quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Obstáculos à Liberdade na América Latina



“Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo me é
permitido, mas não me deixarei escravizar por coisa alguma".
São Paulo
Primeira Epístola aos Coríntios
(1 Cor. 6, 12)

“Nada é mais rico em privilégios do que a arte de ser livre;
mas nada é mais árduo que o aprendizado da liberdade”
Alexis de Tocqueville

A liberdade individual é uma conquista relativamente recente da Humanidade e corre o risco de ser uma experiência efêmera, tantos são os óbices que se acumulam contra sua universalização. Mesmo nas sociedades em que ela existe em maior grau a tentação totalitária está sempre presente, fazendo com que seja permanentemente atual a advertência de Thomas Jefferson “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. É de sua lavra também a frase “Jurei, no altar de Deus, eterna hostilidade contra todas as formas de tirania sobre a mente humana”. Conhecido como o “membro silencioso” do Congresso Continental, Jefferson falou através de sua pena, rascunhando a Declaração de Independência aprovada quase sem emendas em 4 de julho de 1776, onde pela primeira vez declarava-se que “Acreditamos serem verdades evidentes por si mesmas que todos os homens nascem iguais; que são dotados pelo Criador com alguns direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.

Tomava corpo a institucionalização das condições políticas para que o homem pudesse exercer a liberdade interior preconizada por São Paulo na Epístola em epígrafe. A procura de um regime político que permita a grandeza de escolhermos nosso próprio destino, baseados unicamente na nossa consciência, é muito antiga. Começa pela tradição bíblica do livre arbítrio, passa pela busca incessante de Sócrates e seus discípulos e pela pregação cristã e se espraia pela tradição anglo-saxônica. Quando os barões e os prelados ingleses extraíram quase a fórceps, em 15 de junho de 1215, a Magna Carta do Rei João Sem Terra, não imaginavam que, pensando apenas em si mesmos e nos seus interesses imediatos, estavam estabelecendo as bases dos modernos Parlamentos e daquele Congresso Continental quinhentos anos mais tarde em que Jefferson se pronunciaria.

Documento infelizmente pouco conhecido na atualidade a Magna Carta foi a primeira tentativa anglo-saxônica de limitar o poder de um tirano mediante o império da lei. Foi responsável, entre outras coisas, pelo estabelecimento do que hoje se chama devido processo legal (due process of law) ao estatuir na sua cláusula 39 que: “Nenhum homem livre será preso, encarcerado, despojado de seus bens, colocado fora da lei, banido, ou ferido de qualquer maneira – nem o perseguiremos ou faremos perseguir – a não ser pelo julgamento legal de seus pares ou pela lei da terra”. Igualmente estabeleceu pela primeira vez o direito de livre comércio. A cláusula 41 rezava: “Todos os mercadores poderão, de maneira certa e segura, sair ou entrar da Inglaterra e aqui permanecer, ou por aqui passar, tanto por terra como por água, para comprar ou vender sem que lhes sejam cobrados impostos odiosos (evil taxes) (...)”. Na mesma cláusula ainda defende o princípio da reciprocidade diplomática e da simetria em caso de guerra: “(...) deverá ser do nosso conhecimento, ou de nossos magistrados, como nossos mercadores que estiverem em terras em guerra conosco serão tratados. Se os nossos estiverem a salvo lá, os de lá estarão a salvo em nossas terras”. (A moderna guerra assimétrica é justamente o oposto do disposto nesta cláusula).

Também inaugurou o direito inalienável de livre trânsito, hoje negado em várias “democracias”. Na cláusula 42 estabeleceu que: “A partir de hoje qualquer pessoa, salvo por crime de deslealdade, pode sair do nosso reino e a ele retornar, são e salvo, por terra ou água, exceto talvez por breves períodos em tempo de guerra, e os prisioneiros e foras da lei, para o bem comum do reino (...)”.

Outra lição que se pode tirar da história deste documento, fundamental para o individualismo, é que interesses à primeira vista exclusivamente egoístas revelam-se ao longo do tempo benéficos para o assim chamado bem comum. Desde que os indivíduos sejam deixados em paz e fora das garras dos “engenheiros sociais”, os quais pensam que conhecem melhor que os indivíduos livres, o melhor para o “bem comum”, agora chamado “social”. Se os barões e prelados não tivessem lutado em causa própria não gozaríamos hoje os benefícios de suas exigências. Hoje, os barões e prelados são exatamente os “engenheiros sociais” que também atuam exclusivamente em causa própria, para aumentar o seu poder, mas alegam ser os representantes das causas da sociedade como um todo. Não se fazem mais barões e prelados como na Idade Média!

As diferenças cruciais entre as revoluções Francesa e Americana residem nestes dois pontos: a importância da liberdade individual e a delimitação do poder dos governantes. Enquanto na primeira simplesmente se substituiu um tirano coroado pela tirania da maioria, gerando governantes jacobinos ainda mais tirânicos, na segunda o tirano foi substituído pela Carta dos Direitos e pela limitação do poder dos governantes, isto é, pelo Império da Lei e não dos homens. Todo o texto enxuto e claro da Constituição Americana é uma seqüência de limitações do poder dos governantes sobre os governados. Na verdade, a Constituição se refere sempre a estas limitações, obrigando o respeito a elas por parte do governo; os indivíduos e as entidades privadas não estão a elas obrigados. É o reinado do individualismo, da liberdade do homem embora limitada pelos valores cristãos. Ama o próximo como a ti mesmo, é o que coloca os limites do “nem tudo convém”, diferenciando-o do simples egoísmo que não leva os demais em consideração.

Esta liberdade individual inclui as liberdades de querer, optar, pensar, falar, escrever, opinar e publicar. De trabalhar em qualquer ocupação à sua escolha, de ter posses e dispor livremente delas, sem constrangimentos, inclusive testar, de escolher seu cônjuge livremente e assim criar seus filhos educando-os dentro dos seus princípios. Liberdade de consciência e de culto, de estabelecer-se onde melhor lhe pareça, sair ou entrar livremente de seu país. De definir seu próprio conceito de existência, de sentido da vida e do universo. Toda a cooperação do governo deveria ser no sentido de assegurar e defender estas garantias protetoras da vida, das pessoas e da propriedade privada.

Não foi outra coisa que levou o Ocidente, principalmente os Estados Unidos da América e a Inglaterra, ao impressionante surto de descobertas e invenções do final do século XIX e início do XX. Na esteira da Revolução Industrial que datava já de um século houve um incremento monumental do acúmulo de capital que permitiu uma imensa expansão em todos os setores da economia. Certamente o fim da Guerra Civil Americana e a expansão para o Oeste levada a efeito por indivíduos livres, cada vez mais distantes dos centros do poder, tiveram um papel relevante na evolução do próprio conceito de liberdade. Nem mesmo na época dos Grandes Descobrimentos ocorreu esta evolução, pois ou eram projetos estatais ou dependeram enormemente da mão gorda do Estado. Vasco da Gama, Colombo, Cortez e Cabral estavam mais para funcionários da Coroa do que para campeões da liberdade. Muito diferente foi a Conquista do Oeste Americano realizada sob a égide de homens livres que corriam para ganhar suas vidas e de suas famílias e a tudo estavam dispostos para defender o que iam conquistando. Remember the Alamo, Davy Crocket, Sam Houston, Stephen Austin, Lewis & Clark. Por que não “Doc” Holiday e Wyatt Earp e seus irmãos. É o espírito dos cowboys, da liberdade das pradarias - tão desprezados pelos intelectuais de gabinete que não se arriscam nem em ir até a esquina - que constituiu a saga formadora dos Estados Unidos da América.

Armando Ribas coloca a questão em seus devidos termos: “Onde estaríamos se os cowboys não tivessem ganho dos Sioux, Apaches, Comanches e outros? Poderíamos pensar que os caçadores de búfalos que dançam com lobos seriam capazes de destronar o Kaiser, vencer a Hitler, Mussolini e Hiroíto e conter o Império Soviético e a China de Mao? Certamente não, a vitória nesta luta pela liberdade que se iniciara em Filadélfia foi e seguirá sendo a dos cowboys que acreditaram nos direitos individuais e lutaram por eles, e não dos que chegaram ao Terceiro Milênio pela mão da Razão do Estado, sublimada pelo voto universal na Social Democracia” (Entre Cowboys y Jacobinos).

A TRISTE HISTÓRIA DA LIBERDADE DA AMÉRICA LATINA

Os Founding Fathers antes de chegarem ao texto constitucional discutiram longamente as relações entre liberdade, justiça, democracia e o significado da expressão todos os homens nascem iguais. Os Federalist Papers são uma mostra eloqüente desta discussão. Isto nunca ocorreu na Europa e, conseqüentemente, no nosso Continente. Herdamos de forma crua os princípios igualitários da democracia franco-germânica e, inevitavelmente, herdamos também a propensão européia às tiranias. Ironicamente a obra mais conhecida de Hayek não se aplica aqui: não estamos e nunca estivemos no Caminho da Servidão, vivemos nela desde sempre e o que necessitamos é descobrir um Caminho para a Liberdade! A servidão nos foi transferida in natura das metrópoles ibéricas, plenamente exercidas durante o período colonial e nossas independências foram feitas por homens que nada sabiam da verdadeira liberdade por terem sido criados na Espanha ou Portugal onde a tirania era a tônica. A independência dos países não resultou em liberdade para seus povos. Já nascemos como prisioneiros que só conhecem os limites da sua cela e nem podem imaginar como o mundo pode ser fora dela.

Juan Bautista Alberdi (1810-1884), conhecido como o “Pai da Constituição Argentina” de 1853, a única Constituição liberal que a ibero-mérica conheceu em toda sua história, deixa claro que “A liberdade da Pátria é a independência com relação a todo país estrangeiro. A liberdade do homem é a independência do indivíduo com relação ao governo de seu país. A liberdade da Pátria é compatível com a maior tirania e ambas podem co-existir num mesmo país. A liberdade do indivíduo deixa de existir pelo próprio fato da Pátria assumir a onipotência do país” (A Onipotência do Estado é a Negação da Liberdade Individual). “Esta verdade tem sua confirmação cabal no exemplo que nos oferecem os próprios Generais tidos como ‘Libertadores da América’. (...) Não bem concluída a guerra contra a Espanha, Bolívar e San Martin se colocaram à testa de movimentos da política interior com o objetivo de fundar pela espada a liberdade doméstica (...). O fracasso não tardou em mostrar-lhes seu erro (...)” (Peregrinación del Luz del Dia o Viajes y Aventuras de la Verdad en el Nuevo Mundo).

Neste caso o Brasil também está em pior situação que nossos vizinhos. Nossa “independência” não passou de uma pantomima: foi proclamada por um Príncipe português de caráter duvidoso, cujos principais interesses eram os bordéis e reinar em Portugal, a mando d’El Rei, seu pai que o recomendou colocar a coroa na sua cabeça “antes que um aventureiro brasileiro o faça”. A diferença com George Washington é deprimente: logo após o fim da Guerra de Independência o Coronel Lewis Nicola escreveu a Washington, como representante dos oficiais descontentes com o tratamento que lhes dispensava o Congresso, sugerindo que ele se tornasse Rei, pois contaria para isto com o apoio da maioria das “pessoas com vantagens materiais” do país. Sua resposta indignada foi peremptória: “não sei qual conduta de minha parte pode ter encorajado esta sugestão, pois os senhores não podiam ter encontrado alguém para quem tais esquemas sejam mais desagradáveis e repugnantes”. E acrescentou: “Se os senhores têm alguma consideração por si mesmos ou sua posteridade, ou respeito por mim, devem banir estes pensamentos de suas mentes e nunca comunicar, direta ou indiretamente a ninguém, um sentimento desta natureza”. (George Washington: A Brief Biography, Mount Vernon Ladies’ Association of the Union)

É ainda Alberdi quem o diz: “O despotismo e a tirania freqüentes nos países da América, não residem no tirano nem no déspota mas na máquina ou construção mecânica do Estado, pela qual todo o poder de seus indivíduos, refundido e condensado, cede em proveito de seu governo e cai em mãos de sua instituição. O déspota e o tirano são o efeito e o resultado, não a causa, da onipotência dos meios e forças econômicas do país, colocadas na posse do estabelecimento de seu governo e do círculo pessoal que personifica o Estado pela maquinaria do próprio Estado”. “Nos Países Anglo-Saxônicos (Estados Unidos e Inglaterra) liberdade nunca significou independência de uma potência estrangeira, mas independência de cada indivíduo em relação ao Governo da Nação (...) a liberdade da Nação tem como limite sagrado a liberdade individual”. (A Onipotência do...)

A natureza do que é chamado de democracia no nosso Continente não inclui a noção de liberdade individual. A maioria possui uma visão populista da relação entre Estado e Sociedade. As pessoas esperam que o Estado resolva seus problemas básicos: emprego, moradia, comida, saúde, educação e aposentadoria o mais cedo possível. Estes fatores são descritos em nossas Constituições como “direitos dos cidadãos”. A Constituição Brasileira de 1988 – a “Constituição-cidadã” – chega a prever absurdos como a taxa máxima de juros – que, se fosse respeitada impediria todas as transações econômicas do país – e a ridícula cláusula que define saúde como “direito de todos e obrigação do Estado”! Numa sociedade que respeita seriamente sua Constituição, qualquer indivíduo poderia acionar juridicamente o Governo por um reles resfriado!

Mas é aí que está o ponto: enquanto os Anglo-Saxões fazem constituições enxutas para serem obedecidas principalmente pelos governantes – a da Inglaterra nem tem uma redação unificada mas leis esparsas somadas ao direito consuetudinário – nós herdamos o furor de regulamentação das monarquias ibéricas produzindo Constituições intermináveis onde todos os detalhes das vidas dos cidadãos são previstos. Faltou prever alguma coisa? Providencia-se uma lei ou emenda para incluí-la. Nenhuma profissão pode deixar de ser regulamentada, nos moldes das guildas medievais, nos mínimos detalhes. É decepcionante que os próprios cidadãos peçam para ser regulamentados porque acreditam que assim estarão protegidos, e não se dão conta de que, de regulamentação em regulamentação, tornam cada vez mais forte o Estado e mais fracos os indivíduos! Como conseqüência, os movimentos contrários à liberdade e à propriedade privada se aproveitam exatamente do regime democrático para assumir o poder e liquidar o próprio sistema que os elegeu. É de se notar a sutil modificação introduzida no Estado de Direito: ao acrescentar a palavra Democrático, liquida-se com o próprio Estado de Direito e coloca-se em seu lugar a tirania das maiorias e o aniquilamento progressivo das minorias. Jamais passou pela cabeça dos framers da Constituição Americana ou dos legisladores britânicos a expressão democratic rule of law mas tão somente rule of law, sem adjetivos.

HÁ ESPERANÇA?

O meu otimismo me obriga a pensar que sim embora o exame da realidade me leve a crer que não, pois cada vez mais nos enterramos na tirania e a perspectiva é de que passemos da cela às masmorras. A população cada vez mais exige direitos inconquistáveis e os governantes prometem cada vez mais sabendo plenamente que são promessas vãs. Tinha plena razão Alexander Tyler quando dizia que “[a democracia] Só pode existir até que os eleitores descubram que podem votar por mais dinheiro do tesouro público para si mesmos. Deste momento em diante a maioria sempre votará nos candidatos que prometem a distribuição de mais dinheiro do tesouro público, tendo como resultado que uma democracia sempre acaba em razão de políticas fiscais frouxas, liberais e irresponsáveis e são seguidas por uma ditadura”.

Os candidatos sabem que as promessas não poderão ser cumpridas, mas as fazem porque seu objetivo é bem outro: provar que o regime democrático não funciona e que é preciso cada vez mais restringir as liberdades individuais para o “bem social” – na verdade para o bem deles mesmos. Atacam as liberdades mais invejadas e cobiçadas, a da propriedade privada e a da individualidade, pois sabem que contarão com o apoio dos que nada ou pouco possuem e dos que são incapazes de exercer plenamente sua individualidade.

A primeira é “a fonte mais comum e duradoura da formação de partidos (fractions). Aqueles que possuem e aqueles que não possuem propriedades sempre formam distintos interesses na sociedade”. (James Madison, The Federalist n 10). O que os invejosos não desconfiam é que, depois desta, todas as demais liberdades virão de roldão, inclusive as suas.

Já a espontaneidade individual não faz parte “do ideal da maioria dos reformadores sociais e morais mas, pelo contrário, é olhada ciumentamente como um problema e talvez como uma obstrução rebelde à aceitação geral dos que estes reformadores, em seu próprio julgamento, pensam ser o melhor para a humanidade”. (John Stuart Mill, On Liberty)

É claro que a ânsia de liberdade existe nos nossos povos como em quaisquer outros mas para isto seria necessário abandonar esses falsos “privilégios” e aí entram as dificuldades em aprender a ser livre: é, como dizia Tocqueville, um trabalho árduo. Mas que deve ser começado antes que não haja mais tempo. O Seminário que me coube organizar e coordenar, sob a inspiração de Armando Ribas, é uma primeira tentativa: reunir intelectuais para, tal como na Argentina da década de 30 do século XIX, em condições muito semelhantes às atuais, “refletir como deve ser a república (...) a geração de 1837 atuou para dar vida à Constituição, às instituições republicanas e as formas de vida de uma sociedade moderna”, como nos diz na apresentação de seu livro Los Fundadores de la Republica, outro participante do Seminário, Ricardo López Göttig.

Mas esta é a mais assimétrica das batalhas já que os defensores da liberdade são ciosos do que defendem, e lutam como indivíduos, enquanto os inimigos coletivistas da liberdade lutam como um exército de formigas obedecendo a ordens pavlovianas.

A aceitação e apoio entusiásticos do Presidente da Associação Comercial de São Paulo, Guilherme Afif Domingos, do Diretor do Instituto de Economia Gastão Vidigal, Marcel Solimeo e do Redator-Chefe do Diário do Comércio, Moisés Rabinovici foi um raio de otimismo que espero que frutifique.


Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2006


HEITOR DE PAOLA - Organizador Técnico e Coordenador do Seminário sobre Democracia Liberal: Liberdade, Democracia e o Império das Leis

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