os soviéticos chamaram glasnost e Perestroika. No entanto, a reforma controlada do sistema rapidamente cedeu lugar a seu desmantelamento.
Quais as razões profundas desse desfecho? Em linhas gerais, podemos dizer que o bloco comunista foi vítima do desenvolvimento tecnológico recente. Numa confirmação irônica de um dos teoremas marxistas, as relações de produção construídas a partir da extinção da propriedade privada e da substituição do mercado pelo planejamento central não resistiram ao avanço das forças produtivas e foram por ele despedaçadas.
Vale lembrar que nem sempre o sistema econômico soviético foi inoperante. Respondeu por taxas de crescimento industrial das mais elevadas por um longo período de tempo. Transformou a antiga Rússia em uma potência industrial e militar. Conseguiu, além disso, ganhos até então desconhecidos no rumo da equalização das condições de vida de sua população. Os indicadores de saúde e educação, em poucos anos, alcançaram e ultrapassaram aqueles vigentes nos países capitalistas ocidentais. Mesmo a ocorrência do processo de desestalinização aumentou o otimismo daqueles que, dentro e fora da União Soviética, julgavam o totalitarismo um aspecto descartável do sistema. Emblemático desse período de euforia foi o anúncio de Kruschev, na esteira das primeiras vitórias na corrida espacial, da iminente ultrapassagem da economia americana pela soviética.
O que mudou, desde então? Os avanços científicos e tecnológicos potencializaram o processo de globalização e geraram um novo modo de produzir bens e serviços para o qual mercado e democracia, ou seja, iniciativas no âmbito das unidades de produção e transparência revelaram-se indispensáveis. Esses eram justamente os dois fatores de que carecia o bloco soviético.
A partir de então, deixou de ser plausível a possibilidade de regenerar o comunismo, de transformá-lo por dentro, mediante uma intervenção política e ficou claro o que nós, liberais, sempre soubemos: a liberdade não surge da sua ausência. Vemos, hoje, o preço que a Rússia paga pela ausência de uma tradição política democrática e de uma tradição econômica de mercado. Na política, as instituições são frágeis e o risco de retrocesso em direção ao autoritarismo é presente. Na economia, a iniciativa privada foi açambarcada pelo crime organizado, refúgio dos únicos empreendedores remanescentes do velho regime.
O experimento comunista mostra um resultado claro: os meios preconizados historicamente pela tradição socialista não alcançaram os fins desejados. A justiça social foi incrementada ao custo de um grau absurdo de coerção e revelou -se fugaz. Não sobreviveu ao desmantelamento do regime. A racionalidade da economia revelou-se um mito. O planejamento centralizado mostrou sua inoperância em face das novas condições de produção originadas da revolução científico-tecnológica.
Resta-nos examinar o desempenho, neste século, do braço democrático do movimento socialista, a Social-Democracia.
Nas suas origens, o Socialismo manifestava desconfiança profunda quanto à eficácia e pertinência de sua participação no processo eleitoral. A atitude era procedente, na medida em que vigorava o voto censitário, ou seja, julgava-se, então, que o direito de voto deveria estar restrito àqueles que tinham algo a perder com o desgovemo do país: os proprietários e os detentores de rendas elevadas. Era recorrente, entre os primeiros pensadores socialistas, a idéia de que a nova sociedade poderia surgir, fora da esfera política, a partir de comunidades isoladas, funcionando conforme as novas regras. Acreditava-se que, comprovada assim sua eficácia, o socialismo alastrar-se-ia por força de um efeito de demonstração.
O marxismo representou uma ruptura com essa visão. Ao considerar a conquista do Estado como instrumento indispensável à construção da nova sociedade, enfatizou a necessidade de participação dos trabalhadores na política institucional “burguesa”. Era necessário sempre que possível, a organização de partidos políticos legais e a apresentação de candidatos nas disputas eleitorais.
É certo que essa visão era, no início, inteiramente instrumental. As eleições eram vistas como um momento privilegiado de agitação e propaganda das idéias socialistas, mas não se acreditava na eleição de um governo capaz de implementar as mudanças necessárias. Mesmo que eleito, um governo com essas intenções seria em pouco tempo manietado ou derrubado por uma rebelião das classes possuidoras contra sua própria ordem legal. A revolução, ponto de inflexão no rumo da nova sociedade, deveria ocorrer, na opinião majoritária entre os militantes, no bojo de uma greve geral, seguida do assalto ao poder.
A conquista progressiva do sufrágio universal nos principais países europeus, muitas vezes com a participação decisiva dos trabalhadores, foi aos poucos alterando essa visão. Os socialistas acreditavam, firmemente, na inevitabilidade de a população trabalhadora vir a transformar-se na maioria absoluta em todas as nações modernas. Conforme Marx, a tendência à concentração de empresas era inexorável, o número de capitalistas tenderia a diminuir, a pequena-burguesia e o campesinato, classes de transição, desapareceriam e os trabalhadores constituiriam a maioria esmagadora da população num futuro próximo. Nessas circunstâncias, era difícil não considerar a possibilidade de os trabalhadores chegarem ao poder pela via do sufrágio universal.
Os resultados das eleições sustentavam essa perspectiva. Conforme mencionei anteriormente, na altura da passagem do século passado, os diversos partidos socialistas foram-se convertendo nos maiores depositários de votos de seus países. Logo, foram expostos a problemas delicados. Constituindo os partidos mais votados, sem entretanto dispor da maioria absoluta necessária à implementação dos seus programas, os socialistas foram chamados a constituir ou a formar governos de coalizão. Tiveram, assim, de optar entre a manutenção integral de suas propostas, e a conseqüente exclusão do governo, e a prática do compromisso, das concessões mútuas, da obtenção de pequenas conquistas.
A fratura com a vertente comunista, concretizada ao longo da Primeira Grande Guerra e formalizada em 1921, operou nessa linha de clivagem, separando aqueles que viam as eleições como agitação preparatória da insurreição e aqueles que se comprometeram com a preservação das regras democráticas. Esses últimos desenvolveram a lógica da acumulação de conquistas, ou seja, de reforma em reforma chegar-se-ia à transformação completa da sociedade. Nas palavras de um líder socialista da época, a chegada ao socialismo poderia ser tão imperceptível quanto a passagem de um navio pela linha do Equador.
Sabemos, hoje, que essa estratégia não logrou êxito. Era necessáriopara seu sucesso a esperada maioria absoluta dos trabalhadores no conjunto da população. E tal fato não ocorreu. Por outro lado, as reformas deveriam ser cumulativas e não passíveis de reversão, e a experiência histórica demonstrou que, administradas por novas maiorias, ou simplesmente deixadas à própria sorte, as reformas tendiam a desaparecer.
O fato de os trabalhadores persistirem como maioria relativa e não como maioria absoluta foi de particular relevância para a estratégia posterior dos social-democratas. Os partidos europeus viram-se diante da alternativa de concentrar seus esforços na classe operária e renunciar à possibilidade de serem majoritários ou de se abrirem à participação de outros grupos sociais.
O problema, no caso, é que verificou-se um trade off entre ambas as possibilidades. Ao concentrar suas campanhas nos interesses e na identidade operária, perdiam eleitores de outros grupos. Ao tentar a ampliação, deixavam de apelar para a consciência de classe dos operários, liberando-os, em parte, para votos desvinculados de sua identidade de trabalhador. Nessa alternativa, ganhariam votos com uma mão e os perderiam com a outra, sem alcançar a desejada e necessária maioria absoluta.
A hipótese desse trade off, desenvolvida pelo cientista político Adam Przeworski, encontra apoio nos dados disponíveis sobre o desempenho eleitoral dos partidos socialistas. Apenas no começo do século XX os socialistas algumas vezes aproximaram-se dos cinqüenta por cento dos votos. A partir da década de 1920, entretanto, raramente ultrapassaram os trinta por cento, sendo levados a participar de governos de coalizão, seja na condição de protagonista, seja na de coadjuvante.
Não é possível, entretanto, deixar de reconhecer algum sucesso ao experimento social-democrata. Principalmente a partir da década de 1930, quando assumiram políticas de cunho keynesiano, eles tiveram participação destacada na construção do chamado Estado de Bem-Estar Social.
Desde então, e principalmente no segundo pós-guerra, os governos socialistas desenvolveram um grau de intervenção na economia sem precedentes, mediante a nacionalização de setores inteiros da produção. Paralelamente, ampliaram substancialmente os chamados direitos sociais. Além dos direitos civis, as chamadas liberdades individuais, e do direito de votar e ser votado, os cidadãos desses países passaram a ter como direitos o acesso à saúde, à educação, ao emprego, à seguridade social, à moradia, entre outros. Cabe assinalar que o conteúdo de todos esses direitos sociais era até então simples objeto de transação no mercado, acessíveis apenas aos que dispunham de recursos para comprá-los.
A intervenção do Estado no sentido de regular a economia e garantir esse conjunto expressivo de direitos a todos os cidadãos foi mais profunda e continuada em países como a Suécia e a Inglaterra. Na década de 1950, inclusive, teóricos do trabalhismo inglês não apenas acreditavam estar no caminho do socialismo, como também afirmavam ser impossível um eventual retorno daquele país ao capitalismo.
Essa, no entanto, foi a previsão que teve o desmentido mais rápido. A partir da segunda metade da década de 1970, toda uma leva de vitórias eleitorais conservadoras remeteu os partidos socialistas à oposição. As reformas conquistadas sofreram rápida reversão. Empresas estatais foram privatizadas e o Estado tratou de limitar o alcance dos direitos sociais recentemente estatuídos.
Quais as razões da crise do Estado de Bem-Estar Social? São tantas que mencionarei apenas os fatores mais relevantes. Em primeiro lugar, a globalização produziu um ambiente favorável à rápida mobilidade de capitais. Estes podem, face a uma política redistributiva considerada excessiva, migrar com facilidade para outro país, causando desemprego e mais pobreza.
Em segundo lugar, outro resultado da revolução científico-tecnológica foi a criação do desemprego estrutural. Com ele, diminui o número de contribuintes e aumenta o de beneficiários das políticas sociais. O desequilíbrio assim gerado exige recursos cada vez maiores e alimenta a chamada “revolta dos contribuintes”, que começam a direcionar seus votos aos partidos conservadores.
Em terceiro lugar, parece claro, hoje, que, mesmo nos seus melhores dias, o Estado de Bem-Estar Social tinha como premissa uma estrutura familiar tradicional. Encontrava-se equipado para atender ao desemprego masculino, pressupondo o papel de esposa para a maioria da população feminina. Com a freqüência maior de divórcios e o afluxo das mulheres ao mercado de trabalho o Estado revelou-se incapacitado para fazer frente ao aumento dos gastos.
Finalmente, uma linha de crítica, iniciada pelos liberais, mas hoje encampada por correntes socialistas, dirige-se ao complexo paternalismo/passividade que essas políticas estimulam. As populações atendidas vêem o seu destino nas mãos de uma burocracia que escapa à sua influência. Cria-se uma cultura da dependência que, ao invés de integrar os excluídos na ordem social, estimula a permanência destes nos limites dessa ordem, na condição de incapazes de garantir seu próprio sustento, expondo-os às conhecidas conseqüências em termos de preconceito.
Pode-se concluir, em suma, que o projeto social-democrata foi vítima dos mesmos fatores históricos que evidenciaram o fracasso do comunismo: a revolução científico-tecnológica e o processo de globalização dela decorrente. Aqui cabem duas indagações: antes que o peso desses fatores se fizesse sentir em meados dos anos de 1970, era possível afirmar, ao longo das três décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra, que a via social-democrata alcançara êxito? E, ainda, o caminho das reformas sucessivas levara ao socialismo?
Depende. Se por Socialismo entendemos uma sociedade próxima do pleno emprego, com uma elevada renda per capita, na qual os desempregados e os excluídos do mercado de trabalho por incapacidade também fazem jus a um rendimento digno, garantido pelo Estado, então a Suécia foi, de fato, durante alguns anos, uma sociedade socialista.
O Socialismo, no entanto, prometeu mais do que isso. Propôs-se à construção de uma sociedade de liberdade e abundância, na qual todas as necessidades individuais encontrariam satisfação. Acenou com a libertação do homem de todas as amarras e da situação de alienação em que se encontra. Até a formação da identidade individual ver-se-ia livre de toda distorção. Nesse sentido maximalista, o Socialismo não foi substantivamente implantado nem na Suécia, nem em parte alguma.
2) O Liberalismo: experiências de resistência aos regimes absolutistas
Aliás, a trajetória do Liberalismo constitui um interessante contraponto aos percalços do Socialismo, em todas as suas variantes. Surgido como processo de limitação dos poderes do Estado, principalmente na Inglaterra, a partir do século XIII, ganhou densidade intelectual com as contribuições de inúmeros filósofos e pensadores da política, de Locke a John Stuart Mill. Cabe assinalar que sua origem histórica, vinculada às lutas da burguesia ascendente, levou os socialistas a identificá-lo, a priori, como a ideologia dessa classe social e a condená-lo à impossibilidade de cumprir as suas promessas.
Numa sociedade dividida em classes, as liberdades fundamentais permaneceriam apanágio das classes dominantes: os proprietários. A extensão concreta dos direitos abstratamente universais colocaria em risco, de imediato, a ordem social e propiciaria sua subversão pelos excluídos. Podemos avaliar hoje, em concreto, que as promessas do Liberalismo foram cumpridas numa extensão muito maior que as do Socialismo.
Mas, de que estamos falando, quando usamos o termo Liberalismo? A palavra, na verdade, recobre uma gama de significados tão ampla quanto Socialismo. Valho-me da definição proposta pelo pensador italiano contemporâneo Norberto Bobbio, por sua clareza e operacionalidade. Para ele, Liberalismo é uma concepção de Estado, aquela que o encerra em limites bem definidos. O Estado liberal opõe-se, de um lado, ao Estado absoluto, cujo poder é ilimitado. Nesse sentido, Estado liberal confunde-se com Estado de Direito. Por outro lado, o Estado liberal não é limitado apenas em seus poderes, mas também em suas funções. Nesse sentido, o Estado liberal é um Estado mínimo, oposto, por exemplo, ao Estado de Bem-Estar Social.
É importante fazer uma distinção entre o Liberalismo assim definido e a Democracia. Esta é um regime político, na qual o poder encontra-se nas mãos de todos, a antítese, portanto, da Autocracia. A Democracia responde à exigência de distribuir o poder, não de limitá-lo.
A tensão entre Liberalismo e Democracia perpassa toda a história da doutrina. Não são poucos os pensadores liberais que consideraram ambos inconciliáveis. Historicamente, o Liberalismo prosperou inicialmente em regimes políticos oligárquicos, nos quais os direitos políticos eram inseparáveis da propriedade. Na melhor tradição liberal, a propriedade era vista como única garantia de um comportamento político responsável, única salvaguarda contra o voto disruptor da ordem.
Sabemos, hoje, no entanto, que as relações entre Liberalismo e Democracia são bastante complexas. Numa primeira dimensão, pode-se afirmar a compatibilidade entre ambos. É possível existir um Estado simultaneamente liberal e democrático. Há, porém, outras possibilidades históricas, como um Estado liberal, mas não-democrático, exemplificados pelos regimes oligárquicos, ou um Estado democrático, mas não liberal, no qual a vontade da maioria seria ilimitada.
Numa segunda dimensão, comprova-se a permanente tensão, até mesmo o antagonismo entre Liberalismo e Democracia. Nesse caso, a procura da igualdade de condições entre os cidadãos, por meio da ação do Estado, expande essa ação até esferas que deveriam ser deixadas ao arbítrio individual. Se o Estado decide tudo por nós e nos provê de todos os bens necessários, acabam a autonomia e a responsabilidade individuais.
Numa última dimensão, transparece, nas condições políticas modernas, a união necessária entre Liberalismo e Democracia. A história recente fornece razões convincentes para se crer que, de um lado, os direitos individuais dependem da regra do jogo democrático para se manterem; de outro lado, que a proteção dos direitos individuais é indispensável ao funcionamento da democracia.
Daí resulta que, hoje, os liberais trabalham no espaço da compatibilidade entre Liberalismo e Democracia; são conscientes da solidariedade existente entre ambos e procuram limitar a busca da igualdade de condições à igualdade de oportunidades para todos. Os liberais sabem que o máximo que o Estado pode fazer, sem colocar em risco os direitos individuais e a esfera privada, é assegurar o mesmo ponto de partida a todos os cidadãos. Tentar assegurar o mesmo ponto de chegada, como almejam os socialistas, é enveredar pelo caminho da servidão, na expressão feliz de Hayek.
3) A Doutrina Liberal
Cabe aqui recapitular que as linhas mestras da doutrina liberal, decantadas após séculos de especulação e debates teóricos, são:
1 – O Individualismo: Se os liberais buscam limitar o poder do Estado, fazem-no em nome de uma realidade anterior e moralmente mais elevada – o indivíduo. Para eles, os indivíduos precedem o Estado, que só existe para satisfazer as suas, deles, necessidades.
2 – Os Direitos Naturais: Esses indivíduos que preexistem ao coletivo portam direitos invioláveis, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. A tradição liberal fundamenta esses direitos na sua suposta naturalidade. A suposição não é necessária. Basta-nos considerar, em cada sociedade e em cada período histórico, como direitos fundamentais e, portanto, invioláveis, aqueles reconhecidos a todos os seus membros. Os direitos universais são os fundamentais.
3 – A Valorização da Diversidade: Na tradição liberal, toda uniformidade é percebida como imposta por um poder exterior ao indivíduo. Os seres humanos são plurais e um de seus direitos inalienáveis é o da expressão e do desenvolvimento de sua singularidade. Da mesma forma, os conflitos que advêm da expressão das diferenças – de valores, idéias e interesses - são salutares, uma vez que propiciam a emulação, o aperfeiçoamento e a prevalência das alternativas mais eficazes. Na esfera econômica, essa diretriz materializa-se na valorização da concorrência. Sociedades que estimulam a diversidade são ativas e progressistas.
Parece-me claro que, no ambiente globalizado e sujeito a intensas alterações tecnológicas já aqui mencionados, um corpo doutrinário com as características acima descritas encontra-se mais capacitado para conduzir sociedades modernas do que as doutrinas concorrentes originadas do tronco socialista. Os valores articulados pelos liberais aparentam ser hoje os únicos compatíveis com o modo de produção que atualmente se gesta. Transparência e livre circulação da informação, plena liberdade à iniciativa individual, tanto no campo do capital quanto do trabalho, dotação de responsabilidade aos sujeitos dessa iniciativa; todas essas são condições para operar a produção de bens e serviços, na contemporaneidade.
O resultado mais evidente das mudanças recentes é a crescente complexidade da vida e do mundo modernos. Nossos problemas, sejam eles tecnológicos, econômicos ou meramente cotidianos, não dispõem mais de apenas uma solução ótima, mas sim de uma multiplicidade de soluções ao alcance dos atores sociais. Tornou-se plenamente aceitável a crítica dos economistas liberais ao Socialismo: se num estágio mais simples de sociedade, o planejamento central podia aspirar a uma racionalidade superior à do mercado, hoje o mercado é mecanismo muito mais eficiente para captar e transmitir os sinais da esfera produtiva. O planejamento central, na forma como foi postulado pelos socialistas, foi relegado ao campo da irracionalidade econômica.
Devo dizer, contudo, que a hegemonia dos mecanismos de mercado e das instituições democráticas a que assistimos não significa uma vitória absoluta do Liberalismo, em sua feição originária. Décadas de embate com as correntes socialistas tornaram os liberais sensíveis às condições sociais que possibilitam a igualdade de oportunidades.
Poucos expoentes do Liberalismo negariam hoje a necessidade de interferência estatal em áreas como saúde e educação, cruciais para que os indivíduos iniciem o processo de concorrência em igualdade ou ao menos em semelhança de condições. Alguns preferem dar a esse movimento o nome de Social-Liberalismo, uma vez que legitima a intervenção do Estado em esferas antes deixadas exclusivamente ao livre jogo das forças de mercado.
Nota-se, por outro lado, movimento semelhante da parte de tendências historicamente situadas no campo do Socialismo. As debilidades do Estado de Bem-Estar Social, particularmente sua tendência à burocratização, à alienação da população beneficiada, à perpetuação da exclusão social num gueto de dependentes do Poder Público, originaram críticas entre os próprios socialistas. Estes passaram a reconhecer, ao menos parcialmente, as limitações do Estado como instrumento de promoção da igualdade e da justiça e a conseqüente necessidade de estimular a autonomia individual. Outro não é o significado da tentativa autodenominada Terceira Via, teorizada por Anthony Giddens, na Inglaterra, inspiração do atual governo trabalhista daquele país.
4) Conclusão: sinais de convergência
Neste começo de século, é difícil prever o resultado desses processos, tanto no campo do debate Intelectual, quanto no da prática de governo. O que se pode é apenas considerar os sinais de convergência entre as distintas doutrinas aqui sucintamente abordadas como um sintoma auspicioso de que décadas de debate intenso estão produzindo conclusões, expressas como consensos parciais acerca da gestão da sociedade. Ainda bem.
1. O Socialismo: vertente totalitária e democrática. 2. O Liberalismo: experiências de resistência aos regimes absolutistas. 3. A Doutrina Liberal. 4. Conclusão: sinais de convergência.
1) O Socialismo
Neste momento de crise, quando as perspectivas do País tornam-se incertas, é, sem dúvida, fundamental rememorar, ainda que de forma condensada, a grande polêmica que atravessou o século XX, travada entre as principais doutrinas políticas da modernidade: de um lado, o Socialismo, tanto na sua vertente totalitária, quanto na democrática, esta última mais conhecida como SocialDemocracia; de outro lado, o Liberalismo, surgido a partir das experiências de resistência aos regimes absolutistas, que chega a este novo milênio dotado de renovada legitimidade, conferida pela eficácia demonstrada no trato das grandes questões sociais e econômicas do nosso tempo.
Abordarei em primeiro lugar, alguns pontos da história e da doutrina do Socialismo, na sua vertente comunista, que, no século XX, chegou a gerir os destinos de uma significativa parcela da população mundial.
Em seguida, examinarei o desempenho daqueles que diligenciaram na realização das metas socialistas por meios exclusivamente democráticos, ou seja, a denominada Social-Democracia, corrente que obteve um sucesso significativo na maior parte dos países da Europa Ocidental, associando à sua gestão o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social.
Finalmente, discutirei a Doutrina Liberal, tentando enfatizar os pontos que, a meu ver, tornaram-na relativamente imune aos efeitos da crise contemporânea, que está eliminando o comunismo e pondo em xeque o Estado de Bem-Estar Social.
O Socialismo foi definido de diversas maneiras, ao longo de sua história. Para alguns, seria caracterizado pela preocupação com as classes desprivilegiadas da sociedade. Outros vêem como seu traço marcante a oposição à propriedade privada. Não há dúvida de que essas e outras características são comuns ao pensamento socialista. Considero, no entanto, mais fecundo definir o Socialismo, não porum traço ou conjunto de traços, e sim, como o fez o grande sociólogo francês Emile Durkheim, por uma tensão entre dois princípios coexistentes: a demanda por racionalidade econômica e a exigência de justiça social.
Demanda por racionalidade, na medida em que o caráter caótico da produção capitalista manifestou-se desde cedo. Períodos de bonança eram interrompidos por crises recorrentes durante as quais o excesso de bens convivia com a incapacidade de compra, e, portanto, com a miséria. A superação desse círculo vicioso consistiria na subordinação da propriedade privada, ou seja, um movimento que iria da autonomia dos capitalistas individuais para um planejamento racional centralizado.
Exigência de justiça social, na medida em que a mesma propriedade privada impunha uma distribuição desigual de bens, serviços e oportunidades de vida.
No pensamento socialista os dois aspectos são inseparáveis; na verdade, a justiça seria uma decorrência necessária da introdução da racionalidade na vida econômica. Foi preciso o transcurso de todo o século XX para demonstrar que justiça e racionalidade nem sempre são coincidentes, podendo, inclusive, ser excludentes.
Discorrer aqui, pormenorizadamente, sobre a história do movimento socialista seria desnecessário e extrapolaria os limites desta reflexão. Limitar-me-ei, portanto, a assinalar alguns pontos de inflexão, aqueles que julgo mais carregados de conseqüências para a história do século passado.
O Socialismo surge como tentativa de superar as mazelas da Revolução Industrial. Data, portanto, do último quartel do século XVIII. Excluí de nossa periodização todas as obras dos pensadores comunistas utópicos, de Platão a Campanella, pois estes estavam preocupados primordialmente com a questão da construção de uma sociedade justa, faltando-lhes a dimensão da racionalidade na produção de riquezas.
Isto posto, é possível delimitar, na história do Socialismo, um primeiro período que se estenderia de suas primeiras manifestações até o ano de 1848. Esse ano é tomado como marco em função da participação dos trabalhadores nos movimentos revolucionários que eclodiram na Europa e também por nele ter-se dado a publicação do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que marcaria a feição posterior do movimento.
O segundo período apresentaria como limites os anos de 1848 e de 1914. No seu curso, o Marxismo consolida-se como tendência dominante do Socialismo, por deslocar a vertente anarquista, no âmbito da Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1863. A partir daí, o Marxismo foi-se impondo como a única versão legítima do Socialismo, a única que teria como fundamento as bases sólidas da ciência. É nesse período, ainda, que os diferentes partidos socialistas europeus, já denominados, em geral, social-democratas, convertem-se em partidos eleitoralmente significativos. Houve um incremento exponencial dos votos socialistas a partir da conquista do sufrágio universal. Em 1890, a social-democracia alemã chegou à condição de partido mais votado, no que foi seguida por seus congêneres da Bélgica, Escandinávia e Áustria.
A essa altura, o Socialismo constituía-se em um expressivo movimento de massas animado por uma mesma interpretação da sociedade e da História, desenvolvida por Marx.
Suas idéias centrais são:
1 – O Materialismo: postula a primazia do ser sobre a consciência dos homens, ou seja, a consciência dos homens depende da forma como provêem suas necessidades materiais.
2 – A Dialética: consiste no reconhecimento do caráter contraditório da realidade social manifesta na centralidade da luta de classes.
3 – A Direção da História: a História da Humanidade é vista como um processo evolutivo, uma vez que o desenvolvimento tecnológico define, em última análise, a estrutura de classes de cada sociedade e esse desenvolvimento é cumulativo.
4 – O Fim da História: a própria evolução da sociedade de classes apontaria para o seu fim. A divisão da sociedade em classes teria fim e uma nova era teria início. A simplificação dos conflitos de classe levaria à expropriação do patronato, não em benefício de uma nova classe dominante, mas em benefício de todos.
5 – O Caminho: a consecução dessa meta exigiria, no entanto, um momento de transição durante o qual os trabalhadores utilizariam a coerção contra os interessados na manutenção ou restauração da antiga ordem. Nesse período o Estado assumiria o controle do sistema produtivo e injetaria racionalidade na produção mediante o planejamento centralizado.
A primeira oportunidade de testar empiricamente a validade desse corpo teórico socialista ocorreu nos desdobramentos da Revolução Russa de 1917. Instituiu-se, então, um regime unipartidário comandado por uma fração do antigo Partido Social Democrata Russo, os Bolcheviques. A propriedade privada sobre os meios de produção foi abolida com a sua passagem para as mãos do Estado, processo particularmente violento no caso da coletivização da agricultura efetuada por Stalin, na década de 1930. A política passou a ser monopolizada pelo partido no poder, que não se constrangeu em usar a coerção em doses maciças, primeiro contra os partidários do antigo regime, depois contra os demais partidos oposicionistas e, finalmente, contra os dissidentes do próprio Partido Comunista.
A aplicação da receita socialista em toda a sua integridade teve como resultado a instauração de um regime autoritário, quando não francamente totalitário. Como esse resultado pode ser encarado? Como um desvio em relação ao projeto original, ou fiel ao espírito dos textos de Marx, como uma etapa necessária ao estabelecimento de uma sociedade efetivamente livre?
Parece-me que os acontecimentos da última década não deixam dúvida a respeito. Enquanto o mundo comunista persistia era possível pensar que nos encontrávamos frente a uma etapa necessária da construção de uma sociedade justa e abundante. A ausência de democracia ainda podia ser vista como uma conseqüência da pressão dos países capitalistas sobre o bloco socialista e bastaria um esforço de auto-reforma do sistema para que o rumo correto fosse retomado. Por um momento, essas esperanças pareceram concretizar-se nos processos que os soviéticos chamaram glasnost e Perestroika. No entanto, a reforma controlada do sistema rapidamente cedeu lugar a seu desmantelamento.
Quais as razões profundas desse desfecho? Em linhas gerais, podemos dizer que o bloco comunista foi vítima do desenvolvimento tecnológico recente. Numa confirmação irônica de um dos teoremas marxistas, as relações de produção construídas a partir da extinção da propriedade privada e da substituição do mercado pelo planejamento central não resistiram ao avanço das forças produtivas e foram por ele despedaçadas.
Vale lembrar que nem sempre o sistema econômico soviético foi inoperante. Respondeu por taxas de crescimento industrial das mais elevadas por um longo período de tempo. Transformou a antiga Rússia em uma potência industrial e militar. Conseguiu, além disso, ganhos até então desconhecidos no rumo da equalização das condições de vida de sua população. Os indicadores de saúde e educação, em poucos anos, alcançaram e ultrapassaram aqueles vigentes nos países capitalistas ocidentais. Mesmo a ocorrência do processo de desestalinização aumentou o otimismo daqueles que, dentro e fora da União Soviética, julgavam o totalitarismo um aspecto descartável do sistema. Emblemático desse período de euforia foi o anúncio de Kruschev, na esteira das primeiras vitórias na corrida espacial, da iminente ultrapassagem da economia americana pela soviética.
O que mudou, desde então? Os avanços científicos e tecnológicos potencializaram o processo de globalização e geraram um novo modo de produzir bens e serviços para o qual mercado e democracia, ou seja, iniciativas no âmbito das unidades de produção e transparência revelaram-se indispensáveis. Esses eram justamente os dois fatores de que carecia o bloco soviético.
A partir de então, deixou de ser plausível a possibilidade de regenerar o comunismo, de transformá-lo por dentro, mediante uma intervenção política e ficou claro o que nós, liberais, sempre soubemos: a liberdade não surge da sua ausência. Vemos, hoje, o preço que a Rússia paga pela ausência de uma tradição política democrática e de uma tradição econômica de mercado. Na política, as instituições são frágeis e o risco de retrocesso em direção ao autoritarismo é presente. Na economia, a iniciativa privada foi açambarcada pelo crime organizado, refúgio dos únicos empreendedores remanescentes do velho regime.
O experimento comunista mostra um resultado claro: os meios preconizados historicamente pela tradição socialista não alcançaram os fins desejados. A justiça social foi incrementada ao custo de um grau absurdo de coerção e revelou -se fugaz. Não sobreviveu ao desmantelamento do regime. A racionalidade da economia revelou-se um mito. O planejamento centralizado mostrou sua inoperância em face das novas condições de produção originadas da revolução científico-tecnológica.
Resta-nos examinar o desempenho, neste século, do braço democrático do movimento socialista, a Social-Democracia.
Nas suas origens, o Socialismo manifestava desconfiança profunda quanto à eficácia e pertinência de sua participação no processo eleitoral. A atitude era procedente, na medida em que vigorava o voto censitário, ou seja, julgava-se, então, que o direito de voto deveria estar restrito àqueles que tinham algo a perder com o desgovemo do país: os proprietários e os detentores de rendas elevadas. Era recorrente, entre os primeiros pensadores socialistas, a idéia de que a nova sociedade poderia surgir, fora da esfera política, a partir de comunidades isoladas, funcionando conforme as novas regras. Acreditava-se que, comprovada assim sua eficácia, o socialismo alastrar-se-ia por força de um efeito de demonstração.
O marxismo representou uma ruptura com essa visão. Ao considerar a conquista do Estado como instrumento indispensável à construção da nova sociedade, enfatizou a necessidade de participação dos trabalhadores na política institucional “burguesa”. Era necessário sempre que possível, a organização de partidos políticos legais e a apresentação de candidatos nas disputas eleitorais.
É certo que essa visão era, no início, inteiramente instrumental. As eleições eram vistas como um momento privilegiado de agitação e propaganda das idéias socialistas, mas não se acreditava na eleição de um governo capaz de implementar as mudanças necessárias. Mesmo que eleito, um governo com essas intenções seria em pouco tempo manietado ou derrubado por uma rebelião das classes possuidoras contra sua própria ordem legal. A revolução, ponto de inflexão no rumo da nova sociedade, deveria ocorrer, na opinião majoritária entre os militantes, no bojo de uma greve geral, seguida do assalto ao poder.
A conquista progressiva do sufrágio universal nos principais países europeus, muitas vezes com a participação decisiva dos trabalhadores, foi aos poucos alterando essa visão. Os socialistas acreditavam, firmemente, na inevitabilidade de a população trabalhadora vir a transformar-se na maioria absoluta em todas as nações modernas. Conforme Marx, a tendência à concentração de empresas era inexorável, o número de capitalistas tenderia a diminuir, a pequena-burguesia e o campesinato, classes de transição, desapareceriam e os trabalhadores constituiriam a maioria esmagadora da população num futuro próximo. Nessas circunstâncias, era difícil não considerar a possibilidade de os trabalhadores chegarem ao poder pela via do sufrágio universal.
Os resultados das eleições sustentavam essa perspectiva. Conforme mencionei anteriormente, na altura da passagem do século passado, os diversos partidos socialistas foram-se convertendo nos maiores depositários de votos de seus países. Logo, foram expostos a problemas delicados. Constituindo os partidos mais votados, sem entretanto dispor da maioria absoluta necessária à implementação dos seus programas, os socialistas foram chamados a constituir ou a formar governos de coalizão. Tiveram, assim, de optar entre a manutenção integral de suas propostas, e a conseqüente exclusão do governo, e a prática do compromisso, das concessões mútuas, da obtenção de pequenas conquistas.
A fratura com a vertente comunista, concretizada ao longo da Primeira Grande Guerra e formalizada em 1921, operou nessa linha de clivagem, separando aqueles que viam as eleições como agitação preparatória da insurreição e aqueles que se comprometeram com a preservação das regras democráticas. Esses últimos desenvolveram a lógica da acumulação de conquistas, ou seja, de reforma em reforma chegar-se-ia à transformação completa da sociedade. Nas palavras de um líder socialista da época, a chegada ao socialismo poderia ser tão imperceptível quanto a passagem de um navio pela linha do Equador.
Sabemos, hoje, que essa estratégia não logrou êxito. Era necessáriopara seu sucesso a esperada maioria absoluta dos trabalhadores no conjunto da população. E tal fato não ocorreu. Por outro lado, as reformas deveriam ser cumulativas e não passíveis de reversão, e a experiência histórica demonstrou que, administradas por novas maiorias, ou simplesmente deixadas à própria sorte, as reformas tendiam a desaparecer.
O fato de os trabalhadores persistirem como maioria relativa e não como maioria absoluta foi de particular relevância para a estratégia posterior dos social-democratas. Os partidos europeus viram-se diante da alternativa de concentrar seus esforços na classe operária e renunciar à possibilidade de serem majoritários ou de se abrirem à participação de outros grupos sociais.
O problema, no caso, é que verificou-se um trade off entre ambas as possibilidades. Ao concentrar suas campanhas nos interesses e na identidade operária, perdiam eleitores de outros grupos. Ao tentar a ampliação, deixavam de apelar para a consciência de classe dos operários, liberando-os, em parte, para votos desvinculados de sua identidade de trabalhador. Nessa alternativa, ganhariam votos com uma mão e os perderiam com a outra, sem alcançar a desejada e necessária maioria absoluta.
A hipótese desse trade off, desenvolvida pelo cientista político Adam Przeworski, encontra apoio nos dados disponíveis sobre o desempenho eleitoral dos partidos socialistas. Apenas no começo do século XX os socialistas algumas vezes aproximaram-se dos cinqüenta por cento dos votos. A partir da década de 1920, entretanto, raramente ultrapassaram os trinta por cento, sendo levados a participar de governos de coalizão, seja na condição de protagonista, seja na de coadjuvante.
Não é possível, entretanto, deixar de reconhecer algum sucesso ao experimento social-democrata. Principalmente a partir da década de 1930, quando assumiram políticas de cunho keynesiano, eles tiveram participação destacada na construção do chamado Estado de Bem-Estar Social.
Desde então, e principalmente no segundo pós-guerra, os governos socialistas desenvolveram um grau de intervenção na economia sem precedentes, mediante a nacionalização de setores inteiros da produção. Paralelamente, ampliaram substancialmente os chamados direitos sociais. Além dos direitos civis, as chamadas liberdades individuais, e do direito de votar e ser votado, os cidadãos desses países passaram a ter como direitos o acesso à saúde, à educação, ao emprego, à seguridade social, à moradia, entre outros. Cabe assinalar que o conteúdo de todos esses direitos sociais era até então simples objeto de transação no mercado, acessíveis apenas aos que dispunham de recursos para comprá-los.
A intervenção do Estado no sentido de regular a economia e garantir esse conjunto expressivo de direitos a todos os cidadãos foi mais profunda e continuada em países como a Suécia e a Inglaterra. Na década de 1950, inclusive, teóricos do trabalhismo inglês não apenas acreditavam estar no caminho do socialismo, como também afirmavam ser impossível um eventual retorno daquele país ao capitalismo.
Essa, no entanto, foi a previsão que teve o desmentido mais rápido. A partir da segunda metade da década de 1970, toda uma leva de vitórias eleitorais conservadoras remeteu os partidos socialistas à oposição. As reformas conquistadas sofreram rápida reversão. Empresas estatais foram privatizadas e o Estado tratou de limitar o alcance dos direitos sociais recentemente estatuídos.
Quais as razões da crise do Estado de Bem-Estar Social? São tantas que mencionarei apenas os fatores mais relevantes. Em primeiro lugar, a globalização produziu um ambiente favorável à rápida mobilidade de capitais. Estes podem, face a uma política redistributiva considerada excessiva, migrar com facilidade para outro país, causando desemprego e mais pobreza.
Em segundo lugar, outro resultado da revolução científico-tecnológica foi a criação do desemprego estrutural. Com ele, diminui o número de contribuintes e aumenta o de beneficiários das políticas sociais. O desequilíbrio assim gerado exige recursos cada vez maiores e alimenta a chamada “revolta dos contribuintes”, que começam a direcionar seus votos aos partidos conservadores.
Em terceiro lugar, parece claro, hoje, que, mesmo nos seus melhores dias, o Estado de Bem-Estar Social tinha como premissa uma estrutura familiar tradicional. Encontrava-se equipado para atender ao desemprego masculino, pressupondo o papel de esposa para a maioria da população feminina. Com a freqüência maior de divórcios e o afluxo das mulheres ao mercado de trabalho o Estado revelou-se incapacitado para fazer frente ao aumento dos gastos.
Finalmente, uma linha de crítica, iniciada pelos liberais, mas hoje encampada por correntes socialistas, dirige-se ao complexo paternalismo/passividade que essas políticas estimulam. As populações atendidas vêem o seu destino nas mãos de uma burocracia que escapa à sua influência. Cria-se uma cultura da dependência que, ao invés de integrar os excluídos na ordem social, estimula a permanência destes nos limites dessa ordem, na condição de incapazes de garantir seu próprio sustento, expondo-os às conhecidas conseqüências em termos de preconceito.
Pode-se concluir, em suma, que o projeto social-democrata foi vítima dos mesmos fatores históricos que evidenciaram o fracasso do comunismo: a revolução científico-tecnológica e o processo de globalização dela decorrente. Aqui cabem duas indagações: antes que o peso desses fatores se fizesse sentir em meados dos anos de 1970, era possível afirmar, ao longo das três décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra, que a via social-democrata alcançara êxito? E, ainda, o caminho das reformas sucessivas levara ao socialismo?
Depende. Se por Socialismo entendemos uma sociedade próxima do pleno emprego, com uma elevada renda per capita, na qual os desempregados e os excluídos do mercado de trabalho por incapacidade também fazem jus a um rendimento digno, garantido pelo Estado, então a Suécia foi, de fato, durante alguns anos, uma sociedade socialista.
O Socialismo, no entanto, prometeu mais do que isso. Propôs-se à construção de uma sociedade de liberdade e abundância, na qual todas as necessidades individuais encontrariam satisfação. Acenou com a libertação do homem de todas as amarras e da situação de alienação em que se encontra. Até a formação da identidade individual ver-se-ia livre de toda distorção. Nesse sentido maximalista, o Socialismo não foi substantivamente implantado nem na Suécia, nem em parte alguma.
2) O Liberalismo: experiências de resistência aos regimes absolutistas
Aliás, a trajetória do Liberalismo constitui um interessante contraponto aos percalços do Socialismo, em todas as suas variantes. Surgido como processo de limitação dos poderes do Estado, principalmente na Inglaterra, a partir do século XIII, ganhou densidade intelectual com as contribuições de inúmeros filósofos e pensadores da política, de Locke a John Stuart Mill. Cabe assinalar que sua origem histórica, vinculada às lutas da burguesia ascendente, levou os socialistas a identificá-lo, a priori, como a ideologia dessa classe social e a condená-lo à impossibilidade de cumprir as suas promessas.
Numa sociedade dividida em classes, as liberdades fundamentais permaneceriam apanágio das classes dominantes: os proprietários. A extensão concreta dos direitos abstratamente universais colocaria em risco, de imediato, a ordem social e propiciaria sua subversão pelos excluídos. Podemos avaliar hoje, em concreto, que as promessas do Liberalismo foram cumpridas numa extensão muito maior que as do Socialismo.
Mas, de que estamos falando, quando usamos o termo Liberalismo? A palavra, na verdade, recobre uma gama de significados tão ampla quanto Socialismo. Valho-me da definição proposta pelo pensador italiano contemporâneo Norberto Bobbio, por sua clareza e operacionalidade. Para ele, Liberalismo é uma concepção de Estado, aquela que o encerra em limites bem definidos. O Estado liberal opõe-se, de um lado, ao Estado absoluto, cujo poder é ilimitado. Nesse sentido, Estado liberal confunde-se com Estado de Direito. Por outro lado, o Estado liberal não é limitado apenas em seus poderes, mas também em suas funções. Nesse sentido, o Estado liberal é um Estado mínimo, oposto, por exemplo, ao Estado de Bem-Estar Social.
É importante fazer uma distinção entre o Liberalismo assim definido e a Democracia. Esta é um regime político, na qual o poder encontra-se nas mãos de todos, a antítese, portanto, da Autocracia. A Democracia responde à exigência de distribuir o poder, não de limitá-lo.
A tensão entre Liberalismo e Democracia perpassa toda a história da doutrina. Não são poucos os pensadores liberais que consideraram ambos inconciliáveis. Historicamente, o Liberalismo prosperou inicialmente em regimes políticos oligárquicos, nos quais os direitos políticos eram inseparáveis da propriedade. Na melhor tradição liberal, a propriedade era vista como única garantia de um comportamento político responsável, única salvaguarda contra o voto disruptor da ordem.
Sabemos, hoje, no entanto, que as relações entre Liberalismo e Democracia são bastante complexas. Numa primeira dimensão, pode-se afirmar a compatibilidade entre ambos. É possível existir um Estado simultaneamente liberal e democrático. Há, porém, outras possibilidades históricas, como um Estado liberal, mas não-democrático, exemplificados pelos regimes oligárquicos, ou um Estado democrático, mas não liberal, no qual a vontade da maioria seria ilimitada.
Numa segunda dimensão, comprova-se a permanente tensão, até mesmo o antagonismo entre Liberalismo e Democracia. Nesse caso, a procura da igualdade de condições entre os cidadãos, por meio da ação do Estado, expande essa ação até esferas que deveriam ser deixadas ao arbítrio individual. Se o Estado decide tudo por nós e nos provê de todos os bens necessários, acabam a autonomia e a responsabilidade individuais.
Numa última dimensão, transparece, nas condições políticas modernas, a união necessária entre Liberalismo e Democracia. A história recente fornece razões convincentes para se crer que, de um lado, os direitos individuais dependem da regra do jogo democrático para se manterem; de outro lado, que a proteção dos direitos individuais é indispensável ao funcionamento da democracia.
Daí resulta que, hoje, os liberais trabalham no espaço da compatibilidade entre Liberalismo e Democracia; são conscientes da solidariedade existente entre ambos e procuram limitar a busca da igualdade de condições à igualdade de oportunidades para todos. Os liberais sabem que o máximo que o Estado pode fazer, sem colocar em risco os direitos individuais e a esfera privada, é assegurar o mesmo ponto de partida a todos os cidadãos. Tentar assegurar o mesmo ponto de chegada, como almejam os socialistas, é enveredar pelo caminho da servidão, na expressão feliz de Hayek.
3) A Doutrina Liberal
Cabe aqui recapitular que as linhas mestras da doutrina liberal, decantadas após séculos de especulação e debates teóricos, são:
1 – O Individualismo: Se os liberais buscam limitar o poder do Estado, fazem-no em nome de uma realidade anterior e moralmente mais elevada – o indivíduo. Para eles, os indivíduos precedem o Estado, que só existe para satisfazer as suas, deles, necessidades.
2 – Os Direitos Naturais: Esses indivíduos que preexistem ao coletivo portam direitos invioláveis, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. A tradição liberal fundamenta esses direitos na sua suposta naturalidade. A suposição não é necessária. Basta-nos considerar, em cada sociedade e em cada período histórico, como direitos fundamentais e, portanto, invioláveis, aqueles reconhecidos a todos os seus membros. Os direitos universais são os fundamentais.
3 – A Valorização da Diversidade: Na tradição liberal, toda uniformidade é percebida como imposta por um poder exterior ao indivíduo. Os seres humanos são plurais e um de seus direitos inalienáveis é o da expressão e do desenvolvimento de sua singularidade. Da mesma forma, os conflitos que advêm da expressão das diferenças – de valores, idéias e interesses - são salutares, uma vez que propiciam a emulação, o aperfeiçoamento e a prevalência das alternativas mais eficazes. Na esfera econômica, essa diretriz materializa-se na valorização da concorrência. Sociedades que estimulam a diversidade são ativas e progressistas.
Parece-me claro que, no ambiente globalizado e sujeito a intensas alterações tecnológicas já aqui mencionados, um corpo doutrinário com as características acima descritas encontra-se mais capacitado para conduzir sociedades modernas do que as doutrinas concorrentes originadas do tronco socialista. Os valores articulados pelos liberais aparentam ser hoje os únicos compatíveis com o modo de produção que atualmente se gesta. Transparência e livre circulação da informação, plena liberdade à iniciativa individual, tanto no campo do capital quanto do trabalho, dotação de responsabilidade aos sujeitos dessa iniciativa; todas essas são condições para operar a produção de bens e serviços, na contemporaneidade.
O resultado mais evidente das mudanças recentes é a crescente complexidade da vida e do mundo modernos. Nossos problemas, sejam eles tecnológicos, econômicos ou meramente cotidianos, não dispõem mais de apenas uma solução ótima, mas sim de uma multiplicidade de soluções ao alcance dos atores sociais. Tornou-se plenamente aceitável a crítica dos economistas liberais ao Socialismo: se num estágio mais simples de sociedade, o planejamento central podia aspirar a uma racionalidade superior à do mercado, hoje o mercado é mecanismo muito mais eficiente para captar e transmitir os sinais da esfera produtiva. O planejamento central, na forma como foi postulado pelos socialistas, foi relegado ao campo da irracionalidade econômica.
Devo dizer, contudo, que a hegemonia dos mecanismos de mercado e das instituições democráticas a que assistimos não significa uma vitória absoluta do Liberalismo, em sua feição originária. Décadas de embate com as correntes socialistas tornaram os liberais sensíveis às condições sociais que possibilitam a igualdade de oportunidades.
Poucos expoentes do Liberalismo negariam hoje a necessidade de interferência estatal em áreas como saúde e educação, cruciais para que os indivíduos iniciem o processo de concorrência em igualdade ou ao menos em semelhança de condições. Alguns preferem dar a esse movimento o nome de Social-Liberalismo, uma vez que legitima a intervenção do Estado em esferas antes deixadas exclusivamente ao livre jogo das forças de mercado.
Nota-se, por outro lado, movimento semelhante da parte de tendências historicamente situadas no campo do Socialismo. As debilidades do Estado de Bem-Estar Social, particularmente sua tendência à burocratização, à alienação da população beneficiada, à perpetuação da exclusão social num gueto de dependentes do Poder Público, originaram críticas entre os próprios socialistas. Estes passaram a reconhecer, ao menos parcialmente, as limitações do Estado como instrumento de promoção da igualdade e da justiça e a conseqüente necessidade de estimular a autonomia individual. Outro não é o significado da tentativa autodenominada Terceira Via, teorizada por Anthony Giddens, na Inglaterra, inspiração do atual governo trabalhista daquele país.
4) Conclusão: sinais de convergência
Neste começo de século, é difícil prever o resultado desses processos, tanto no campo do debate Intelectual, quanto no da prática de governo. O que se pode é apenas considerar os sinais de convergência entre as distintas doutrinas aqui sucintamente abordadas como um sintoma auspicioso de que décadas de debate intenso estão produzindo conclusões, expressas como consensos parciais acerca da gestão da sociedade. Ainda bem.
Já não era sem-tempo.
Um comentário:
Ajudou mto (;
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